Quem eram os informadores da PIDE, onde estavam e porque delatavam?

Foram aos milhares e muitos mais ainda os que quiseram ser informadores da PIDE. Poucos foram julgados ou condenados. Da maior parte, a quase totalidade, só se conhece o pseudónimo. De 1933 a 1974, a cultura da "impunidade da delação" espalhou-se. E nem todos eram "bons salazaristas". O PCP foi, quase sempre, o alvo principal.
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Houve de tudo "em toda a sociedade portuguesa, desde operários a assalariados rurais, a escriturários, comerciantes, proprietários, médicos que traíram o seu juramento, jornalistas, fotógrafos, presidentes de câmara e diretores de empresas, militares e civis, homens e mulheres, jovens e de meia-idade, padres que transmitiram o que ouviam na confissão, professores dos vários graus de ensino que denunciaram alunos" e colegas, e até os casos de "algumas denúncias de elementos do próprio regime", como foi o caso dos irmãos Botelho Moniz, um general, outro major - "apesar de serem ambos adeptos do regime da ditadura militar e depois do Estado Novo salazarista", ou da reunião "entre os altos-comandos, presidida pelo ministro do Exército".

A "tragédia portuguesa", como lhe chama Irene Flunser Pimentel, historiadora e Prémio Pessoa 2007, ou "os bufos" como o PCP, "alvo principal da polícia da ditadura de Salazar", lhes chamava, chegou "mesmo a preocupar os governos de Salazar e Caetano, receosos das consequências que isso poderia trazer ao apregoado corporativismo do regime" tal foi o "excesso de denúncias".

Ainda hoje "não se sabe quantos informadores teria a DGS, em 1974". O Serviço de Coordenação da Extinção da PIDE/DGS e Legião Portuguesa (que ficou conhecido por "Comissão de Extinção") calculou 20 000. Kenneth Maxweel, historiador, citando um "documento encontrado em Caxias" apresentou esta contabilidade: 1 em cada 4000 portugueses "teria recebido (...) pagamentos da PIDE/DGS por informações prestadas". O historiador José Freire Antunes tinha outros cálculos: "1 em cada 400 portugueses."

Irene Pimentel acrescenta outro dado: "Os que queriam ser, mas eram recusados foram muitos mais do que os informadores encartados, talvez o triplo." Contas simples de fazer. Por cada informador, havia três portugueses que o queriam ser, que se ofereciam escrevendo ao Ministério do Interior, à PIDE e muitas vezes diretamente a Salazar. Facto "revelador de que existia, no seio da população portuguesa, uma espalhada cultura de denúncia".

Quantos eram ao certo? Certezas nunca haverá. Até porque "no próprio dia 25 de abril de 1974, o diretor dos Serviços de Informação da DGS, Álvaro Pereira de Carvalho, ordenou a destruição de um ficheiro onde era feita a correspondência entre os pseudónimos usados pelos informadores e a sua identificação real".

O rumor, a ideia de que "meio país denunciava outro meio país" está longe da verdade, mas "o medo da delação" potenciava "a delação, multiplicando-a". Se a isto acrescentarmos as escutas telefónicas e a interceção postal, sem qualquer fiscalização judicial, aliados às prisões e torturas e às ameaças, percebe-se a "tragédia" de um país que desde 1933 (data da criação da PVDE) viveu a "impunidade da delação" que chegou a "vingança de ódios locais". Mais fácil foi contar, registar e identificar os agentes da PIDE, cujos nomes eram publicados em Diário do Governo e que tanta utilidade dava ao PCP e à oposição, apesar do "incómodo" que essa "publicidade" causava nas chefias da PIDE.

Comecemos pela última questão. "Delatavam" por dinheiro, por proximidade ao poder, por "patriotismo", por ódios, por loucura, por medo de represálias, por interesses mesquinhos, por chantagem, por "dever de delatar" e, nada surpreendente, inventavam "informações" para receber o pagamento mensal. Alguns 500 escudos, outros menos, e outros muito mais: 3.000 escudos, 5.000 escudos, 8.000 escudos, 10.000 escudos, 15.000 escudos, 20.000 escudos e até 22.000 escudos (o caso da RTP), que foram muitas as empresas, algumas coagidas, que pagaram à PIDE por "serviços prestados".

De acordo com o simulador do INE que ajusta valores monetários adaptados com fatores de atualização como a inflação, esses montantes corresponderiam atualmente a um intervalo entre os mais de 200 euros e os 10 mil euros mensais.

No livro encontramos os nomes das empresas, os "contactos" em cada uma delas e os pagamentos mensais que faziam à PIDE. Na tesouraria desta polícia, o dinheiro era registado como "despesas de fim de semana", "donativos para assistência social da polícia", "diversos", "fundo de assistência aos órfãos" e "serviços prestados". Por estas ajudas, um escritor recebeu 30.000 escudos.

Há, nos relatos citados no livro, casos de delação "mesquinha", como o de uma professora que enviou "informação anónima" sobre a escritora Irene Lisboa, "dizendo que não teria bom porte moral, pois receberia homens em sua casa". A escritora, que era inspetora do ensino infantil e primário, acabou "afastada do Ministério da Educação e de todos os cargos oficiais".

E há, por exemplo, o "caso terrível de chantagem" que levou "o filho de uma destacada figura da oposição" a denunciar "o próprio pai e os amigos e companheiros políticos deste".

Ou o de uma "mulher casada com um advogado de Coimbra que não terá sabido ocultar da PIDE a infidelidade e foi, por isso, sujeita a chantagem e obrigada a cometer outra infidelidade para abafar o caso".

E há também as mulheres, embora em menor número do que os homens, que entraram no mundo dos informadores e denunciaram "marido e amigos que se reuniam em sua casa". Olívia, nome de código, de Alhos Vedros, casada, doméstica, "em cartas muito mal escritas", que denunciou dezenas de pessoas é um desses casos. Pelo menos de 1963 a 1968 "recebeu 200 escudos mensais".

Todas as razões, e não somente as políticas, se apresentavam válidas para os informadores, até os casos de "raparigas que denunciaram antigos namorados por vingança, pais que delataram amigos ou colegas dos filhos, ou doentes que depuseram contra os seus médicos".

Em todos havia algo em comum que muitas vezes nem suspeitavam. A PIDE "começava por pôr à prova a colaboração obtida, seguia os informadores, fazia-lhes escutas telefónicas, intercetava cartas para saber se eram verdadeiros colaboradores e confirmava a utilidade das suas informações".

Onde estavam? "Nas cidades e nos campos, nas pequenas aldeias, vilas de província, nas empresas, nos sindicatos, nas escolas, nos cafés (...) distribuídos por zona geográfica ou campo de trabalho, não se conhecendo entre si e dependendo de inspetores ou chefes de brigada que guardavam segredo sobre a sua identidade", porque a todos era dado pseudónimo.

"Nas zonas do centro e norte de Portugal, nas regiões fronteiriças. De emigração clandestina, havia uma maior endogamia entre a população local e elementos da PIDE". Nessas regiões, explica Irene Pimentel, o "relacionamento era marcado, ora pela cumplicidade, consoante amizades e familiares, ora pelo receio da repressão, mas contava muito o facto de viverem nos mesmos locais e serem vizinhos emigrantes e elementos da polícia política".

Mais a sul, "na margem sul do Tejo, no Ribatejo, e onde havia grandes fábricas, com forte concentração operária, e nomeadamente no Alentejo dos grandes latifúndios" estavam as zonas onde a PIDE mais "desejava recrutar informadores". Mas era também aí que mais dificuldades de recrutamento havia e "onde os informadores eram facilmente detetáveis". Porém, nem sempre era assim: "Na margem sul do Tejo (...) a PIDE conseguiu recrutar muitos denunciantes, já infiltrados no PCP ou que conseguiram penetrar posteriormente nesse partido."

Coimbra, e logo a partir dos anos 30 e 40, foi "terreno de atuação de muitos denunciantes". Um deles, de pseudónimo "Inácio", de "grande calibre pela longevidade e abrangência", foi dos mais eficazes. "Inácio", na verdade António da Silva Reis Júnior, 75 anos, ex-inspetor dos Caminhos de Ferro Portugueses, foi encontrado morto, com o "corpo retalhado", "nos limites da cidade de Coimbra" em dezembro de 1974. Durante o tempo em que esteve ativo, em particular de 1931 a 1971, denunciou, nomeadamente, "nomes dos principais opositores ao regime, bem como membros do MUD, MUD Juvenil e do PCP, em Coimbra".

Em agosto de 1971, surge um dos relatórios que levaram, após desentendimentos entre autarcas e governador civil, à recomendação do ministro do Interior, Gonçalves Rapazote: "Que cessem os festivais pop."

A polémica nasceu com o desagrado hiperbolizado do informador da PIDE enviado ao primeiro festival de música pop de Vilar de Mouros. Gente "embrulhada em cobertores e na maior promiscuidade", um Elton John de "má impressão, com os seus modos soberbos e as suas exigências", "crianças de olhar parado indiferentes a tudo", "grupos de homens, de mão na mão, a dançar de roda", um "rapaz deitado, com as calças abaixadas no traseiro", os "horrores" e as "relações sexuais" deixaram no informador a imagem "dantesca" do que não poderia acontecer, voltar a acontecer.

A diferença começava no recrutamento distinto do que "era levado em todas as organizações da oposição e no seio dos comunistas", principalmente porque o informador "passível de ser captado (...) ter de ser forçosamente um elemento organizado numas das organizações clandestinas" do PCP.

Apesar das dificuldades, a PIDE "conseguiu, ciclicamente, embora nunca de forma definitiva, destruir a organização do PCP, através de informadores (...) o receio era tão forte que, nos anos 50, setores do PCP, entre os quais o setor intelectual do Porto, paralisaram a sua atividade por se ter difundido suspeita de infiltração da PIDE".

Tal como eram vigiados, também as estruturas comunistas tinham a polícia política "sob vigilância". Em 1962, por exemplo, os funcionários do partido "receberam listas dos bufos dos arredores de Lisboa, de Vila Real, Santarém, Porto, Beja, Faro, Portalegre, e Setúbal (Amora, Barreiro e Seixal), de inúmeros locais e empresas, bem como listas de onde moravam elementos da PIDE de Lisboa, por freguesia".

A investigação de Irene Pimentel percorre a lista dos "informadores no PCP ao longo dos anos", as "mortes misteriosas de elementos" do partido, os casos de Manuel Domingues, Mário Mesquita e José Miguel e naturalmente o "informador Lázaro do Carmo Viegas" a quem se devem muitas das prisões ocorridas em 1961 - annus horribilis para o regime e também para o PCP.

Faz sentido, ainda hoje, não se saber quem foram os informadores, para além dos poucos casos que foram a tribunal, que continuam a coberto dos pseudónimos? "Ainda é cedo, apesar de terem passado quase 50 anos. Alguns ainda devem estar vivos, mas não podemos esquecer que os netos, os filhos têm direito ao seu bom nome. Imagina o que ainda poderia acontecer?", responde Irene Pimentel.

"Além disso", escreve no livro, "a História não é um tribunal".

Informadores da PIDE
Irene Pimentel
Temas e Debates e Círculo de Leitores/Bertrand Editora

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