'Portugal e o Futuro' de Spínola “funcionou como uma verdadeira pedrada no charco”
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'Portugal e o Futuro' de Spínola “funcionou como uma verdadeira pedrada no charco”

Agora que se celebram 50 anos da publicação a 22 de fevereiro de 1974 do livro-choque que desafiou a política ultramarina, e não só, do Estado Novo, o DN conversou com Luís Nuno Rodrigues, professor no ISCTE e biógrafo de António de Spínola, sobre o percurso do general que seria o primeiro presidente pós-25 de Abril.
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Família da Madeira, nascimento no Alentejo, qual é o contexto familiar de António de Spínola?
Os pais de António de Spínola eram ambos naturais da ilha da Madeira, mas ele nasceu em Estremoz, onde o seu pai, funcionário das finanças, estava destacado. Seis meses depois, a 5 de outubro de 1910, foi proclamada a República. A sua infância e o seu contexto familiar foram marcados pela instabilidade política, tensões sociais e dificuldades económicas do período. Em 1917, a família Spínola decidiu enviar António e o seu irmão para casa dos avós, em Porto da Cruz, na ilha da Madeira. Foi lá que completou o primeiro ano da escola primária, regressando ao continente em 1918. A família seria, entretanto, abalada pela morte súbita da mãe, Maria Gabriela, com apenas 32 anos, provavelmente vítima da epidemia de gripe pneumónica que afetou o país em 1918.

Não havendo tradição militar na família, como se dá a vocação para a carreira das armas?
Após o falecimento da mãe, o pai de António de Spínola, viúvo e agora a residir em Sintra, decidiu matricular os seus dois filhos no Colégio Militar. Spínola tinha então dez anos de idade e acabou por fazer o seu primeiro ano letivo nesta instituição em 1920-1921, ali permanecendo até 1928. Foi aí que nasceu a sua vocação para a carreira militar, como ele próprio reconhece, tomando a decisão de prosseguir uma carreira nas Forças Armadas. A passagem pelo Colégio Militar marcaria Spínola para a vida. Aliás, assim se justifica também que, naquele que foi porventura o dia mais importante da sua vida - 25 de Abril de 1974 -, Spínola tenha decidido fazer uma paragem junto ao Colégio Militar, no percurso que efetuou do Quartel do Carmo até à Pontinha, depois de ter recebido o poder das mãos de Marcelo Caetano.

O pai chegou a ser chefe de gabinete de Salazar no ministério das Finanças e sogro era alta patente militar. O jovem Spínola era um salazarista convicto?
O seu apoio e a sua adesão ao regime vigente provinham, em grande parte, do ambiente familiar em que fora criado, da sua formação militar, da ligação pessoal do pai à figura de Oliveira Salazar e mais tarde, também, da proximidade política do seu sogro ao presidente do Conselho. Mas era igualmente um reflexo da sua identificação com a organização política do regime ditatorial e com a ideologia e os valores que o caracterizavam. Em momentos decisivos para a consolidação e estabilidade do regime, Spínola tinha sempre apoiado a continuidade das instituições e da presença de Oliveira Salazar à frente do Governo. O seu contacto direto com a Espanha nacionalista e com os meios militares alemães durante o conflito, apenas contribuíram para reforçar no espírito de Spínola a sua admiração e identificação com o regime vigente em Portugal.

Qual a importância da ida à frente russa como observador na Segunda Guerra Mundial com os alemães?
Em Portugal, durante a Segunda Guerra Mundial, apesar da posição oficial de neutralidade assumida pelo regime desde o início do conflito, a sociedade encontrava-se dividida entre anglófilos e germanófilos. Essas divisões percorriam setores como os próprios círculos políticos, os militares, dos diplomatas, entre outros. Neste contexto parece ser evidente que Spínola foi um simpatizante da Alemanha, ou pelo menos um admirador profundo da máquina de guerra alemã que ele elogiou, num artigo publicado em 1941 na Revista de Cavalaria. A sua ida como observador à frente russa cimentou ainda mais esta sua posição. Em 1941 integraria uma missão de estudo e observação” às Escolas de Carros de Combate e de Equitação do Exército alemão e ainda à frente de guerra germano-russa em Leninegrado.

O voluntariado para ir combater em Angola foi o início da construção do mito Spínola?
Sem dúvida, repare-se que nessa altura, em 1961, Spínola tinha já 51 anos e não poderia ser mobilizado para a guerra. Por conseguinte, a sua decisão foi voluntária e viria, de facto, a mudar a sua carreira militar e a marcar o início da construção do “mito Spínola” como refere na sua questão. É uma decisão que vai cimentar a sua imagem enquanto líder militar no terreno, que lhe vai permitir tornar-se nos meios militares, como reconheceu o próprio Otelo Saraiva de Carvalho, numa verdadeira “lenda”, com tudo o que de construção retrospetiva este “mito” possa ter tido.

Na Guiné, o papel de chefe político junta-se ao de chefe militar para criar o general Spínola com ambição de verdadeiro poder?
Foram anos fundamentais na construção da sua imagem pública enquanto chefe militar. Mesmo a estratégia enquanto comandante-chefe passou muito pela sua afirmação pessoal, pelo seu carisma e prestígio enquanto chefe militar. Os resultados militares, sob o ponto de vista do Governo português, não terão sido os melhores, uma vez que a situação militar na Guiné-Bissau não parou de se agravar, sobretudo na fase final do seu mandato. Mas em seu abono, diga-se que Spínola explorou soluções relativamente inovadoras, para o que era a política portuguesa da época, apostando nas conversações com as populações locais, as organizações nacionalistas e tentando envolver líderes africanos na procura de uma solução política para o conflito.

Era ainda realista a ideia de um Portugal multicontinental expressa no livro Portugal e o Futuro?
Não me parece. É certo que em 1968, quando chega ao poder, Marcelo Caetano define a política de “autonomia progressiva” como caminho a seguir e Spínola entusiasma-se com essa possibilidade. Mas as condições eram cada vez mais difíceis em fevereiro de 1974. Treze anos de guerras coloniais tinham retirado aos movimentos de libertação qualquer disponibilidade para negociar e, em termos internacionais, sobretudo no contexto da ONU, as exigências eram de que Portugal pura e simplesmente reconhecesse o direito à autodeterminação e à independência das suas colónias. A deceção com a abertura falhada de Caetano era generalizada e a mensagem de Spínola, apesar de representar uma rutura com os setores militares mais conservadores, não parecia, de facto, ser já muito realista.

Conversa com Luís Nuno Rodrigues, professor no ISCTE e biógrafo de António de Spínola, sobre o percurso do general que seria o primeiro presidente pós-25 de Abril.
Paulo Spranger /Global Imagens

O livro de Spínola foi muito lido? Teve impacto na sociedade?
Sim, muito lido e com grande impacto. Spínola não era um oposicionista nesta altura. Era uma figura do regime, que tinha comandando as forças armadas na Guiné e que ocupava o cargo de Vice-Chefe do Estado Maior das Forças Armadas. Por isso, o livro representou a admissão por parte de uma figura militar cimeira de que Portugal não conseguiria vencer as guerras militarmente e de que o futuro teria que passar necessariamente por uma solução política. É certo que Spínola não é a primeira pessoa a dizê-lo, mas isto dito e publicado, repito, por uma figura de destaque, funcionou como uma verdadeira pedrada no charco e teve grande acolhimento em meios políticos e militares, em círculos diplomáticos e empresariais, na sociedade em geral.

Spínola à frente da Junta de Salvação Nacional no 25 de Abril em vez de Costa Gomes foi só por ausência do segundo?
Não foi a única razão, embora tivesse contribuído para essa decisão. A liderança da JSN advém do facto de Spínola se ter tornado a figura de destaque no dia 25 de Abril de 1974, quando se deslocou ao Quartel do Carmo para receber o poder das mãos de Marcelo Caetano. Na verdade, nas reuniões preparatórias da revolução, os capitães de abril tinham sempre votado em Costa Gomes para ser a figura cimeira da nova situação. Mas no dia 25 não só Costa Gomes esteve incontactável, como próprio Caetano sugeriu a figura de Spínola para assegurar essa transição. Este teve o cuidado de contactar o centro de comando do MFA para, de certa maneira, legitimar esta situação. A resposta que recebeu de Otelo foi favorável.

Spínola entrou em rutura com o MFA por megalomania pessoal ou por verdadeiramente recear uma ditadura comunista?
As diferenças entre Spínola e o MFA são anteriores ao 25 de Abril de 1974. Ou, melhor dizendo, existia no MFA, desde o início, uma corrente “spinolista” que diferia da corrente maioritária e dirigente do movimento. Spínola acalentava a ideia de fazer uma transição sem revolução, em que de alguma maneira fosse possível convencer Marcelo Caetano ou a apoiar a sua ascensão à Presidência da República ou mesmo a abdicar da chefia do Governo. O movimento dos capitães serviria apenas, neste cenário, como uma demonstração de força, uma espécie de pronunciamento, que permitisse um golpe palaciano. Mas o MFA não esteve pelos ajustes: o seu projeto era de democratização e descolonização, o seu programa apontava para a realização de eleições a breve trecho e não para a mera legitimação do projeto pessoal de Spínola

Depois do 11 de Março, Spínola liderou, de facto, uma reação de direita em Portugal, a partir do exílio?
Sim, liderou esse processo, pelo menos em termos de figura agregadora, quase de símbolo dessa reação que eu qualificaria de extrema-direita e não de direita, uma vez que os partidos políticos da direita tinham aceitado participar no jogo democrático. Spínola, então exilado no Brasil, desempenhou um papel ativo na criação e consolidação do MDLP, um movimento político-militar com o objetivo de resistir à alegada implantação de uma “ditadura comunista” que, na sua opinião, estava em marcha desde Março de 1975. O MDLP seria responsável por uma grave onda de violência em Portugal, com atentados a sedes de partidos políticos e com assassinatos.
Como foi o regresso a Portugal?
Esse regresso foi preparado no contexto da progressiva normalização da vida política e militar em Portugal, ao longo do ano de 1976. Spínola regressou em agosto de 1976 e foi imediatamente preso e levado para o forte de Caxias, onde seria ouvido a propósito da sua ligação aos acontecimentos de 11 de Março de 1975 e também da sua ligação ao MDLP. A falta de indícios formais e claros ditou a sua libertação a 12 de agosto de 1976. Meses depois publicaria o livro intitulado Ao Serviço de Portugal, no qual reuniu discursos e intervenções públicas dos períodos em que foi presidente da República e em que esteve no exílio. Em novembro de 1976, seria formalmente ilibado no processo relativo ao 11 de março.

Houve reconciliação entre Spínola e o Portugal democrático?
Em parte. Houve um esforço dos responsáveis políticos e militares portugueses. Spínola seria reintegrado nas Forças Armadas em março de 1978 e promovido a Marechal em 1981. Depois, em 1984, o então primeiro-ministro Mário Soares nomeou Spínola para presidir às comemorações do 10.º aniversário do 25 de Abril, decisão que suscitou também grande polémica. Depois, já com Soares em Belém, Spínola seria nomeado Chanceler das Antigas Ordens Militares. De certo modo, pode dizer-se que o país, pelo menos o Portugal democrático representado por Mário Soares enquanto primeiro-ministro e, depois, Presidente da República fez esse esforço de reconciliação. Outra questão será saber se o próprio Spínola se terá alguma vez reconciliado com o Portugal democrático.

Que lugar tem Spínola na História de Portugal?
Esta pergunta impõe uma reflexão prévia sobre o que significa ter um “lugar” na História. A História engloba instituições, grupos, indivíduos que tiveram contributos diversos, umas vezes associados a desenvolvimentos que consideramos positivos, outras vezes associados a ideias e práticas que não se coadunam com os valores das sociedades democráticas contemporâneas. Dito isto, o percurso militar e político de Spínola ficará marcado por quatro dimensões essenciais: o chefe militar e líder das tropas portuguesas na guerra colonial na Guiné-Bissau; o autor do livro Portugal e o Futuro, com profundas ondas de choque na sociedade portuguesa até ao 25 de Abril de 1974; o primeiro Presidente da República, com propostas de organização política do país e de descolonização do império que se revelaram desajustadas perante o contexto da época; o exilado, criador e dinamizador do MDLP.

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