"Os políticos têm todos medo da justiça. Esse é um dos grandes problemas em Portugal"

Na segunda parte da conversa com o DN, o presidente da Câmara de Oeiras denuncia a falta de coragem política em relação ao novo aeroporto de Lisboa, sublinha a importância do turismo para o seu concelho e garante não estar zangado com a justiça, mas critica a falta de escrutínio a que esta é sujeita em Portugal.

O senhor foi ministro das Cidades, Ordenamento do Território e do Ambiente, em relação ao futuro aeroporto de Lisboa, qual é a sua expectativa? O que é que está a faltar? É uma falta de vontade política, é um desentendimento?
Essa é justamente a dificuldade desta maioria absoluta. Repare, como é possível estarmos a ficar na cauda da Europa? É engraçado, toda a gente choraminga que estamos a ficar na cauda da Europa, mas ninguém se pergunta porquê. Uma das razões é justamente a incapacidade de tomar decisões. E a maioria absoluta é para se tomarem decisões. Faz algum sentido que no ano passado o primeiro-ministro tenha dito que só em 2024 é que havia uma decisão porque tinha de ser consensualizada com o PSD? Sim, tinha de ser consensualizada, mas era preciso esperar por 2024? Porque não antes? Estamos à espera de quê? Não tem qualquer sentido.

É uma falta de coragem política, no seu entender?
Claro que é uma falta de coragem política, como por detrás de todas as decisões. Com o TGV é a mesma coisa. E porque é que o governo está a decidir em relação à habitação? O governo está-se a sentir muito apertado na questão da habitação, está a ser uma coisa muito grave e pode traduzir-se numa crise social tremenda. O governo, neste caso, apercebeu-se. Não sei se foi a Marina Gonçalves, a ministra da habitação, que é uma jovem, mas que tem muita capacidade e, pelo que já vi, está muito empenhada. Mas o país não anda para a frente porque somos um país em que em qualquer organismo público um técnico de segunda dá um parecer e dali para cima ninguém se atreve a contrariar o parecer. Tudo tem medo.

No caso do aeroporto, tem uma localização preferida?
Do que conheço, nunca percebi porque é que saiu de Alenquer, da zona da Ota. A verdade é que demorou este tempo todo, mudou-se aqui para Alcochete, mas do que hoje tenho ouvido sobre as diversas localizações, há uma que provavelmente ninguém contesta, que é Santarém.

Então acha que o aeroporto poderá acabar por ficar em Santarém?
Não, acho que não vai ficar em Santarém. Acho que vamos continuar a ter uma meia decisão, iremos ter aeroporto aqui onde está, porque vai haver sempre aquele argumento de que o aeroporto está em cima da cidade de Lisboa, e, portanto, isto tem vantagens económicas altamente competitivas. Hoje temos consciência que o prejuízo, do ponto de vista da geração de riqueza, da criação de emprego, etc., está a ser tremendo. É uma não decisão. Há decisões que não sendo tomadas, não têm de imediato um prejuízo grave, mas neste caso, tem.

Disse que poderá ser uma meia decisão, portanto manter a Portela e ter algum aeroporto do outro lado do Tejo?
A Portela e o Montijo ou a Portela e Alcochete - vai ser qualquer coisa assim desse género. Não há capacidade de tomar uma decisão por inteiro. Como na habitação, por exemplo, não há coragem de dizer que entramos nos terrenos rústicos e na reserva agrícola nacional, o que for preciso para resolver o problema da habitação em Portugal. Repare, o problema na área da saúde, por exemplo, parcerias público-privadas, fazem-se ou não se fazem?

Sobre o novo aeroporto. "Claro que é uma falta de coragem política, como por detrás de todas as decisões. Com o TGV é a mesma coisa."

É mais um complexo ideológico que está por trás dessa situação?
Claro que é, com certeza. Esse é um dos grandes problemas. Não é possível ter um acordo, o Partido Socialista está muito prisioneiro dos partidos à sua esquerda.

Mas tem uma maioria absoluta, já não há geringonça. Porquê essa dependência?
Porque pensa-se pouco, pensa-se mais na carreira política de cada um do que propriamente no país. Há pouco patriotismo neste país. Eu acho que esse é o grande problema. Realmente, uma maioria absoluta que tem tudo para poder tomar boas decisões, porque é que não as toma? Porque há outros interesses que se sobrepõem às boas decisões. Há outros interesses, às vezes até ambições pessoais e nós vemos isso. Temos um Guterres que foi para as Nações Unidas, temos um Barroso que foi para a Comissão Europeia, agora António Costa quer ir para outro lado qualquer. E depois também há um outro problema: não há hábitos de planeamento em Portugal. Às vezes as pessoas questionam-se, por exemplo, porque é que Oeiras é um case study? Oeiras gera 26 mil milhões de volume de negócios por ano. O Porto gera 14 mil milhões e é a segunda cidade do país. O turismo nacional, que é fundamental, gera 18 mil milhões - todo o turismo nacional. Portanto, menos 8 mil milhões do que a riqueza gerada em Oeiras. Isto não é mero acaso. Nos anos 80, quando Lisboa era uma cidade escura, cinzenta, suja e em que as empresas se sentiam abafadas, começava-se a falar em Portugal no Silicon Valley, nos parques tecnológicos, nos tecnopolos, mas em Portugal não havia nada. Em Oeiras fomos a Silicon Valley, fomos a Grenoble, fomos a Manchester. Visitámos tudo o que era parques tecnológicos por essa Europa fora e nos Estados Unidos. Aliás, houve um homem que teve uma influência extraordinária e que acho que nunca lhe fizeram a justiça devida no desenvolvimento deste país, que foi o professor Valente Oliveira. Foi ele a primeira pessoa que me falou nos parques de ciência e tecnologia, tecnopolos e por aí fora. E, portanto, começámos a planear o território em Oeiras a 30 anos de distância, na altura foram ouvidos sindicalistas, empresários, professores, universitários, toda a gente se pronunciou. E foi assim que nasceu a ideia e o conceito da criação de parques empresariais, que começaram a ser preenchidos e foi um sucesso extraordinário.

E como é que hoje Oeiras continua a ser diferenciadora em relação aos outros municípios para continuar a atrair empresas?
Continua por uma razão, porque entretanto tem massa crítica, foram criadas infraestruturas adequadas. Há 20 ou 30 anos, se uma empresa de tecnologia queria ir para Oeiras, normalmente ia para o Tagus Park, para a Quinta da Fonte ou para o Lagoas Park. Mas, entretanto, temos a OutSystem, por exemplo, em Linda-a-Velha. Portanto, multinacionais na área das tecnologias de informação, das tecnologias no âmbito das telecomunicações, marítimas, submarinas, etc., esse core está em Oeiras. Nas biotecnologias, nas farmacêuticas, nas tecnologias de informação. E, portanto, se antigamente a Câmara Municipal tinha de fazer uma espécie de diplomacia e falar com os empresários, hoje já são eles que procuram. Temos 118 nacionalidades em Oeiras. E há uns dias visitei uma empresa que tem sede em Silicon Valley com 3 mil funcionários, tem 300 aqui em Portugal, mais 600 ou 700 em Bangalore, na Índia. A Cisco, a Google, a Novartis, há uma grande quantidade de empresas, no domínio dos medicamentos, de farmacêuticas e da computação. O que é que acontece? Já não basta o governo dizer a uma empresa para ir para aqui ou para ali, as empresas hoje querem ficar ali, justamente porque, quer ao nível do sistema de telecomunicações, quer ao nível das redes de equipamento escolares, sociais, culturais, etc., ao nível das infraestruturas de comunicações, a tudo isso Oeiras responde.

Oeiras também tem um polo do Instituto Superior Técnico, no Tagus Park. Poderá, no futuro, atrair outros tipos de instituições?
Há várias instituições. Por exemplo, há cada vez há mais escolas internacionais ao nível do secundário e algumas delas têm percentagens de portugueses de 10%.

E mantém-se o interesse da Academia Aga Khan em ir para Oeiras? Há uma negociação que continua em curso?
A Academia Aga Khan quer ir para Oeiras justamente porque há localização estratégica. De um lado temos o Tejo e Almada , temos Lisboa, do outro lado temos Cascais, temos Sintra, temos Amadora. Oeiras é o centro da área metropolitana de Lisboa.

Quando poderá haver uma decisão sobre essa Academia?
A decisão está tomada. Da parte da Câmara Municipal já foi decidido declarar o interesse público desse investimento. E, portanto, está o plano em elaboração e o governo há de se pronunciar. E estou convencido que, até meados do próximo ano, haverá uma decisão já definitiva sobre isso.

Falou também das várias infraestruturas e a mobilidade é uma delas. Sei que quer ressuscitar, não o SATU [Sistema Automático de Transporte Urbano] tal como ele existe, mas aproveitando um bocadinho esse conceito que Oeiras já tinha. De uma forma muito simples para os leitores perceberem, o que é que vai acontecer na nova era do SATU, na sua nova vida?
O SATU foi extinto na altura da Troika justamente com o argumento de que a empresa tinha dado três anos sucessivos de prejuízo e, portanto, tinha de ser extinta, quando nunca chegou a finalizar o investimento, que estava ainda na primeira fase. O SATU foi extinto em 2014 ou 2015. Entretanto, a Câmara Municipal decidiu retomar esse projeto, foi ouvida a Câmara Municipal de Sintra, e, de acordo com o estudo de tráfego, praticamente dois terços dos passageiros são de Sintra, portanto, Sintra beneficia muito mais desse modo de transporte. Finalmente já se chegou à conclusão que este modo de transporte não é um modo de transporte de Oeiras, faz parte da rede metropolitana, e a própria rede metropolitana de Lisboa o considera como tal. E, portanto, da Estação de Paço de Arcos à Estação do Cacém, praticamente dois terços dos passageiros vêm de Sintra. Sintra já está a fazer um estudo de procura nesse sentido e já assinou um acordo connosco com um grupo de trabalho que envolve as duas câmaras. Portanto, digamos que a solução que se está a encontrar é politicamente mais robusta hoje, porque envolve as Câmaras de Oeiras e Sintra, e envolve toda a área metropolitana de Lisboa. É considerado um projeto de interesse metropolitano e nacional e muda, realmente, o tipo de transporte. Era um sistema de elevador deitado, porque tinha a ver com a facilidade de vencer o desnível entre a Estação de Paço de Arcos e o Oeiras Parque. Entretanto, nestes anos todos, houve uma evolução tecnológica extraordinária e aquilo que fez com que fosse na altura um elevador deitado, mantém-se a via dedicada. A infraestrutura que está construída mantém-se, irá ser continuada na maior parte da sua extensão, mas haverá pontos, numa situação ou outra, que pode ser de nível, embora, como digo, sempre dedicada, num sistema de autocarros bidirecionais. Curiosamente com tecnologia que nasceu há cerca de dois anos e que, ainda por cima, embaratece muito mais. Estávamos a falar de um investimento que andaria entre os 120 e os 150 milhões de euros e agora variará entre os 70 e os 110 milhões. Portanto, está o projeto em andamento e acho que se tudo correr bem, no próximo ano, poderemos estar a abrir o concurso público para a segunda fase.

Falemos do turismo e de como é importante para o país e também para Oeiras. O edifício histórico onde atualmente está a Câmara Municipal poderá vir a ser um hotel?
Felizmente, em Oeiras estão a nascer vários hotéis. Durante muito tempo, o turismo em Oeiras nasceu um bocadinho pela via dos negócios. Apesar de estarmos aqui entre Cascais, que é uma potência turística, e Lisboa, a capital, atualmente já se vê muito turista, particularmente em Oeiras, em Paço de Arcos, em Algés. Entretanto, surgiram vários hotéis em Oeiras e, neste momento, estão em construção mais três e irá nascer mais um em Caxias que está a ser negociado com o Ministério da Defesa e o Turismo. Eu diria que dentro de três anos, possivelmente, temos mais cinco hotéis. Agora, em relação aos edifícios que constituem hoje os Paços do Concelho, onde está a Câmara, onde temos os serviços municipalizados, ainda não está bem definido o que vai ser a utilização daquele conjunto. No que diz respeito ao Palácio, este é um aspeto fundamental - porque está ocupado com funcionários da Câmara, está lá a cultura e a área social. Se a Câmara Municipal quisesse fazer hoje um espaço daqueles, nem com cem milhões de euros o conseguiria, fazer um centro cultural com aquela dimensão. Ora bem, a construção do novo edifício da Câmara liberta-nos na totalidade daquele Palácio. Só essa libertação já justifica o custo do novo edifício municipal. E o que é que vai funcionar aí? Em princípio, um centro de artes criativas, de ciência viva. Por outro lado, em relação ao edifício onde funciona a Câmara atualmente, na impossibilidade de fazer um hotel no Palácio, até porque, embora pudesse ficar bonito um hotel ali, tem um problema: aquilo era uma residência e, portanto, é um património histórico muito importante. A adaptação ao hotel implicava praticamente demolir tudo lá por dentro e isso não é possível. São salas com pinturas e, portanto, o destino é, de facto, fazer ali um museu, exposições, etc. Na parte da Câmara, onde está a Presidência da Câmara, aí uma parte continuará, do ponto de vista da representação, como espaço do presidente da Câmara. Ao nível do rés do chão, nascerá aquilo que podemos designar como um museu da cidade. E depois, no outro edifício ao lado, aí sim, tanto pode ser um hotel, como pode vir a ser uma escola na área do turismo. Ainda não está bem definido, mas será ligado, com certeza, à hotelaria e turismo.

"Entretanto, surgiram vários hotéis em Oeiras e, neste momento, estão em construção mais três e irá nascer mais um em Caxias que está a ser negociado com o Ministério da Defesa e o Turismo."

Quando é que poderá haver uma decisão acerca disso?
No próximo ano.

Quando é que estará pronto o novo edifício da Câmara Municipal?
No próximo ano também.

Falemos agora de outra área que lhe é cara: a agricultura. O vinho de Carcavelos tem feito o seu caminho, houve investimentos na Adega. Como é que a agricultura entrou na equação de Oeiras, ou reentrou, tendo em conta que o vinho de Carcavelos é um símbolo do concelho?
Acho que as Câmaras Municipais são, de facto, o último repositório da defesa da identidade das comunidades. E, portanto, é natural que qualquer Câmara Municipal tenha uma sensibilidade especial, mais do que o governo, para a defesa de determinadas culturas que são muito identitárias de um território. No caso do vinho, é interessante porque era um organismo do Estado, a Estação Agronómica Nacional, que cuidava da vinha em Oeiras. A chamada região demarcada do Vinho de Carcavelos é, por sinal, a mais pequena região demarcada do país. Foi demarcada no tempo do Marquês de Pombal e na altura dizia-se que o vinho de Carcavelos era tão bom, tão bom, que as 900 pipas do Marquês de Pombal iam todas para o Douro para enriquecer o vinho do Porto. Portanto, teoricamente, o vinho de Carcavelos ainda era melhor que o vinho do Porto. Também há quem diga que isso tem a ver com a pujança, a capacidade e o poder do Marquês de Pombal, que dava até para, em primeiro lugar, exportar o seu vinho. Entretanto, aquilo estava em vias de extinção, havia lá três ou quatro hectares onde se produzia vinho, mas a Estação Agronómica Nacional não tinha condições para a sua exploração.

A Câmara de Oeiras, apercebendo-se da situação, decidiu colocar a questão ao Ministério da Agricultura. Na altura, era Ministro da Agricultura Capoulas Santos, que aceitou muito bem o projeto. A Câmara tomou conta, fizemos um protocolo e gradualmente fomos plantando vinha. Dos três hectares iniciais, neste momento já estamos com cerca de 17. E dos três ou quatro mil litros de vinho que se estavam a produzir na altura, neste momento já estamos com perto de 60 mil. Qual era o propósito da Câmara? Salvaguardar do ponto de vista turístico, cultural, patrimonial, aquele produto. E, portanto, não era ganhar dinheiro sequer, era salvaguardar. Curiosamente, os anos foram decorrendo, neste momento, só vendemos o vinho com sete, 15 e 20 anos, e vão sendo vendidos alguns produtos intermédios.

Por exemplo, em breve vamos colocar à venda um vinho, Torna-Viagem, que era para ir aos Jogos Olímpicos, no navio escola Sagres, duas pipas foram até ao Cabo Horn, na Argentina, passaram duas vezes o Equador, mas depois, com a covid, os Jogos Olímpicos não se realizaram e voltaram para trás. De qualquer modo já se pode chamar Torna-Viagem. Portanto, é um vinho especial que vai ser vendido a 500 euros a garrafa. Temos um outro vinho que vai ser posto à venda muito brevemente, que é o vinho das guitarras. Alguém nos encontrou duas ou três pipas ainda do século XVIII, dizem que do tempo do Marquês de Pombal, comprámos as pipas e dessa madeira fizemos guitarras portuguesas e fizeram-se duas ou três pipas mais pequenas onde se envelheceu o vinho. Portanto, em breve também se vai vender esse vinho em garrafas com a forma de cordas de uma guitarra. Há coisa de uma semana, isto para ver a diversidade de produtos que isto permite, colocámos 14 pipas no Forte do Bugio, porque com as marés vivas as ondas passam por cima das pipas. Então, vai chamar-se Carcavelos Villa-Oeiras Bugio.

Estas apostas permitiram, no fundo, equilibrar as contas da adega?
Estamos a diversificar os produtos. Construímos uma nova adega, plantámos mais vinha, com 17 hectares, construímos uma adega na Quinta de Cima, recuperámos a adega do Marquês de Pombal, do século XVIII, e portanto aquilo que era um produto cultural, turístico e patrimonial, acabou por se transformar num produto com valor económico. Neste momento o município já não tem prejuízo, já tem lucros com este produto. Durante quanto tempo é que a Câmara o vai manter, vamos ver.

À semelhança disto, entendemos valorizar outros produtos. E, como digo, só as Câmaras Municipais é que podem fazer isto. Plantámos muitas oliveiras no concelho, já não há nenhum produtor de azeite em Oeiras, mas trouxe três mil oliveiras aqui há uns anos do Alentejo, do Alqueva, algumas delas têm mais de mil anos. Foram plantadas um pouco por todo o concelho. Há dois anos fizemos uma experiência e conseguimos fazer azeite com 0,7 décimas, portanto, extravirgem, um azeite extraordinário. Este ano tudo indica que vai haver muita azeitona, mas tem de chover algures lá para o mês de junho. Estamos a fazer a primeira experiência com mel e como na Quinta de Cima o Marquês de Pombal chegou a produzir seda, havia mesmo a casa do Bicho da Seda, vamos produzir Bicho da Seda, logo seda, e eventualmente colchas em seda, isto tudo de um ponto de vista pedagógico com as escolas. É a dimensão agrícola do concelho de Oeiras, o que é extraordinário num município urbano, essencialmente urbano, e que tem esta capacidade de trazer ao de cima alguns produtos que há 200 anos o tornaram famoso também.

Mas além do regresso às raízes, está por trás disso também uma aposta turística mais forte?
Com certeza que tem interesse cultural, patrimonial e turístico. A adega vai estar aberta diariamente e, introduzindo uma rota turística aqui da Costa do Estoril, está a ver a possibilidade, praticamente dentro de Lisboa, de poder visitar uma adega extraordinária, fazer uma prova de vinhos, etc. Tudo isso já é possível neste momento.

É inevitável terminarmos a entrevista falando de justiça, porque ela é importante. E é sabido de todos que o senhor esteve detido, voltou, foi reeleito. Os eleitores do Oeiras quiseram-no de volta à cidade e a tomar as rédeas do município. Passados estes anos todos, o que é que aprendeu com tudo isso que lhe aconteceu? Com essa sua experiência de vida?
Nós aprendemos sempre, penso que aprendemos sempre, seja qual for a experiência. Aprendemos com experiências boas e com experiências más. Sentimo-nos injustiçados ou justiçados. Naquelas em que nos sentimos justiçados, obviamente que nos provoca sentimentos de reconhecimento, para com quem nos faz essa justiça. E sentir o reconhecimento dos outros é algo que nos enriquece extraordinariamente, porque nos dá força para continuarmos a fazer aquilo que foi objeto de reconhecimento. Se somos injustiçados podemos ter um sentimento, curiosamente, que nos provoca a mesma força. Que é de não nos deixarmos abater por aquilo que de mal nos acontece. É fundamental que as pessoas sejam capazes de reagir na adversidade. E, portanto, a nossa natureza, a nossa alma, tem de lutar por aquilo em que acredita. E acho que coisas boas e coisas más, todas elas devem contribuir do mesmo modo para a nossa força de caráter.

E fez as pazes com a justiça?
As pazes? Nunca estive zangado com a justiça, a justiça é fundamental, mas a justiça é uma coisa, os homens e as mulheres da justiça outra. O direito é outra. Obviamente que os juízes e os procuradores são homens e mulheres, há de tudo, bons, maus, competentes e incompetentes. E, portanto, tive o azar de não ter as melhores pessoas a julgar o meu caso. Mas isso não me leva a zangar-me com a justiça. Por outro lado, temos de ter sempre confiança na justiça, temos de acreditar que as situações anómalas na justiça são mesmo situações excecionais. Porque a justiça é realmente o último reduto de defesa de cada um. Que um cidadão nos insulte, que nos queira fazer mal, nos queira prejudicar, é compreensível, pode abonar mais ou menos no seu caráter, mas a justiça é justamente para fazer justiça. A instituição judicial é para filtrar depois de tudo filtrado. Portanto, é pressuposto que, seja ao nível do Ministério Público, seja ao nível da justiça, não sejam influenciados negativamente ou positivamente, não interessa, por aquilo que houve. Está a ver o problema? A questão é que os homens e as mulheres da justiça são pessoas falíveis. O que está mal não é na justiça, o que está mal é na comunicação social e em quem avalia a justiça, porque partem do princípio que a justiça tem sempre razão, que as sentenças são sempre corretas. Um dos grandes problemas em Portugal é não haver nem escrutínio, nem controlo dessas decisões. Parte-se do princípio de que há independência. E então os políticos cobardes dizem normalmente "à justiça o que é da justiça, à política o que é da política". São uns mentirosos. Porque na realidade todos os dias se intrometem na justiça.

Quando fui preso, o doutor Passos Coelho todos os dias dizia "à justiça o que é da justiça, à política o que é da política", mas a ministra da Justiça, nas televisões, dizia que era preciso prender o Isaltino, que já devia estar preso. Isto não pode acontecer, mas acontecia e o próprio Procurador da República da altura, o Pinto Monteiro, fazia o mesmo e o Noronha Nascimento fazia o mesmo. Portanto, o que está errado na justiça é esta hipocrisia, porque o Parlamento deve controlar a justiça, as decisões da justiça devem ser escrutinadas. O escrutínio, não é apenas por via do pedido de recurso. A primeira instância dá uma decisão e parte do princípio que depois a Relação vai corrigir, se tiver de corrigir. E se a Relação não o fizer, faz o Supremo, mas tudo isto é mentira. Porque para limpar o trabalho dos tribunais superiores, por exemplo, o que é que acontece? Um indivíduo que é condenado a uma pena inferior a oito anos de prisão, não há recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Mas que raio de justiça é esta? E, portanto, como é que se controla? O que é que acontece? Muitos dos juízes, para não haver recurso para o Supremo, em vez de darem uma pena de oito anos de prisão, ou nove, ou oito e meio, dão sete. Portanto, há muita coisa a fazer pela justiça em Portugal.

Num caso mais atual, a Operação Marquês, têm vindo notícias a público de que poderá não dar em nada, mas realmente é a justiça que não funciona ou é a política que a manipula?
Não, a política não tem a ver com o assunto. Aliás, ao contrário do que dizem, a política não tem a ver com a justiça. A política devia interferir muito mais na justiça, designadamente o Parlamento, através do controlo, do escrutínio, de sentenças, de decisões, etc.

Mas aí não fica em causa a separação de poderes?
Não, porque a separação de poderes não tem a ver com isso. A independência de um juiz significa que ele é totalmente independente quando vai proferir a sua decisão. Independente e irresponsável. O que é que quer dizer irresponsável? Não é irresponsável no sentido que nós lhe damos, no sentido da semântica vulgar de irresponsável. O juiz é irresponsável na sua decisão, porque ele sabe que dá esta pena, mas nada lhe vai acontecer pelo facto de a dar. Portanto, o juiz, quando está a tomar a sua decisão, é soberano e nada lhe pode acontecer por via desta decisão. É o que significa independência, imparcialidade e irresponsabilidade. Isso não significa que não esteja a dar uma pena, por exemplo, que é injusta, que decorre de incompetência do próprio juiz ou que decorre mesmo de maldade. Ora, nessas circunstâncias, tem de ser escrutinada a decisão. E há muitos modelos de fazer isso, pode ser por amostra, pode ser por várias circunstâncias. Agora, dizer que a política intervém na justiça, não, porque os políticos têm todos medo da justiça. Esse é um dos grandes problemas em Portugal. É que quem não é independente em Portugal são os políticos. Têm medo de falar da justiça. Uma coisa é a separação de poderes nesta perspetiva, mas atenção, voltamos ao checks and balances. Não é o Presidente da República, nem é o primeiro-ministro, é em sede de Parlamento que deve haver a criação de condições para que a justiça possa ser escrutinada. A justiça não é autogoverno puro. Em Portugal o Ministério Público é autogoverno. Então, isto é um problema de autogoverno. Portanto, isto está tudo errado.

Este problema da Operação Marquês, como outros, prescreve se tiver de prescrever, porque é um processo complexo. O Sócrates foi preso na altura e possivelmente não tinham nada contra ele, a não ser suspeitas. Esse é o problema ainda. Há muitas prescrições, simplesmente as pessoas só dão por ela em relação àqueles casos mais mediáticos, mas todos os dias há prescrições. Mas não se pense que é porque os políticos interferem. Em casos como a Operação Marquês, os políticos fogem disso como o diabo da cruz. Pelo contrário, sacrifiquem lá o Sócrates, queimem-no lá, porque nós não queremos nada com ele. Este é que é o problema na sociedade portuguesa. Porque ainda por cima, isto é o que acontece na questão dos serviços prisionais, porque quando há um problema destes, normalmente na justiça, com alguém conhecido, agravem-se as penas, porque acham que a punição é que acaba com os criminosos. Mas não, o que pode acabar com os criminosos é a rapidez com que se aplica a pena. Agravem-se as penas. É a justiça da pena.

O senhor é formado em Direito, fala-se há muitos anos da reforma da justiça. Que reforma é essa que está a faltar? Que mensagem seria importante Isaltino Morais deixar aqui à senhora ministra da Justiça nessa matéria?
Não é fácil. Quando se fala da reforma da justiça, no fundo, o que é que as pessoas pensam? Sobretudo na morosidade da justiça. Porque nós, como em tudo na vida, temos bons juízes e maus juízes, bons procuradores e maus procuradores. Eu diria que o problema não está propriamente nas magistraturas, embora julgue que temos, comparativamente com outros países, magistrados a mais. Mas nós temos a mais praticamente em tudo.

Deputados também temos a mais?
Não, não me parece que haja deputados a mais, nem chega a 300. Quando se fala em reforma da justiça, quase todas as pessoas pensam na justiça penal. E eu acho que o problema principal da justiça não está na justiça penal. Esta é mais escrutinada no sentido de quem está a ser julgado. Se é um político por corrupção ou por outra coisa qualquer, a comunicação social acompanha, ou se é um criminoso, um homicida conhecido, se há aqui reincidência, é também muito acompanhado. Onde está o principal problema da justiça é na justiça cível, ou seja, aqui é vulgar um processo arrastar-se durante 10, 15, 20 anos. Uma situação de partilhas, um processo de natureza administrativa, que pode levar à falência de várias empresas. Situações que podiam ser resolvidas em dois ou três meses, mas que se arrastam anos e anos nos tribunais.

A lentidão cria injustiças, é isso que está a dizer?
Naturalmente. E o que é que deveria acontecer? Na minha opinião, é certo que a justiça carece de reflexão, a justiça carece de tempo, também carece de maturidade - nós lançamos os jovens muito novos às feras. Pomos jovens com 25 anos a julgar casos muito complicados sem terem experiência da evolução sociológica, enfim, da sociedade. Portanto, o estabelecimento de prazos para as decisões, acho que era fundamental. A justiça não tem prazo, teoricamente tem, mas ninguém cumpre. E, portanto, o processo civil deveria ser revisto de maneira a garantir condições e limitar aquela quase impossibilidade de poder tomar uma decisão em vida de quem põe o problema. Justiça civil, administrativa, que tem a ver com todos os processos que andam à volta do Estado, demora, arrasta-se durante anos. Também, ao nível do processo penal, ao contrário daquilo que se diz, a questão da salvaguarda dos direitos de recurso por parte dos cidadãos, criou-se a ideia de manobras dilatórias, por parte dos arguidos. E essas manobras dilatórias não passam de mecanismos de defesa consagrados na Constituição. Para alguns, acabava-se com isso tudo e, portanto, voltamos à inquisição. Quer dizer, não adianta nada todas as reformas no processo penal e no processo civil que se têm feito nos últimos 20 anos, são sempre no sentido de facilitar a vida dos juízes e complicar a vida do cidadão. Ora bem, a justiça está ao serviço do cidadão. E quando se diz que há uma justiça para os ricos e outra para os pobres, é verdade. É verdade porque os pobres não têm condições de pôr uma ação em tribunal. Em Portugal, qualquer processo tem de se pagar à cabeça, caso contrário, não anda.

Por outro lado, é preciso maior controlo do processo investigatório ao nível das polícias e do Ministério Público, que neste momento é uma devassa dos cidadãos, da vida dos cidadãos. Muitas vezes, para se investigar alguém faz-se uma escuta telefónica. Isto mostra como o Presidente da República não funciona nesta matéria, o primeiro-ministro também não funciona e o Parlamento também não. Vou dar um exemplo, há pouco tempo tivemos conhecimento de que tinha sido feita uma busca à Presidente da Câmara Municipal de Matosinhos, a propósito de ter nomeado o seu chefe de gabinete, por um despacho, sem concurso. E, portanto, foi feita uma busca por via disso. Ora bem, não vi um comentário do Presidente da República, isto foi uma devassa ao gabinete da Presidente da Câmara Matosinhos, não ouvi um comentário do primeiro-ministro, não ouvi um comentário do Parlamento, de ninguém. A Polícia Judiciária e o Ministério estão-se a meter numa situação com a qual não têm nada a ver. Atenção, o chefe de gabinete está nomeado livremente, de acordo com a lei. Mas porque é que ninguém disse isto? Porque têm medo, é uma coisa lamentável. Porque depois lança-se o anátema sobre todos os autarcas, porque todos os autarcas nomeiam o chefe de gabinete e os adjuntos livremente, porque a lei diz que são cargos de confiança. Ninguém pia, ninguém abriu a boca. Portanto, mostra que não há independência. Não há independência do ponto de vista político, do ponto de vista judicial, ao nível do Parlamento. Sacrificaram a senhora. Pelos vistos, ainda hoje toda a gente pensa que isto é estranho, porque o cidadão comum não tem a obrigação de saber estas coisas, mas lançam a suspeição e ninguém vem explicar nada. Pronto, está tudo dito sobre a independência da nossa justiça e sobre a perspetiva que os diferentes poderes têm relativamente ao funcionamento da justiça. Quer dizer, todos se calaram porque ficaram a ver - qualquer dia aparecem-me aqui a mim, portanto, é melhor não dizer nada.

rosalia.amorim@dn.pt

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG