"Os líderes políticos não devem contribuir para fazer do populismo o novo fascismo"

O ex-assessor de Passos Coelho e ex-deputado do PSD escreveu novo livro sobre soberanias e o perigo de as sacudir demais e abrir porta à desordem. Mantém em entrevista ao DN que convergência da direita é inevitável e que cabe ao Chega saber se aceita os princípios reformadores e europeístas.
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O título do seu novo livro é Soberania - Os usos e abusos na vida política. Que usos e abusos foram esses?

O livro tem o propósito de mostrar de onde vem a ideia e a prática de soberania, e para isso foi preciso recorrer à teologia, à história da igreja, às interpretações que foram feitas das escrituras, para fundar o poder papal, a soberania nasce aí. Noção que depois é apropriada pelos políticos, pelos reis e imperadores. Por isso começo o livro pela soberania de Deus. A partir daí, podemos contar uma história e como essa ideia é tão poderosa e transformadora, talvez a ideia política mais importante dos últimos mil anos. Mas como em todas as coisas da vida e da política, há os usos e abusos da soberania e ainda há uma última categoria de abusos, que foco no livro e que está implícita no subtítulo, que é o modo como nós hoje falamos de soberania de uma maneira muito anárquica, muito arbitrária no discurso político, jornalístico e até académico. Também quis escrever o livro para tentar propor algumas regras de orientação, as fronteiras do que a soberania é e não é.

Quais os problemas políticos da atualidade que se prendem com esta noção de soberania?

É uma lista longa de problemas. Só para dar alguns exemplos, o da globalização, que só por si já é gigante; o das fronteiras terrestres, da sua justificação ou injustificação, da sua relevância ou irrelevância; o problema de obediência política nas sociedades, a legitimidade do Estado, a integridade da lei, o valor do Estado de direito, e que vão estando em crise.

A União Europeia também se prende com esta noção de soberania ou de partilha dela...

A terceira parte do livro é precisamente sobre a "soberania partilhada", saber se é compatível com o próprio conceito de soberania, na medida em que este, na origem, remetia para uma indivisibilidade do poder político. Tento discutir à luz da experiência da construção da federação de Estados independentes, nomeadamente à luz da experiência americana, que é a mais completa que temos desde o século XVIII até agora. No caso da UE, há uma tensão nunca resolvida quando estamos a transitar de um sistema internacional de Estados independentes para Estados que se juntam numa união política híbrida do ponto de vista da soberania. Por isso é que europeus destacados como Adenauer, Mitterrand e até contemporâneos como Emmanuel Macron ou Mario Draghi colocaram e colocam o problema da soberania mas sempre fora do ponto em que nos encontramos hoje. É como se estivéssemos a meio de uma ponte no processo de integração europeia, que já foi muito longe na integração política, em que os Estados já têm muitas competências fora da sua alçada, mas travaram para si competências soberanas igualmente importantes, e a situação não é estável. Por isso haverá reivindicações crescentes, viu-se isso agora na ressaca da epidemia, na emissão de dívida, na reclamação de mais apoios da UE. Mesmo que os políticos portugueses não o digam, há uma tendência para a defesa de soberania ao nível europeu, ou seja, subtração da soberania a nível nacional. O Tratado de Lisboa introduziu aquela inovação decisiva de conferir a cada um dos Estados-membros o direito de sair da UE, e toda a gente passou a saber o que era o artigo 50 do Tratado. Isso quer dizer que os Estados permanecem, residual mas perentoriamente, soberanos. Porquê? Porque cada dia que Portugal passa dentro da UE é um ato soberano do povo português, porque tem a escolha de sair.

Citaçãocitacao"Os valores políticos desta plataforma são o reformismo e o europeísmo, e não são negociáveis, cabe ao Chega e a outros partidos, como o Iniciativa Liberal e o CDS, saber se querem aderir a esses valores

Existe a ideia errada de que a soberania é uma tentativa de controlo? E, por oposição, surge a noção de liberdade que a combate?

A soberania é um princípio de ordem política. Este livro é, aliás, o segundo de uma trilogia que estou a escrever. Em 2010 escrevi sobre a autoridade, agora sobre a soberania e estou a escrever sobre o amor. A questão política primária é a da ordem, por contraponto à desordem, na medida em que esta representa para nós, seres humanos, miséria, violência e injustiça num grau extremo. Portanto, os seres humanos procuram na política a instauração da ordem, que seja justa. Vemos em muitas situações da história e do mundo atual que às vezes a procura da ordem é tão primordial que até leva a melhor sobre outras prioridades políticas, como a igualdade, a justiça ou a liberdade. Felizmente, não é o caso da Europa, onde conciliamos a ordem com esses valores políticos. A soberania como espécie de pedra angular em cima da qual se pode, de facto, construir uma ordem que protege os indivíduos, que permite o florescimento dos valores humanos, etc. Quando atualmente há vozes que se levantam para acabar com a soberania, que está obsoleta, o meu livro também quer servir de recomendação de prudência. Se abanarem muito a soberania, vejam lá se vem por aí uma ordem política superior, mais livre, mais justa, mais igual, ou se, pelo contrário, se abre uma espécie de brecha por onde entra a desordem. Assim teríamos a perder tudo o que conquistámos, e não é pouco.

Remata o livro a dizer: "Pois era no amor e pelo amor que tudo se decidia. A ordem política também." Amor casa mal com política, ou não?

A questão é olhar para o amor não como o amor erótico. É uma vez mais o amor como um princípio de ordem política que tem sido tratado há muitos séculos. Em Atenas, no séculoV ou IV a. C., na Atenas de Aristóteles e Platão Philia"estruturava uma relação de ordem cívica também, uma relação superior até à de justiça, que é a que temos hoje com o Estado soberano. Quero recuperar essas raízes. Dou dois exemplos que estou a focar no terceiro volume: há uma primeira grande revolução no conceito de amor introduzida pelo Cristianismo, e depois, sobretudo a partir do século XVI até à nossa era, há uma espécie de secularização, de laicização do amor cristão sob a forma de filantropia ou de humanidade, palavra que aparece no século XVIII no sentido de virtude, que quer dizer amor pelo outro ser humano. Mas neste caso já não triangulada, como no Cristianismo, no amor de Deus, na medida em que a política moderna quer remover Deus da estruturação das relações humanas e das políticas. A partir daí, nasce uma espécie de amor político novo, moderno, que explode na Revolução Francesa e depois teria muitos imitadores e repercussões no mundo político e que hoje faz parte do discurso do cosmopolitismo, por contraponto ao discurso do patriotismo, que também está muito em voga na Europa. Patriotismo e cosmopolitismo são duas formas de amor político que remetem para duas formas muito diferentes de organizar a política.

Por falar de amor, foi um defensor de uma união dos partidos não socialistas, mas a convenção do Movimento Europa e Liberdade (MEL), na qual participou, provou que a aproximação do centro-direita está longe de acontecer.

Reconheci que o tempo que vivemos não tem sido o mais favorecido por apoios partidários à ideia da união das direitas. Mas tenho a impressão de que todos os intervenientes ao nível partidário reconhecem a inevitabilidade desta convergência. Mas por ora, uns porque têm os seus pruridos ideológicos, outros porque têm os seus projetos pessoais e partidários, outros porque acham que vão medrar mais numa lógica de conflito dentro da direita do que na convergência, os incentivos não estão aí. É uma convergência em nome de valores políticos que descrevo como do reformismo e valores do europeísmo. Quem não quer aderir a esses valores é livre de o fazer. Continuo a achar que é a proposta política que melhor resposta dá aos desafios do país, que são tremendos. Um país que está a ser governado pelos socialistas há mais de 25 anos, que vai a correr para um lugar de país mais pobre da UE no prazo de 10, 15 anos, que é uma história de fracasso incrível, com razia das instituições e esmagamento da autonomia da sociedade civil precisa, por isso mesmo, de uma alternativa PS.

Citaçãocitacao"Tenho impressão de que todos os intervenientes ao nível partidário reconhecem a inevitabilidade desta convergência [à direita] [...] mas os incentivos não estão aí"

Serão as eleições legislativas que irão determinar se há cola para essa convergência à direita?

Não posso dizer que tenho uma bola de cristal, não sei o que vai acontecer em 2023 e não sei quem serão os líderes partidários que irão a eleições. Estamos longe, os vários partidos, à exceção do Chega, que é um partido de um líder só, vão ter tempo para ver quem irá a eleições, quais serão os seus programas, as suas vontades. E muito menos sei qual será o resultado dessas eleições.

Passos Coelho, o mais aplaudido da convenção, podia ser mesmo a figura capaz de colar estas forças?

Toda a gente sabe qual a relação que tenho como Pedro Passos Coelho, que está fora da política. Tanto quanto sei, ele não está a planear regressar para liderar coisa nenhuma. Se mudar de ideias, terão de lhe perguntar, eu não faço ideia. Acho que os partidos da direita devem pensar em consolidar as lideranças, que sejam respeitadas, que partilhem destes valores do reformismo e do europeísmo e que se possam entender.

O facto do Rui Rio ter dito que mantém o partido ao centro é o principal fator impeditivo do entendimento à direita?

Politicamente não nos entendemos, porque temos uma divergência estratégica de fundo, não de detalhe. Rio considera que o PSD tem ambição de cooperar com o PS para fazer as grandes reformas estruturais. Eu entendo que com o PS nunca haverá reformas estruturais. O PS tem um projeto de poder hegemónico, que vai executando, por isso está-se nas tintas para uma parceria com o PSD, e acho que o país já percebeu isso. Proponho o contrário, fazer as grandes reformas a olhar para outro plano, de modernidade, para elevar os salários dos portugueses, para dar oportunidades de vida aos mais jovens, dar segurança aos mais velhos. Mas, para ser justo para com Rui Rio, não posso dizer que ele é o único impedimento a esta convergência.

Concorda com Paulo Portas, que rejeitou os populismos? É de rejeitar o apoio do Chega?

O populismo tornou-se uma palavra muito conveniente para os políticos, e Paulo Portas é um político - bem sei que agora o querem tratar como um comentador, mas não o é, e utilizam a palavra sem qualquer rigor ou disciplina política. Populismo tornou-se sinónimo daquilo de que não gostamos, e esse uso da linguagem política é péssimo. É verdade que em Portugal se faz isso numa escala completamente fora de qualquer país da Europa, com a história do fascismo - Manuela Ferreira Leite já foi fascista, Cavaco Silva já foi fascista, Sá Carneiro já foi fascista, Pedro Passos Coelho já foi fascista e agora até o coitado do Rui Rio também já foi fascista, porque uma vez disse que o Ventura não merecia ser posto fora do país. Os líderes políticos não devem contribuir para fazer do populismo o novo fascismo, apesar de tudo acho que as coisas devem ser matizadas e devem ser evitadas as grandes hipérboles, porque são uma forma de manipular as pessoas e infantilizar os portugueses. Dito isto, acho que há populismos em Portugal, de esquerda e de direita. No caso do populismo de direita do Chega, o que sobressaltou tanta gente na convenção foi se o partido faz parte ou não deste entendimento, e para mim a resposta é muito clara - a escolha é do Chega. Os valores políticos desta plataforma são o reformismo e o europeísmo e não são negociáveis, cabe ao Chega e a outros partidos, como o Iniciativa Liberal e o CDS, com certeza, saberem se querem aderir a esses valores e incorporá-los na sua ação, propostas e discurso político ou se preferem seguir o seu próprio caminho. Há uma consequência, no entanto, que se retira daqui: se somos livres para escolher aderir ou não a estes valores - e eu reconheço essa liberdade, não quero andar a perseguir as pessoas, como a Ana Gomes que queria ilegalizar o Chega -, quem os escolhe assume a responsabilidade de integrar este projeto político alternativo ao PS. Quem escolhe ficar de fora também tem de assumir a responsabilidade de estar a contribuir para a perpetuação do poder socialista.

paulasa@dn.pt

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