Oito protagonistas fazem o retrato do Estado da Nação
Viriato Soromenho-Marques
Professor universitário na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
A política de ambiente em Portugal, como em muitos outros países, não existe de facto. Ela confunde-se em Portugal com a chamada "transição energética". O governo olha para a aposta nas energias renováveis do mesmo modo que a indústria automóvel, ou a indústria energética em geral, como um alargamento do seu portefólio de negócios, como uma oportunidade para aumentar a margem de lucros.
Ora, isso é uma mistura de erro e ilusão. Erro, primeiro, porque a transição energética é hoje um artigo de fé e não de conhecimento objetivo. A energia de fontes renováveis vai juntar-se aos combustíveis fósseis e não os vai substituir, por isso, a energia final mundial continua a ser em 80% proveniente das fontes fósseis. Erro, também, porque neste momento, como fica provado pela loucura da invasão russa da Ucrânia - agravada pela resposta entontecida e incompetente do Ocidente -, o que está a acontecer não é a redução das emissões de gases de estufa, mas sim o seu incremento exponencial. Estamos a caminhar para um mundo com 4 ºC ou mais. Um mundo que será inabitável em muitos territórios.
Contudo, a ilusão do governo leva-o a querer sacrificar o nosso solo arável, a nossa biodiversidade, a qualidade da nossa água no altar de aeroportos que ficarão vazios, de uma agricultura intensiva desertificadora, de projetos de mineração "verde" para baterias elétricas. Os governos trabalham para um mundo de abundância material que já não existe. A política de ambiente deveria trabalhar para que os portugueses não passem fome, nem tenham de ser refugiados ambientais no seu próprio país.
Miguel Guimarães
Bastonário da Ordem dos Médicos
Os portugueses querem ter a garantia de acesso a cuidados de saúde de qualidade em tempo clinicamente aceitável. É urgente salvar o SNS, e dar-lhe o que falta. O diagnóstico está feito. A terapêutica continua a adiar-se. Não há estratégia e plano na política de Saúde. Os médicos continuam ao longe da decisão e a liderança clínica é difícil. Desperdício e ineficiências na gestão de recursos são regra. Não há uma lei de meios e orçamentos plurianuais que permitam garantir uma estratégia.
Continuamos órfãos de uma gestão da Saúde centrada na autonomia, governação clínica e responsabilidade sustentada em orçamentos reais. A valorização das carreiras e da formação continua a ser miragem. Não há apoio a profissionais em burnout, violência e sofrimento ético. Não há atrativos para trabalhar nas zonas carenciadas. Os serviços não se centram no cidadão. Esquece-se o investimento na literacia e prevenção. Investigação, inovação e qualidade, não são valorizadas. A digitalização está na penumbra, sem processo clínico único e telemedicina de qualidade. Tarefas burocráticas e processos complexos mantêm-se.
A estratégia para acelerar e adaptar a reforma dos cuidados primários está congelada, impedindo que todos tenham acesso a médico especialista e equipa de família. A verdadeira reforma da Saúde Pública continua paralisada, a integração de cuidados entre hospitais e Centros de Saúde adiada, o acesso a paliativos e cuidados continuados é difícil, a reforma das Urgências inativa, a articulação de Saúde e Segurança Social entorpecida. As desigualdades sociais em Saúde continuam a crescer.
Luís Menezes Leitão
Bastonário da Ordem dos Advogados
Infelizmente a Justiça em Portugal não mostra sinais de qualquer melhoria, continuando a assistir-se a graves lesões dos Direitos Fundamentais dos cidadãos.
Antes de tudo, refere-se que, mesmo depois de ultrapassado o período mais crítico da pandemia, mantêm-se em vigor fortes limitações normativas aos Direitos Fundamentais dos cidadãos. Conhecida a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a inconstitucionalidade da lesão dos Direitos Fundamentais nos termos em que foi efetuada pelo governo, é mais do que tempo de essas limitações serem revogadas.
Depois persiste o elevado valor das custas judiciais, que está a impedir os cidadãos de exercer o seu direito constitucional de acesso à Justiça, a qual neste momento só está acessível aos muito ricos e aos muito pobres. É preciso baixar as custas judiciais e rever o sistema de acesso ao direito, designadamente no âmbito remuneratório.
Continua, por outro lado, a verificar-se uma enorme morosidade na Justiça, especialmente nos Tribunais Administrativos e Fiscais, levando a que a Ordem já tenha criado um grupo de trabalho para procurar resolver a situação. Por outro lado, o nosso parque judiciário está muito degradado, havendo casos mesmo muito graves como o Tribunal de Família e Menores de Aveiro.
A Justiça, apesar de ser uma das tarefas fundamentais do Estado, continua a ser o setor mais esquecido pelo governo, como se viu pela distribuição das verbas do PRR. Enquanto as prioridades governamentais não forem alteradas, a situação só poderá agravar-se.
Ana Jacinto
Secretária-geral da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP)
Estamos em plena época alta, com alguns indicadores interessantes, pelo que qualquer análise feita nesta altura tenderá a ser algo otimista, facto que não nos deve distrair do que se perspetiva no curto prazo.
Os turistas continuam a chegar e os agentes económicos tentam a corresponder à procura com a qualidade que nos caracteriza. Mas há vida para além da época alta. E, se hoje se registam picos de consumo, dentro de pouco tempo a mudança pode ser drástica. Com as taxas de juro a subir, a inflação em níveis que há muito não se viam, uma crise energética sem precedentes e a guerra na Europa, que não se sabe quando vai acabar, os custos das empresas aumentam e as margens reduzem-se. Se a isto juntarmos a previsível perda de poder de compra dos consumidores e o aumento dos custos de financiamento, o resultado é certo: não vai haver investimento ou criação de emprego e a recuperação económica e níveis de crescimento sairão prejudicados.
Finalmente, a falta de trabalhadores é um problema sistémico dos nossos setores, ao qual é preciso dar resposta urgente. A AHRESP já propôs ao governo um conjunto de medidas para colmatar este grave problema, que se agudizou com a pandemia. Portugal é um destino que continua muito valorizado, e há que saber tirar proveito disso. Temos todas as condições para que o Turismo continue a ser o "culpado" pelo desenvolvimento económico do país, mas para isso são essenciais medidas que apoiem as empresas.
Filinto Lima
Professor e presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas
Os dois últimos anos foram de uma exigência avassaladora para alunos, professores, pessoal não-docente e mesmo para os pais e encarregados de educação. Superaram-se muitas dificuldades com audácia e empreendedorismo, mas novas adversidades emergiram e avolumaram-se. A escassez de professores assume-se como o mais preocupante, merecedor de medidas cirúrgicas e céleres, para travar os seus efeitos, dirimindo-os ou atenuando-os. Exige-se a valorização e a dignificação da carreira docente de modo a atrair jovens para a profissão e acautelar a saída de quadros para outras áreas. Injusta e cruel, a avaliação do desempenho dos docentes e dos diretores cria profundo desalento entre profissionais de excelência. Não se entende o atual modelo, que desmotiva e, pelo facto, urge ser revisto o mais rapidamente possível, para atribuir o mérito a quem de facto o deve ter. A "papelada digital" que os professores e diretores devem preencher em plataformas, a "toda a hora", desgasta quem carece de tempo para o trabalho efetivo e útil com os alunos. O extremo cansaço dos profissionais tem como epicentro a burocracia. Até quando?
A transferência de competências na Educação teve um início tumultuoso, mas autarcas e governo aproximaram-se na vontade de chegarem a um acordo. Persistiram impasses nos concelhos onde existiu pouco diálogo entre autarcas e direções das escolas, pois o caminho é deslocalizar as tomadas de decisão, idealmente na proximidade das comunidades. Por muitas (boas) intenções que o Ministério da Educação tenha, estas só singrarão se o das Finanças encarar como prioritário um fortíssimo investimento numa área baluarte de qualquer país democrático. Será desta?
António Saraiva
Presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP)
As matérias-primas já estiveram a preços mais altos, mas os custos continuam absurdamente elevados. Os custos do barril de petróleo e do gás natural já subiram ao cimo do Evereste, desceram um pouco, mas mantêm-se proibitivos. O peso dos custos da energia está a cavar um buraco nos balanços das empresas. A logística e o transporte de mercadorias por via marítima, com custos quatro vezes mais altos do que em épocas normais, põem em causa o normal funcionamento das cadeias de fornecimento. O aumento dos preços já não se circunscreve às componentes mais voláteis - bens energéticos e produtos alimentares não-transformados - infetou também as componentes mais estáveis. A inflação assume, portanto, características mais estruturais e mais difíceis de dominar. O ciclo de subida das taxas de juro já se reflete no preço do dinheiro e, em conjunto com a inflação, está a levar com ele, não só uma parte cada vez maior do rendimento disponível dos consumidores, como das margens das empresas.
E o PRR, ajuda? Deveria, claro, mas para já apenas desembolsou 9 milhões de euros, de um total de 5 mil milhões de euros programados para as empresas privadas, isto é, 0,18%.
Qual é o Estado da Nação? Para os empresários, as principais dificuldades estão (referidas) atrás, mas os objetivos estão à nossa frente.
Eduardo Oliveira e Sousa
Presidente da Confederação dos Agricultores Portugueses (CAP)
Lamento o estado do Estado na Agricultura. Ausente no necessário, demissionário em responsabilidades, desinteressado em políticas coerentes e estruturantes, desnatado em competências e talento, pródigo em anúncios supérfluos, mas avaro em libertar recursos aos agricultores e ao país real. Um Estado que demora a honrar a palavra dada, descomprometido no apoio a um dos mais relevantes motores da economia, que dá provas de ser um contribuinte líquido e ativo na geração de riqueza, criação de emprego e no crescimento. O estado do Estado na Agricultura não se recomenda. Não estamos aqui por fatalidade, temos recursos, mas há falta de visão e de vontade. Do PRR, pouco ou nada chega à Agricultura, usando-o o Estado como complemento do Orçamento. A nível fiscal perdemos diariamente competitividade em relação a Espanha, onde as ajudas diretas são até seis/sete vezes superiores. Ao asfixiante preço da energia e combustíveis a resposta é tímida, insuficiente, não atenua a tempestade perfeita. Para o desafio da gestão da água, não há visão integrada/investimento, não há política de futuro ou quem decida e coordene, pior, não há quem se preocupe. Vivam com o que há, é o lema. As ajudas para minimizar os efeitos da seca, suplicadas ainda antes do fim de 2021, estão por decidir. O atraso no pagamento do PDR é injustificável, com mais de 1,8 mil milhões por executar, as medidas decididas por Bruxelas pós-invasão da Ucrânia não chegaram aos agricultores, que desesperam com o aumento brutal dos preços.
Na floresta, esmaga-se proprietários com obrigações e limitações ideológicas em detrimento da objetividade técnica e da valorização dos recursos. E porque arde, aos agricultores é dada ordem para pararem de trabalhar, perdendo as parcas colheitas, quando a Agricultura e os agricultores são a melhor garantia de defesa do mundo rural. É tudo ao contrário do que devia ser.
Francisco Calheiros
Presidente da Confederação do Turismo de Portugal (CTP)
Contra (quase) todas as expectativas, o Turismo vai fechar 2022 com números próximos ou até superiores aos alcançados em 2019, que fechou restaurantes e hotéis, imobilizou aviões, impediu viagens de lazer e negócios, cancelou espetáculos e congressos. É uma recuperação notável da atividade mais dinâmica da nossa economia, que mais uma vez toma a dianteira no crescimento do país - a Conta Satélite do Turismo, divulgada recentemente, revela que já em 2021 contribuiu com 16,8 mil milhões para o PIB. Mas neste caminho da retoma persistem pedras que é preciso contornar. A primeira prende-se com a situação das empresas, ainda descapitalizadas, e dificuldades em fazer face aos aumentos de energia, combustíveis e inflação.
Continua a ser urgente que as medidas de capitalização das empresas saiam do papel e cheguem à economia real. A segunda tem que ver com dificuldades de recrutamento, que ameaçam um dos nossos grandes ativos, o serviço de qualidade. Há soluções, várias soluções, que podemos adotar, mas é necessário uma estratégia que una esforços de setor público e privado para captar e reter talentos.
Sobre a terceira, deixo a conclusão de um estudo que a CTP encomendou à Ernst & Young sobre a capacidade aeroportuária de Lisboa: o adiamento do aeroporto custa cerca de 7 mil milhões e 28 mil empregos num cenário mais otimista. Há números que falam mais do que mil palavras. E das palavras estamos todos cansados.