O que é isso de ser um antigo Presidente da República? É o que cada um quiser

Quatro antigos chefes de Estado, quatro estilos muito diferentes de intervenção na vida pública. Os 47 anos da democracia portuguesa não criaram um padrão para o "pós-presidência": de Eanes a Cavaco, cada ex-Presidente assumiu um caminho diferente.

Na última semana, com uma diferença de poucos dias, dois ex-Presidentes da República vieram a terreiro manifestar-se sobre a vida pública nacional. Primeiro foi Ramalho Eanes, a apontar ao Executivo e a defender que "não se despede um Chefe de Estado-Maior" - e ,"quando se é obrigado a exonerá-lo, apontam-se as razões que levam a isso". Depois foi Cavaco Silva, que, num artigo publicado no semanário Expresso, não poupou críticas aos governos socialistas desde 1999 e ao de António Costa em particular e, pelo caminho, também à oposição (ou, no entendimento do antigo chefe de Estado, à falta dela).

Não são intervenções inéditas, longe disso, nem sequer no tom crítico. Mário Soares nunca deixou de ser um ator (muito) interveniente na política portuguesa e foi uma das mais destacadas vozes de oposição a Pedro Passos Coelho na altura da troika, além de ter entrado bastas vezes em choque com Cavaco Silva. Já Jorge Sampaio assumiu, desde que saiu do Palácio de Belém, uma atitude de grande reserva sobre a vida política nacional. Quatro antigos chefes de Estado (dois, Soares e Sampaio, já falecidos), quatro estilos substancialmente diferentes. O suficiente para que seja difícil encontrar uma tradição na ainda jovem democracia portuguesa quanto ao papel de um ex-Presidente.

Para António Costa Pinto, investigador coordenador no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, o único padrão "pós-presidencial" que é possível encontrar desde o primeiro chefe de Estado ao último inquilino que já deixou Belém é que... "não há nenhum padrão. São todos muito diferenciados. Mário Soares tem um padrão relativamente atípico, não se retira da vida política ativa, candidata-se a eurodeputado, novamente a Presidente". Já Jorge Sampaio "opta claramente por um modelo que ainda não sabemos se faz escola: mantém uma atividade pós-presidencial reservada na esfera política, com uma intervenção fundamentalmente na área das causas". Logo em 2006, ano em que deixou a presidência, Sampaio foi nomeado Enviado Especial do secretário-geral das Nações Unidas para a Luta contra a Tuberculose e, um ano depois, como Alto Representante para a Aliança das Civilizações. Ao longo dos anos da "pós-presidência" assumiu uma posição destacada no apoio aos refugiados, sobretudo sírios e afegãos.

Sobre Cavaco Silva, António Costa Pinto diz ser um "caso interessante", na medida "em que mantém o mesmo tipo de intervenção desde que abandonou a presidência do Conselho de Ministros. É coerente com a imagem do tecnocrata na política. Quando abandona o cargo de primeiro-ministro e regressa, teoricamente, à sociedade civil, faz de vez em quando intervenções, sobretudo de política económica ou da sua área política. E mantém esse registo no pós-presidência".

Já Ramalho Eanes, o primeiro Presidente da democracia, tem uma "situação muito particular": "Foi um Presidente da República extremamente jovem e a passagem por Belém foi o início e o fim da sua carreira política" (com a história do PRD pelo meio). "Tem mantido, no fundamental, uma posição de reserva política, as intervenções que tem feito são sobretudo em relação às Forças Armadas", sustenta o politólogo.

Viriato Soromenho-Marques, professor catedrático de Filosofia Política, sublinha também que a democracia portuguesa "não teve ainda Presidentes em número suficiente para definir um padrão" quanto ao papel que se espera de um antigo chefe de Estado. Jorge Sampaio é "claramente o mais próximo de um modelo anglo-saxónico, em que o ex-Presidente se envolve em atividades de filantropia, como fez Jimmy Carter", mais afastado dos temas da atualidade política. Uma atitude mais comparável ao comportamento dos presidentes norte-americanos (passe a diferença de se tratar de um sistema presidencialista, que não é o caso do português), que habitualmente guardam reserva pública sobre a atualidade política interna e ação dos seus sucessores (os imediatos, pelo menos). E se Barack Obama chegou a quebrar esta regra, Viriato Soromenho-Marques não deixa de o inserir nessa tradição: "Ele manteve a reserva, talvez até mais do que seria de esperar. Trump é um caso excecional, tem uma presidência que parece saída de um argumentista do Batman."

Dentro da "rotina do regime"... ou nem por isso

Entre os ex-Presidentes vivos, Ramalho Eanes é hoje uma figura mais consensual, enquanto Cavaco Silva mantém um perfil mais divisivo, como se evidenciou mais uma vez nos últimos dias nas reações ao texto do Expresso. "São duas intervenções de natureza muito diferente. A de Ramalho Eanes é, não a intervenção de um ex-Presidente, mas do militar que ele continua a ser. Já Cavaco Silva, não se percebe. Acho que esta intervenção não tem a estatura, não honra a dignidade presidencial", diz Soromenho-Marques, precisando que se espera de um ex-Presidente intervenções com "elevação suficiente para não ficar numa situação em que pode ser capturado pelas forças de oposição do momento". E foi exatamente isso que aconteceu nos últimos dias, defende: "Acaba por ser capturado no debate de conjuntura."

Também António Costa Pinto encontra uma dimensão criticável nesta última intervenção pública do ex-Presidente. "Cavaco Silva alimenta, no fundo, a ideia de que o sistema político português está a perder muito das suas características enquanto democracia. Acho perigoso esse tipo de discurso, é pernicioso vindo de um ex-Presidente e ex-primeiro-ministro." O politólogo considera também que o antigo Presidente se colocou no meio da disputa na sua área política: "Cavaco Silva é um político muito experiente, não pode ignorar que ambos os partidos [da direita] se encontram numa conjuntura de debate interno . O desafio não podia ser mais claro."

Já Adelino Maltez não vê nestas intervenções mais recentes de antigos chefes de Estado qualquer gesto fora do comum: "Nada de anormal. Está tudo dentro da rotina do regime." A intervenção mais crítica de Cavaco não é uma novidade nem é de molde a espantar ninguém, acrescenta o politólogo: "São intervenções raras, bem medidas e unânimes na provocação. É o costume em Cavaco Silva, como também é costume haver um coro anticavaquista."

Ex-Presidentes não só podem como "devem falar"

A lei portuguesa reconhece um estatuto particular aos ex-Presidentes da República, à semelhança do que acontece, em geral, no contexto internacional. De acordo com a legislação, os antigos chefes de Estado têm direito a dispor de um gabinete de trabalho, apoiados por um assessor e um secretário.

Têm também direito a "uso de automóvel do Estado para o seu serviço pessoal, com condutor e combustível", a "ajudas de custo, nos termos da lei aplicável às deslocações do primeiro-ministro, sempre que tenham de deslocar-se no desempenho de missões oficiais para fora da área de sua residência habitual", bem como direito a "livre-trânsito" e a "passaporte diplomático nas suas deslocações ao estrangeiro".

Também por isto, para Adelino Maltez, mais do que um direito, os antigos chefes de Estado têm o dever de intervir na vida pública nacional. E lembra que os Presidentes da República têm a particular legitimidade de serem eleitos por sufrágio direto dos cidadãos - o que não acontece, por exemplo, em países como a Alemanha e a Itália, onde a chefia do Estado é escolhida pelo Parlamento. O sufrágio direto é uma força acrescida que se mantém enquanto ex-Presidentes. "Eles não têm o direito, têm o dever de falar. A própria democracia, reduzida a uma crescente bipolarização entre PS e PSD, precisa destas vozes, destas intervenções, que reforçam o pluralismo, que é a essência da democracia. A "praça pública" precisa destes discursos", refere o politólogo. Para Adelino Maltez "cada um dos Presidentes criou um estilo próprio pós-presidência", entre o "festival " que foi o percurso de Mário Soares depois de sair de Belém e a atitude mais reservada de Sampaio.

E se há registo de picardias e apreciações menos cordiais entre os antigos ocupantes do Palácio de Belém, Maltez defende que "a democracia portuguesa não tem grandes exemplos de deselegância entre ex-Presidentes". Pelo menos como em outras latitudes, como gracejou em tempos o antigo Presidente brasileiro José Sarney à revista Piauí: "O único que não falou mal do seu antecessor foi Tomé de Souza, e, mesmo assim, só por ter sido o primeiro."

E, sendo um exercício de futurologia, que espécie de ex-Presidente virá a ser Marcelo Rebelo de Sousa? Provavelmente um intérprete de um novo estilo "pós-presidencial". Ou, como antecipa Viriato Soromenho-Marques: "Marcelo Rebelo de Sousa está a ser um Presidente da República único, fará certamente uma pós-presidência única também."

susete.francisco@dn.pt

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