"O populismo é também uma performance, tem de se personificar alguma coisa"

Entrevista a José Pedro Zúquete, investigador no Instituto de Ciências Sociais, autor do livro <em>Populismo: Lá Fora e Cá Dentro </em><em>- </em>​​​​​​​editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos -, que procura estudar e enquadrar os fenómenos populistas nacionais e internacionais, apresentado na passada sexta-feira.
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O José Pedro começa por enquadrar o populismo, no seu livro. Perguntava-lhe, assim, que diferenças há entre o populismo original e o populismo atual?
No século XIX, quando o populismo original surge, está intimamente ligado à ideia de soberania popular, de que os governos são criados pelo povo e que têm de ser justificados e sustentados pelo povo. Essa ideia veio do século XVIII e, depois, no século XIX, aumenta quando surgem as constituições em nome do povo. Os primeiros populismos, como o caso do boulangismo, na Europa Central - do qual o sidonismo foi a versão portuguesa - beneficiaram muito do boom dos mass media e da industrialização da imprensa. As pessoas passaram a estar muito mais atentas ao que se passava no mundo dos governantes e das elites. E com isso também passou a haver uma capacidade de maior comunicação com as massas. Curiosamente, um dos fatores que mais promove o populismo atual é outro tipo de media: as redes sociais. Logo aí, podemos ver uma relação: o populismo acaba por estar muito ligado aos media. É um dos fatores marcantes dos populismos de hoje.

Falou no caso do sidonismo. Ao ler a obra, é provável, que ao longo do capítulo sobre Sidónio Pais, se encontrem algumas semelhanças com discursos populistas atuais. Porque é que isso acontece? Há alguma apropriação, algum revisionismo?
Acho que é muito importante ter uma visão longitudinal dos fenómenos políticos. Isto é, uma visão mais panorâmica. Sei que uma das potenciais críticas ao livro pode ser o facto de se achar que posso ter esticado o conceito, mas acho que há, hoje em dia, um afunilar relativamente ao estudo do populismo como sendo um fenómeno demasiado focado no presente. Ao fazer isso, corre-se o risco de pensar que estamos sempre a descobrir a pólvora, quando, de facto, há toda uma tradição ligada ao populismo em Portugal e que, de certa forma, estava escondida ou apagada. Se houver uma visão muito estreita, perde-se a ligação à História e à maneira como o conceito tem evoluído. Ao fazer a pesquisa para o livro sorri várias vezes porque fui vendo coisas que me faziam pensar que tinham sido ditas hoje. E depois olhava e via que eram de 1917, por exemplo. Portanto, há todo um conjunto de características comportamentais e de retórica, das visões entre as elites imundas e o povo são. Ou seja, tudo isso tem uma forte história por trás e, inevitavelmente, repete-se. Ao escrever o livro, a sensação que fui tendo era só uma: déjà vu.

Na segunda parte da obra, o José Pedro escreve que o General Spínola quis "moderar a revolução, personalizar o poder e reforçar o executivo". Não poderá haver aqui alguma contradição em relação à instabilidade política e social da altura? Na medida em que, sendo um populista, como moderaria a revolução?
O caso do General Spínola enquadra-se no populismo militar, como defino no livro. É aquela figura militar, fardada, que vem do povo, que vai cumprir a sua missão e que volta para o povo. Tem o seu percurso e tentou, claramente, travar os ímpetos mais revolucionários à esquerda do país. Para fazer isso, utilizou uma ideologia e uma estratégia populista, de apelo ao povo são, realista e sensato, contra as aventuras e os desvarios dessas elites que, na altura, eram ligadas sobretudo à extrema-esquerda e que Spínola dizia de forma clara serem traidores da pátria. Há um simbolismo enorme no seu populismo militar. Sempre fardado, de monóculo, com uma maneira de falar própria, algo que também se via na figura de Sidónio Pais. Essa parte da imagem é muito importante. O populismo é também uma performance, tem de se personificar alguma coisa. Há todo um trabalho de representação do povo comum.

Talvez por isso se justifique a falta de capacidade de afirmação de um partido como o PNR quando comparado com o Chega?
Essa é uma das minhas teorias. O líder do PNR nunca teve o mesmo carisma de Ventura. Podia até haver procura, mas não houve oferta. Não houve o chamado empreendedor político que capitalizasse alguns receios, ansiedades ou dinâmicas da sociedade portuguesa. E, lá está, voltamos à questão dos media. A figura de André Ventura nasce dentro dos media, é alguém habituado a lidar com o mediatismo devido ao seu passado ligado ao comentário de futebol , do debate, do confronto. E é importante lembrarmo-nos disso. Veja-se como os media acabaram por servir de mola ao populismo do Chega aqui em Portugal.

O José Pedro faz a distinção entre populismos de esquerda e de direita. Perguntava-lhe, como defende no livro, o que leva os media ou outras estruturas sociais a visarem mais os populismos de direita do que propriamente os populismos de esquerda?
Depende do contexto de que falamos. Os populismos de esquerda também são muito atacados. Por exemplo, na América Latina, houve um confronto entre Hugo Chávez e os jornais mais conhecidos, como o El Nacional ou o El Universal. Os populismos de esquerda são mais vistos como sendo irresponsáveis, levando, potencialmente, a políticas que podem levar à miséria social ou a uma crise. É-lhes feita uma crítica mais social do que política, no fundo. No caso do populismo de direita, há uma rejeição moral por trás. É visto como algo moralmente inaceitável. Isso acontece porque, muitas vezes, os populismos de direita - sobretudo na Europa Ocidental - atacam as chamadas vacas sagradas, como a diversidade ou o multiculturalismo. Depois, isso rapidamente descamba para as discussões de racismo e antirracismo, bem e mal, moral e imoral. E logo aí o populismo de direita é atacado pela raiz como algo repelente.

Na sessão solene do 25 de Abril, o líder do PSD, Rui Rio, afirmou que o caminho para combater os extremismos e os populismos "não se faz com absurdos cordões sanitários". Concorda? Como é que, para si, se combatem os populismos?
Como sabe, não sou farmacêutico nem médico para passar receitas. Mas, vejamos, há uma ideia em que muitos populistas insistem: a de que não há uma verdadeira democracia. Isso é o ponto número um. Em Portugal, há uma grave crise de confiança nas instituições. No Parlamento, nos partidos políticos, nos políticos, essa crise existe. Ou seja, é a ideia de que a democracia é um feudo de partidos.

CitaçãocitacaoO líder do PNR nunca teve o mesmo carisma de Ventura. Podia até haver procura, mas não houve oferta. Não houve o chamado empreendedor político que capitalizasse alguns receios, ansiedades ou dinâmicas da sociedade portuguesa.

E existe desde sempre, segundo se conclui com o livro. Lembro-me do caso de Otelo Saraiva de Carvalho, abordado como um caso de antipopulismo e antisistema.
Exatamente. Há a ideia de que a democracia em Portugal é um conjunto de partidos-cartéis, um feudo de partidos, que há uma partidocracia. E esta partidocracia é vista como defensora dos interesses dos de cima contra os de baixo. Esta visão vertical é central no populismo. De facto, há que ser dito, não tem havido mudanças no sistema político nacional de forma a esbater esta ideia junto da opinião pública. Até porque, em Portugal, não há a fragmentação política que existe noutros países da Europa Ocidental. Continua a haver hegemonia dos dois principais partidos. Ou seja, têm poucos incentivos para mudar o sistema político. E depois há fatores agravantes, como a corrupção ligada a figuras de Estado, questões ligadas à promiscuidade político-financeira, por exemplo. Tudo isso é um caldeirão que alimenta o discurso populista no sentido de apontar o dedo às elites maléficas que governam para si e não para o coletivo.

É esse caldeirão de que fala que acaba por contribuir para o aparecimento de figuras como Fernando Nobre ou Marinho e Pinto, ambos abordados perto do final do livro?
São os dois casos muito interessantes, mas sobretudo o de Fernando Nobre. Na altura, uma boa parte da chamada burguesia seguiu Fernando Nobre nas presidenciais. A ideia de que só as pessoas que não são burguesas ou urbanas é que seguem o populismo é errada. Fernando Nobre foi seguido exatamente como um líder que iria regenerar a política portuguesa. Este é um caso de populismo regenerador em Portugal. O exemplo de Fernando Nobre teve outra característica, que foi a ideia do martírio, muito presente nos populismos. É a ideia de morrer pelo povo: está presente em Sidónio Pais, em Humberto Delgado, Alberto João Jardim também fez alguma alusão a isso. Está presente em Fernando Nobre e também está presente em André Ventura - que só é travado se lhe derem um tiro na cabeça e coisas do género. E o que é que Fernando Nobre disse na altura? "Deem-me um tiro na cabeça ou vou para Belém!". Na altura, isto foi visto como algo estranho mas é muito característico do populismo, essa ideia de sacrifício. A figura que se martiriza pelo povo.

Mesmo para terminar, pretendia fazer um enquadramento no contexto europeu. Como é que chegámos a este ponto, com partidos populistas por toda a Europa, como o caso do Fidesz ou do Vox, aqui ao lado em Espanha?
Essa é a pergunta de um milhão de euros. Depende do contexto de cada país, mas eu diria que parte da justificação está na globalização e nos seus efeitos. No crescente fluxo de pessoas, bens e capitais, que levou à sensação de perda de controlo sobre as suas vidas e sobre as suas comunidades a nível social e cultural. A nível socioprofissional temos a competição das economias emergentes, a desindustrialização, o impacto da tecnologia e da robotização dos meios de produção e o declínio dos sindicatos, por exemplo. Tudo isto gerou, em muitos contextos, precarização, desigualdade, e a sensação de perda de estatuto e desespero. Essa é uma das consequências que alimenta o populismo. A nível cultural temos o fenómeno das migrações, da diversidade e do multiculturalismo, que também geraram uma sensação de desenraizamento, de desamparo cultural. Isto resultou na sensação de as pessoas já não saberem em que comunidade vivem. E o populismo faz e aproveita-se disso. Está no meio do espetro e, mais do que se aproveitar, alimenta-se e promete dar uma sensação de segurança a um conjunto de pessoas que, nas últimas décadas, se viram lançadas para um mundo de insegurança, quer material quer cultural.

rui.godinho@dn.pt

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