"O grande problema desta maioria absoluta é saber para que é que serviu. Para nada. Está a ser desperdiçada"

O presidente da Câmara de Oeiras dá nota negativa ao polémico pacote Mais Habitação e a todos os atores na crise política Costa - Marcelo. E deixa recados a Luís Montenegro para levar o PSD ao governo. Amanhã leia a segunda parte da entrevista, com raios x à Justiça e às novas obras em Oeiras.

Comecemos pelo plano da habitação. Esta semana colocou a primeira pedra de um dos muitos projetos que vão lançar habitação acessível no concelho de Oeiras. O que é que tem no seu plano para responder a esta necessidade da sociedade portuguesa?
Lancei a primeira pedra de um empreendimento que, aliás, é o terceiro que lançamos. Começámos há um mês com a presença do primeiro-ministro no Alto dos Barronhos, depois estivemos em Linda-a-Velha, na Junça, e agora junto à Quinta dos Aciprestes, muito adjacente à Fundação Marquês de Pombal. Estamos a falar de um conjunto de cerca de 90 apartamentos que fazem parte de um grupo de 650 destinados a renda apoiada. Uma renda que irá oscilar entre os 8 euros e os 350, em função do rendimento da família. Estamos a falar, portanto, de rendas em que um T4 no primeiro andar pode estar arrendado por 8 euros, e o mesmo T4, no outro lado, pode estar arrendado por 300, em função do rendimento da família. E a renda mensal é ajustada em função da variação do rendimento. Fazem parte deste pacote de habitação para Oeiras, nesta fase, mais cerca de 680 casas, essas sim destinadas a renda acessível. A Câmara já aprovou o regulamento também de renda acessível e estas irão oscilar entre os 280 e os 780 euros, em função da tipologia do T1 ao T4. E aqui, já não varia só em função do rendimento da família, mas também em função da capacidade para pagar aquela renda de acordo com a tipologia. E, portanto, obviamente que a Câmara Municipal de Oeiras aproveitou, e está a aproveitar bem, este financiamento no âmbito do PRR, visto que o Governo destinou cerca de 2700 milhões de euros ao PRR Habitação, e a Câmara Municipal, é com muita alegria que o digo, irá utilizar quase 10% deste pacote de habitação, porque já temos aprovados, entre a renda apoiada e a renda acessível, cerca de 260 milhões de euros. No total, são à volta de 1500 casas, mas destas temos algumas que são destinadas, por exemplo, a residências para a terceira idade, mas não são lares. Nós temos uma experiência já com uma residência natural, que é a chamada Maria Clara - mas não são residências de luxo. São residências adequadas a famílias, a pessoas isoladas ou casais, que podem não ter carência propriamente económica, mas têm carência social, e, portanto, podem, realmente, vir a usufruir da vivência nesses apartamentos. É um projeto de muito sucesso, até porque permite o convívio das pessoas idosas mas que ainda têm autonomia para gerir o seu apartamento. E, portanto, vamos lançar duas residências dessas. Faz parte também de um outro grupo uma residência para vítimas de violência doméstica. Digamos que destas 680 casas, 600 são para famílias carenciadas, de renda apoiada, e depois há 70 ou 80 destinadas a esses casos de famílias idosas ou a vítimas de violência doméstica.

E quando é que prevê que as 1500 casas possam estar construídas, prontas para atribuir à população?
Quer as de renda apoiada quer as de renda acessível, em princípio, vão estar todas prontas até 2026, até porque são todas elas financiadas pelo PRR, embora da parte da Câmara nós pretendamos avançar com mais programas, porque, como é sabido, 18 mil casas, em princípio, se forem feitas com o PRR Habitação, não resolverão os problemas gravíssimos da habitação que há em Portugal e, particularmente, nas áreas metropolitanas. Porque não tenhamos ilusões, estas casas vão ser entregues a famílias carenciadas, mas o número de pessoas e de famílias que vão necessitar de casa vai aumentar substancialmente.

Tendo em conta o contexto económico, as taxas de juros muito altas e a inflação, será que vai disparar essa carência?
Tudo isso. Havia famílias que estavam a pagar 400 euros por mês, passam a pagar 800, muitas delas, portanto, não têm condições e têm de entregar as casas à banca. As rendas de casa, por exemplo no caso de Oeiras, nos últimos três meses aumentaram 24%. Portanto, quer isto dizer que vai haver muita gente, vai haver muitas famílias, a ser despejadas. Para a banca e para os senhorios não é uma questão de sensibilidade social, é também uma questão de justiça. Portanto, só há uma solução, que é construir mais habitação pública. E é aí que a hipocrisia nacional vem ao de cima.

O senhor já defendeu que para construir habitação pública é necessário usar terrenos rústicos e de reserva agrícola, tendo em conta que são muito mais baratos do que os terrenos urbanos. Sente que foi ouvido pelo governo nesta sugestão?
Não, durante os últimos cinco, seis anos, andei a gritar que era necessário desafetar reserva agrícola, terrenos rústicos, para construir. Porque era importante que em terrenos rústicos se pudesse construir habitação pública. Havia três classes de espaço: rústico, urbano e urbanizável. Mas com a Lei nº 31 de 2014, acabaram com os terrenos urbanizáveis, com o pretexto de que era preciso combater a especulação. Dizia-se na altura que havia muitas casas e que não se esgotavam, etc. Curiosamente, foi um governo de direita que fez esta alteração à lei, com o argumento de que queria combater a especulação, mas só favoreceu a vida dos ricos. Portanto, realmente parece que o intuito seria esse. Com o argumento de que se ia combater a especulação, protegeram-se os ricos, isto é, os donos dos solos urbanos, que só por serem donos de um solo urbano, por natureza ficaram bem. Mas, entretanto, os municípios, não tendo solos urbanizáveis, deixaram de poder fazer cidade. Passaram apenas a poder determinar a construção em solos urbanos e estes duplicaram, triplicaram, quadruplicaram de preço. Houve terrenos em centro histórico que passaram de 300 euros para 1600 euros o metro quadrado. Estou a falar apenas no potencial construtivo, porque depois tem de se pôr em cima o preço da construção.

O que está a dizer é que não é possível fazer habitação acessível ou habitação social...
Não, não é possível. Os gurus que vão à televisão -, há aí uma quantidade de gente, comentadores, gente da política, etc. - que está a mentir completamente. Ou então são de uma ignorância total. Eu lamento estar a dizer isto, mas a mim choca-me ouvir pessoas a falarem no licenciamento das câmaras. Até se pode acabar com o licenciamento, eu nessa matéria até acho bem, desde que os técnicos sejam responsabilizados, até se resolve um problema de corrupção grave. Porque muitas vezes acham que os políticos é que são corrompidos, quando muitas vezes os políticos são incapazes, na sua maioria, de contrariar um parecer técnico. E, portanto, que sejam responsáveis os engenheiros e os arquitetos que fazem os projetos, há muito tempo que defendo isso. Eles é que devem ser responsáveis por isso e não as câmaras municipais. As câmaras devem controlar se a obra está de acordo com o projeto. Isto no fundo para dizer o quê? Vem-se com o argumento de que há muito terreno urbano, pois há, mas tem dono. E por outro lado, o preço da construção de habitação pública está tabelado, está regulamentado. Em princípio, não deve passar os 1600 euros o metro quadrado, incluindo o terreno e o preço da construção. Ora bem, isto é possível. O ridículo é esse. Há coisa de um mês estive com o senhor primeiro-ministro a lançar a primeira pedra de um prédio de 106 apartamentos. Um T2 neste prédio custa à câmara 180 mil euros, mas agora veja bem, do outro lado da rua está a ser feito um prédio privado e um apartamento custa 550 mil. O que é que justifica esta diferença? Eu não estou a meter o preço do terreno, ou melhor, estou a considerar no preço do terreno 100 euros o metro quadrado, em vez dos 600 ou 700 que o particular tem de introduzir, porque é o que pagou. Em alguns casos até mais. Portanto, só há uma solução para fazer habitação pública em Portugal e é construir em terreno rústico.

"O Governo destinou cerca de 2700 milhões de euros ao PRR Habitação e a Câmara de Oeiras irá utilizar quase 10% deste pacote, porque já temos aprovados, entre a renda apoiada e a renda acessível, cerca de 260 milhões de euros. No total, são à volta de 1500 casas."

E já convenceu a recém-empossada ministra da Habitação a ir por este caminho?
Não, mas finalmente o governo aprovou uma alteração a uma proposta de lei no sentido de permitir a construção em terreno rústico e quero dizer que fiquei satisfeito.

Foi uma proposta que foi a Conselho de Ministros que permitiu esta situação.
Exatamente. Espero que vá agora ao Parlamento, mas o governo já aprovou, abrindo a porta a que se possa construir em terreno rústico, salvaguardando duas condições: exclusivamente para habitação pública e a propriedade ficará na posse do Estado, para evitar qualquer tipo de especulação. Essas casas não podem ser vendidas, suponha que eram construídas agora e depois vendidas daqui a 10 anos a preços sociais e que depois já eram revendidas logo a seguir por preços brutais. Tudo isso tem de ser muito bem regulamentado. Porque é indiscutível que o preço de um terreno rústico, embora contíguo a um terreno urbano, é muito mais barato, naturalmente, mas não pode ser depois permitido que a casa seja vendida a um particular, porque aí comprava quem tivesse dinheiro e depois ia negociar e entrava no jogo da especulação também. Ora, ao ser exclusivamente propriedade do Estado, salvaguarda-se esse problema. E repare, nós temos 2% de habitação pública em Portugal, Oeiras por acaso tem 5%.

E quando comparamos com a Europa?
Comparado com a Europa é uma desgraça. Espanha tem 10%, mas França, Holanda, Bélgica, todos têm para cima de 25%. Aliás, num país nórdico - todos nós falamos muito na Noruega, na Suécia, na Holanda - qualquer jovem que faz 18 anos, a primeira coisa que faz é ir à Câmara Municipal e inscrever-se na habitação pública. Nós em Portugal, sendo um país pobre, as pessoas não pensam nisso.

Mas porque é que nunca se fez? Por uma questão ideológica?
Há aqui uma questão ideológica, claro. E ainda por cima isto é perverso, porque argumentam que os senhorios é que são os culpados. O senhorio já fez o seu investimento, não são eles que depois vão fazer a ação social. Também aí, a extrema-esquerda quando fala contra os senhorios, não quer resolver o problema. Até porque muitas vezes esta extrema-esquerda é proprietária de prédios que estão arrendados. A solução é construir, o Estado tem de construir casas para quem precisa. Repare, nós temos 65% de proprietários, exatamente o contrário do que se passa na Áustria, onde têm 65% de arrendatários. Nós temos os portugueses escravos da banca, dos fundos e por aí fora, depois acontece o que está a acontecer agora: não têm nem para pagar a renda, ficam sem as casas.

"Para Luís Montenegro ganhar as eleições, o que ele precisa dizer é que está aqui, que é o líder do partido do PSD, do maior partido da oposição, quais são as suas propostas, as suas pessoas para governar, e dizer que acredita convictamente que vão ganhar as eleições e que o PSD vai fazer reformas que o Partido Socialista não fez."

Foi em fevereiro que o pacote Mais Habitação foi apresentado pelo governo, na altura criando muita polémica, quer com as limitações ao Alojamento Local, quer também com a medida do arrendamento coercivo. Passaram cerca de três meses. Como é que olha a esta distância o pacote? E pergunto-lhe também se já começou a executar os tais arrendamentos coercivos que estavam previstos?
Houve uma evolução. Aliás, sei que pouca gente presta atenção ao presidente da Câmara de Oeiras, mas fui uma voz absolutamente isolada neste país relativamente a esse pacote de habitação, dizendo que faltava o principal, que era justamente a necessidade de disponibilizar terrenos para construção de habitação pública. Ora bem, volvido este tempo, tenho de reconhecer que o governo, pelo menos, ouviu essa parte. E ao aprovar esta proposta de lei que permite a utilização de terrenos rústicos, responde a essa parte, que eu considerava a mais importante de um programa de habitação. Corrigido isto, e desde que a Assembleia da República aprove essa lei, significa para mim que o plano de habitação tem pés para andar.

Mesmo tendo o arrendamento coercivo e a limitação ao AL?
Não, já vou aí. Isso não conta, porque o que conta é fazer habitação pública, o que conta é fazer habitação nova, é isso que vai responder aos problemas das famílias. Esta ideia do arrendamento coercivo ou da ocupação de casas devolutas não vai acontecer.

Porque é que diz isso?
Porque não é possível.

Os autarcas disseram que não iriam aplicar essa regra, nomeadamente os socialistas, não é?
Não, senhor. Eu não tenho nenhum problema em aplicar, mas a questão é que não é aplicável. Eu vou dar-lhe um exemplo: uma casa está devoluta, um apartamento está devoluto, um T2, por exemplo, e o senhorio pede uma determinada importância, mas o governo estabeleceu 200 euros de subsídio à renda das famílias, 200 euros por mês. Mas é possível que a casa esteja num determinado escalão de renda. Em municípios como Oeiras, por exemplo, um T1 não pode custar mais de 600 euros, um T2 não pode custar mais de 780, um T3, 900, um T4, 1200. Não há apartamentos a esse preço. Não conseguem encontrar em Oeiras um T1 abaixo dos 1000 euros. Se a lei estabelece que as casas têm de ser arrendadas, um T1, por exemplo, a 780 euros, não um T1 a 600 e pouco, e nesse caso há um subsídio de 200 para completar a renda, mas se não há T1 a 600, só há a 1000, está fora do mercado. Portanto, essa coisa de dizer que vamos ocupar - o Estado não vai dizer ao dono da casa que se tem um T1 arrendado a 1000 euros que agora está vago, tem de o arrendar, mas não é a 1000, é a 700. Como é que faz isso? Não há mecanismo legal que permita o funcionamento deste sistema.

"Provavelmente, o primeiro-ministro até gostaria de se ver livre do Galamba, do ministro das Infraestruturas, porque, de facto, ele está envolvido em situações, em problemas, que não estão devidamente esclarecidos."

Então o pacote foi desenhado sem adesão à realidade?
Foi, não tem nada a ver com a realidade. Aliás, nessa matéria eu disse sempre que, para mim, o governo está perdoado ao aprovar a possibilidade de construção nos terrenos rústicos. É a parte mais importante deste pacote de habitação. O resto, há alguns subsídios que podem vir a dar, mas não é tão linear como isso. Por exemplo, em Bragança, podia dizer-se que as casas são mais baratas, mas um T4 não pode ultrapassar os 500 ou 600 euros, no entanto, também não há T4 em Bragança a 500 euros. Quer dizer, a lei foi desenhada de uma forma que é irrealista, portanto, não tem qualquer possibilidade. Os ditos proprietários que estavam muito preocupados, que entraram em histerismo tremendo, julgando que o Estado lhes ia entrar pela porta adentro - nada disso vai acontecer.

As limitações ao alojamento local têm algum impacto no caso de Oeiras?
Não têm nenhum. Mesmo em Lisboa, não podem ter. Em Lisboa julgo que teve um aspeto positivo que foi a recuperação de muitos imóveis degradados, etc. Penso é que, no caso de Lisboa - no Porto não conheço -, possa ter havido algum exagero, na medida em que houve prédios inteiros e não seria essa a lógica do alojamento local. Por exemplo, na Avenida 5 de Outubro, em Lisboa, há alguns prédios que foram recuperados e destinados totalmente a alojamento local. Não é essa a filosofia do alojamento local, julgo eu. E, portanto, admito que em Lisboa possa ter havido algum exagero, mas não foi isso que teve qualquer influência no preço das casas, porque, como digo e há muito venho defendendo, a especulação subiu porque não há casas, há poucas casas. Basta as pessoas pensarem, mas o problema é que as pessoas não têm memória, é uma preguiça extraordinária. Quer dizer, porque é que as pessoas não olham para aquilo que se disse entre 2008 e 2013? Leiam-se os jornais, vejam-se os telejornais, vejam-se os comentários sobre habitação entre 2008 e 2013. E, na altura, o que se dizia era que a habitação nunca mais se esgotava, que os preços nunca iam chegar a X limite. Nessa altura, leiam-se os artigos que eu escrevia no boletim da Câmara Municipal. Eu dizia: isto vai-se esgotar, isto vai-se esgotar rapidamente, depois veio a lei de 2014 que estabeleceu o fim dos terrenos urbanizáveis. A partir dali, começou a subir exponencialmente... Claro que se pode dizer que os Vistos Gold podem ter tido alguma influência, mas é muito difícil de calcular isso. O alojamento local, sim, pode ter tido, mas se não fosse alojamento local, eram apartamentos de luxo na mesma, aos quais a classe média-baixa não tinha acesso. Portanto, não vale a pena andarmos aqui a tentar encontrar um bode expiatório, quando alguém vem dizer que o culpado pelas rendas altas e pelas casas caras são os Vistos Gold, é o AL, não acredito. Isso pode contribuir, mas na realidade, o que contribui fortemente é justamente esta disparidade de preços ao nível do custo do terreno. Porque o terreno aumentou 400%, 500%, 600%, 700%, enquanto o preço da construção aumentou no máximo 80%.

O pacote Mais Habitação foi uma das polémicas que envolveu o governo nos últimos meses, mas não só. Na última semana, vivemos uma grande crise política entre o primeiro-ministro e o Presidente da República. Que análise faz do Estado da Nação depois desta crise política?
Estamos na mesma. Foi uma semana talvez inesquecível do ponto de vista das incongruências, quer da parte do governo, quer do Presidente da República. Eu acho que todos estiveram mal, todos contribuíram para uma certa instabilidade. A análise que faço é simples: é o sistema a funcionar. Por acaso escrevi umas coisas sobre isto em 1982, um livrinho que se chama O Sistema de Governo Semipresidencial, eu e mais dois colegas de Direito, e está lá tudo. Na realidade, o nosso sistema semipresidencial determina naturalmente - está na sua genética - que quando há uma maioria absoluta, a tendência é para termos um governo do primeiro-ministro. Ou seja, o pendor é uma espécie de presidencialismo do primeiro-ministro. Se o Parlamento tem mais força e não há uma maioria absoluta, há um presidencialismo do Presidente da República. Ou, se quiser, uma maior incidência parlamentar, mas onde o Presidente da República tem mais força.

Nas suas palavras, o Presidente tende a perder força nesta maioria absoluta?
Naturalmente, tende a perder e o que é estranho é não ter perdido logo. Acho que só não se notou essa perda de poder do Presidente da República uns dias depois da eleição de António Costa com a maioria absoluta porque a relação entre os dois era tão cordial, tão simpática, que provavelmente não veio ao de cima logo essa tendência. A partir do momento em que o primeiro-ministro se apercebeu que estava a correr o risco de qualquer substituição dos ministros, que dependia do Presidente da República, obviamente que quis mostrar que as coisas não são assim, que a escolha dos ministros e que quem os manda embora é o primeiro-ministro. Portanto, se quer que lhe diga, provavelmente, o primeiro-ministro até gostaria de se ver livre do Galamba, do ministro das Infraestruturas, porque, de facto, ele está envolvido em situações, em problemas, que não estão devidamente esclarecidos, como aquela história da TAP. E pode contribuir para uma certa desconfiança no Governo. Portanto, é natural que o primeiro-ministro até sentisse que tinha vantagem em afastá-lo. Estou convencido que quando o primeiro-ministro fizer uma remodelação, daqui a três ou quatro meses, antes ou depois das europeias, provavelmente o ministro Galamba não vai ficar.

Então, porque é que tomou esta atitude?
Tinha de o fazer, não só para mostrar quem manda, mas também que numa maioria absoluta o Presidente da República é um moderador. Toda a gente gosta de falar de checks and balances, mas depois quando isso funciona parece que ficam chocados. Esta coisa de se dizer que o primeiro-ministro desautorizou o Presidente da República, como? Ao exercer os poderes que lhe cabem? As pessoas devem ficar satisfeitas por o sistema ser assim. Quando não havia maioria absoluta, o Presidente da República andava com o chapéu de chuva do António Costa. Agora é o contrário: agora o primeiro-ministro tem maioria absoluta e o Presidente da República tem de respeitar isso, tem de se adaptar a essa situação. E é óbvio que compreendo a primeira reação do Presidente da República relativamente à não substituição de Galamba quando o primeiro-ministro anunciou. Agora, já não compreendo a seguir a intervenção pública que fez, e menos ainda o gelado - isso pior ainda. Portanto, acho que o senhor Presidente da República também tem de fazer um esforço. A estabilidade não se faz apenas dizendo que se quer estabilidade. A estabilidade faz-se por vezes com discrição também. O nosso Presidente, que é uma pessoa que admiro muito, mas acho que nos últimos tempos também tem exagerado. Tem de haver um esforço nos dois sentidos.

No seu entender, o Presidente não deveria dissolver o Parlamento, tal como acabou por não fazer?
Isso muito menos. Não tinha condições para o fazer.

Tinha falado várias vezes nessa ameaça da bomba atómica e criou alguma expectativa.
Exatamente, mas esse é um dos aspetos. Quer dizer, se não pretendia utilizar essa arma e a dissolução, porque é que durante seis meses não fez outra coisa se não falar na dissolução? É óbvio que, estando constantemente a falar na dissolução, estava a criar um fator de instabilidade e insegurança no governo. E, naturalmente, terá sido esse o fator preponderante para que, quando o Presidente da República diz que aquele ministro tem de sair e o primeiro-ministro diz que não, é isso que faz com que o primeiro-ministro não ceda.

Não lhe parece que António Costa possa, no futuro, sair de alguma forma beliscado por ter ficado tão colado à imagem de João Galamba? Ele deu o corpo às balas e defendeu o ministro publicamente, não poderá isso também beliscar a imagem do primeiro-ministro futuramente?
Tudo depende. Suponha que o Galamba dá um grande ministro das Infraestruturas. Suponha que ele resolve e que as pessoas dizem, "olha, mas que surpresa!". Sabe qual é o problema dos comentadores? É que ninguém comenta os comentadores, ninguém lhes vai perguntar pelos disparates que disseram. Há dias vi aquele programa do Ricardo Araújo Pereira em que ele comentava o que os comentadores tinham dito, praticamente no mesmo dia. E, realmente, devo dizer-lhe que há pouca opinião formada de uma forma rigorosa. É tudo muito catavento. É possível estarmos a assistir a um programa de televisão às nove da noite e estão a comentar de determinada forma. Veja, o caso do Marcelo. A primeira coisa que ouvi nas televisões, na maior parte dos comentadores, foi o primeiro-ministro a espalhar-se, porque estava a encostar à parede o Presidente da República e que realmente ia ser uma coisa tremenda. Por aí fora. Por volta das onze da noite, há um jornalista que diz que Costa teve aqui uma cena à Sá Carneiro com Eanes. De repente, começaram as coisas a mudar. Julgo que nesta matéria há sempre excessos e o primeiro-ministro podia ter tido uma defesa do ministro Galamba mais suave, digamos assim, e o Presidente da República podia não ter feito segunda comunicação, além do comunicado que fez no próprio dia logo a seguir à declaração do primeiro-ministro. E isso dá a sensação de que há uma guerra entre os dois titulares.

Não acha que a relação vai mudar daqui a pouco?
Não, nada, entendem-se muito bem.

Os portugueses estarão a pensar como é que com maioria absoluta há tanta instabilidade? Porque é que uma maioria absoluta atravessa tantas crises, no seu entender?
Bom, há muita instabilidade. Primeiro, é preciso ver onde estão os focos de instabilidade e já vimos que, em certas circunstâncias, o nosso Presidente da República também não é gerador de tanta estabilidade como apregoa. O Presidente da República quer ser o centro das atenções. Eu não estou com isto a defender o governo, mas ele quer ser o centro das atenções. Tem a ver com a natureza dele. Acontece que, quando um partido tem maioria absoluta, a figura do Presidente da República apaga-se um bocadinho. E ele é que devia tomar a iniciativa de se resguardar. Não foi capaz de se resguardar e estava constantemente a falar na dissolução. Depois, obviamente que o governo teve aqui uma série de situações azarentas. Vários ministros, vários secretários de Estado, que por casos, uns mais importantes do que outros, foram saindo. Mas acho que o principal problema não é esse. Acho que o principal problema do governo é nunca ter usado a maioria absoluta. Isso é que é grave.

"Acho que o senhor Presidente da República também tem de fazer um esforço. A estabilidade não se faz apenas dizendo que se quer estabilidade. A estabilidade faz-se por vezes com discrição também."

O que quer dizer com isso?
Ora bem, uma maioria absoluta serve para quê? Não serve para ser ditador, claro, não é esse o objetivo de uma maioria absoluta. Não serve para fazer a vontade de toda a gente, também não é para esse efeito a maioria absoluta. Se o povo dá a maioria absoluta a um governo, está a expressar um voto de confiança para que o governo proceda a reformas que vão de encontro à satisfação das necessidades do povo. Na habitação, na saúde, na educação, nas áreas sociais, nós sabemos como há problemas. Tivemos um comportamento extraordinário durante a covid, mas sabemos que há problemas nos hospitais, há problemas nos centros de saúde, sabemos que há problemas na habitação, há problemas na educação, alunos que entraram nos últimos três anos não tiveram um ano de estabilidade nas escolas. O aeroporto não se decide, o TGV não se decide. O grande problema desta maioria absoluta é que a gente pergunta, mas para que é que serviu a maioria absoluta? Para nada. Está a ser desperdiçada. Com isto estou a dizer que o governo deve dialogar. Normalmente com minoria somos mais agressivos, porque se tenta com mais convicção defender as nossas ideias. Quando se tem maioria absoluta, dá a impressão que se pode ser tolerante, mais complacente, mas ser tolerante e complacente não quer dizer fazer o que os outros querem. Ora, esta maioria absoluta de António Costa, nesta sua segunda ou terceira reincarnação, acho que está a ser completamente desperdiçada, porque há reformas que podiam ser feitas e não estão a ser. Se olharmos para aquilo que tem sido uma reforma mais estrutural, a única que vejo é esta agora na lei dos solos. É um ano completamente desperdiçado. O problema essencial da maioria absoluta é que a expectativa das pessoas é muito alta em relação à possibilidade de transformação do país, de reformas que é necessário fazer, e as pessoas vão perdendo a esperança. Porque deram esse voto de confiança na maioria absoluta e agora sentem que o governo não está a corresponder às suas expectativas. Aliás, a situação só não é mais grave, do ponto de vista da instabilidade porque na realidade o PSD - não vou falar nos outros partidos -, que está agora nos últimos dias a dar uma prova de vida, ainda não se assumiu abertamente como capaz de assumir a governação.

Mas o PSD estará preparado como alternativa? Não é conhecido um programa de governo, não conhecemos um governo sombra do PSD. O que é que está a faltar para que se assuma como alternativa?
Vou-lhe dizer que também tenho uma divergência relativamente à maior parte das pessoas que comentam essa questão. E designadamente em relação ao Presidente da República, porque acho que ele tem contribuído para isto, porque tem feito declarações que não são adequadas ao Presidente da República.

Por exemplo ao dizer que a direita não tem uma alternativa de governo. Já disse várias vezes que o PSD não está preparado para governar, etc. E naturalmente que o PSD está naquela posição de que se a coisa lhe cair ao colo, melhor.

Mas Luís Montenegro, a certa altura, também disse que não estava preparado para eleições.
Pois, fez mal. Porque Montenegro está justamente na expectativa de que lhe vai cair ao colo. O que é preciso é estar no momento certo. Em política é assim. Não é o melhor que pode ser o primeiro-ministro. Isso é conversa. Chega a primeiro-ministro aquele que estiver como líder de um partido - e tem de ter alguma qualidade, claro, senão não chegava a líder do partido -, aquele que estiver como líder do partido e ganhou as eleições. Portanto, o que é que quero dizer com isto? Um partido está sempre preparado para governar. A maior falácia que pode haver, seja o Presidente da República, seja o primeiro-ministro, é dizer que os partidos à direita não estão preparados para governar. Então para isso que fechem a porta. Um partido tem de estar sempre preparado para governar. E o PSD, não tenho dúvidas, está preparado para governar, porque há muita gente, há muitos quadros, que têm vontade de fazer política, nas universidades, nas igrejas, nas empresas...

Mas há aquela ideia de que a política não consegue atrair bons quadros.
Não é verdade. Tem de se dar oportunidade de criar condições, porque o problema é que os partidos políticos estão muito dominados por um aparelhismo incapaz, incompetente, que é anti meritocracia. E é óbvio que os líderes dos partidos têm de ter a capacidade de não recrutar só naqueles que conhecem, tem de haver maior abertura. Portanto, não tenho dúvidas, o PSD tem de estar preparado para governar amanhã.

Então o que é que Luís Montenegro precisa para subir nas sondagens? Porque tem sido pouco convincente.
Precisa de, por exemplo, logo com convicção, dizer às pessoas que quer ganhar as eleições. E quer ganhar como? Quais são as suas principais propostas? O que é que ele vai fazer de diferente? E depois tem de acreditar naquilo que diz. Qual é o problema dos políticos, muitas vezes? É que falam, mas não acreditam no que estão a dizer. E depois esquecem-se de um pormenor: quem está a ouvir, apercebe-se. As pessoas têm a perceção se um líder está a falar a verdade ou não.

Luís Montenegro precisa também dizer aos portugueses se fará ou não fará um governo com o Chega para poder ser mais convincente?
Com certeza. Não lhe basta dizer que não fará coligações com gente xenófoba, racista, não sei o quê. Ele tem de ser muito claro: com o Chega não há governo. Mas isso é óbvio, esse é um dos problemas do PSD. O PSD só ganha eleições se for social-democrata.

O que é que quer dizer com isso?
Quero dizer que nós nunca devemos responsabilizar apenas uma pessoa. Por exemplo, não é António Costa que é o culpado de tudo o que está a acontecer no PSD, não é Montenegro o culpado de não haver mais alternativas ou mais visibilidade dos quadros. Tudo tem uma história. E a história podemos dar-lhe continuidade num sentido ou noutro. E é por isso que quem muda a história não são as massas, nunca acreditei nisso. São os líderes, individualmente considerados.

E o que é que quer dizer com o PSD tem de ser social-democrata?
Com o dr. Passos Coelho e a Troika, houve uma viragem que muitos sociais-democratas e muita gente do PPD não quer ver - houve uma viragem clara à direita. Aliás, basta ler o livro que ele escreveu. Não vale a pena dizerem que foi a Troika, porque a Troika recomendou a austeridade e por aí fora . Leiam o livro que Passos escreveu antes de ter ganho as eleições. Ele aí diz qual é o rumo - é nitidamente neoliberal, muito na linha do Miguel Morgado, dos assessores dele, dos gurus que ele tinha lá. E, portanto, viragem à direita. Quando não consegue ir para o governo, o PSD sempre foi uma espécie de albergue espanhol. O PSD tinha mais gente de direita do que o CDS. O CDS sempre teve muitos conservadores, mas a direita trauliteira nunca esteve no CDS, estava no PSD. E então o que é que acontece? Quando o PSD e o Passos não conseguem ir para o governo, apesar de terem ganho as eleições, vem o Rui Rio e ele recentrou. E o que é que acontece? O Santana Lopes sai para um lado, o Figueiredo sai para o outro, o André Ventura sai para o outro. E de uma penada, formam-se três partidos à direita do PSD. Ora bem, a mim surpreendeu-me o Santana Lopes, porque sempre pensei que saísse pelo lado esquerdo e não pelo lado direito, mas saiu ao lado do Ventura e do Figueiredo. Ora bem, formaram-se esses partidos à direita. É agora, encostando o PSD à direita, que se vão ganhar eleições? O Partido Socialista que saiu da esquerda, saiu da geringonça, agora quer ganhar votos ao centro, obviamente. É aí que se ganham as eleições.

E se o PSD vira à direita?
Se o PSD vira para a direita, não conquista os votos do centro. O PSD não pode alienar, o doutor Montenegro não pode alienar este legado social-democrata. Não é a dimensão única, mas é uma dimensão, e aí há coincidência com o PS, porque também é um partido social-democrata, mas também é um partido radical. Tem a gente ligada ao Pedro Nuno Santos, com muita proximidade ao Bloco de Esquerda, mas é natural, os partidos são assim. O Partido Socialista tem a sua extrema-esquerda e o PSD tem a sua extrema-direita, mas não pode alienar. Entretanto, a extrema-direita autonomizou-se - está no Chega. Logo, uma coisa é, no discurso, procurar isolar aqueles que votam no Chega, no sentido de os trazer para o PSD outra vez, outra coisa é dizer que tanto faz a votar no Chega como no PSD, que nós vamos juntar-nos. Não, isso não é possível. E, portanto, o discurso do Partido Social-Democrata - e por enquanto ainda se chama Partido Social-Democrata - não pode alienar essa parte, digamos assim, da esquerda, do centro-esquerda do PSD. Para Luís Montenegro ganhar as eleições, o que ele precisa dizer é que está aqui, que é o líder do partido do PSD, do maior partido da oposição, quais são as suas propostas, as suas pessoas para governar, e dizer que acredita convictamente que vão ganhar as eleições e que o PSD vai fazer reformas que o Partido Socialista não fez. Porque há muitas coisas que são iguais. Por exemplo, espero que o PSD no Parlamento vote esta alteração à lei dos solos. Há coisas que são transversais. Quer dizer, se porventura não votar a lei dos solos, significa que o PSD está do lado dos radicais de esquerda, mas também está a proteger os radicais da direita que só favorecem os ricos. E a social-democracia vai pela via dos impostos, vai pela via da distribuição da riqueza, etc. Portanto, o Presidente da República não tem razão quando diz que a direita não está preparada. Um Presidente da República não pode dizer isso, porque só o povo é que pode dizer isso. Não é populismo, não é demagogia, em eleições o povo é que diz o que quer. Há condições para dissolver o Parlamento? Claro que não há neste momento.

rosalia.amorim@dn.pt

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