O "fazedor" Costa em silêncio deixou Marcelo no "seu próprio galho"
A conclusão estava "escrita há muito tempo". O que faltava? Marcelo Rebelo de Sousa explicou: "A intervenção do senhor primeiro-ministro, se ele quiser tê-la, porque ele não teve oportunidade de ter no final das intervenções dos demais conselheiros [a 21 de julho] e depois a intervenção do Presidente da República."
A indiferença assinalada? Pouco importava a "intervenção" de António Costa.
E a esperada intervenção do primeiro-ministro? As "explicações que ainda não deu", como referiu Luís Montenegro, mas que "devia dar", porque "teve muito tempo para estudar as respostas"?
A resposta é simples: Costa "não falou" e Marcelo "não lhe perguntou se queria falar". Nem mesmo sobre a Ucrânia e os elogios dirigidos ao Presidente pela recente visita.
"Falou mais à saída", refere fonte política ao DN, "para Miguel Cadilhe" [saíram juntos da sala] do que "lá dentro", durante as quase duas horas e meia.
Numa frase: "O que ficou pendente [expressão de Marcelo], pendente ficou".
Fonte socialista explica o "silêncio" de António Costa de uma forma simples: "Se Marcelo Rebelo de Sousa já tinha as conclusões escritas, que sentido faria que o primeiro-ministro fosse falar, dar explicações, se já tinha sido desvalorizado publicamente?"
No comunicado, lacónico, somente é referido que "foi concluída a análise da situação política, económica e social" e que, "quanto ao tema Ucrânia, foi reafirmada a solidariedade e a admiração pela resistência do povo ucraniano e reconhecido todo o apoio que Portugal - com plena concordância entre os órgãos políticos de soberania - tem prestado, nas suas múltiplas dimensões, nomeadamente política, diplomática, militar e humanitária. Foi, ainda, assinalado o compromisso de Portugal no processo de integração da Ucrânia na União Europeia e na NATO".
O que já se sabia? Que a maior parte dos conselheiros, na anterior reunião a 21 de julho, foram bastante críticos do Governo e das "contas certas", com Cavaco, Cadilhe, Balsemão, Marques Mendes e Lobo Xavier na primeira linha das "discordâncias". E claro que José Manuel Bolieiro [presidente do Governo Regional dos Açores] e Miguel Albuquerque [presidente do Governo Regional da Madeira] não deixaram escapar críticas sobre as autonomias.
E até Carlos César, presidente do PS, não renegou a ideia de que "tantos casos e casos" prejudicam o Governo [já chegou a falar de "procedimentos imprudentes" na TAP] e, à semelhança de declarações ao Público - "Alguns ministros não cumpriram as expectativas" e portanto "é necessário algum refrescamento" -, deixou passar a ideia de que "deviam ter saído mais".
Marcelo questionado, na sexta-feira, sobre as fugas de informação não se perturbou porque o Conselho de Estado "é um dos casos ao longo dos últimos oito anos em que se pode dizer, tirando um ponto ou outro, que não tem saído genericamente aquilo que lá se passa".
E "genericamente", o constante braço-de-ferro entre o primeiro-ministro e o Presidente da República não desanuviou. O silêncio da tarde desta terça-feira é "mais um sinal", refere fonte socialista.
Outro exemplo é o facto de António Costa, antes de entrar para a reunião do Conselho de Estado, ter pegado nas palavras, de sexta-feira passada, de Marcelo e ter-se autodenominado "fazedor".
"A função de um primeiro-ministro não é ser comentador, mas ser fazedor, é fazer. A nós cumpre-nos executar. Cumpre-nos identificar problemas e soluções. A outros compete naturalmente falar sobre os problemas (...). Quando nós nos confundimos nos papéis é que as coisas podem correr mal", avisou.
Na sexta-feira, Marcelo tinha dito que "precisamos de líderes inspiradores, não apenas fazedores. Alguns desses fazedores podem ser inspiradores, mas a maioria desses não são mais", acrescentando que "há determinados líderes, alguns deles há décadas, décadas, décadas e depois aquilo que surge como alternativa para o futuro são os mesmos líderes por mais quatro anos, cinco anos".
A conclusão de Marcelo? "A repetição apenas de fórmulas do passado muitas vezes é útil, noutras vezes não abre futuro".
"Para que o Estado funcione bem", avisou esta terça-feira António Costa, é "cada um no seu próprio galho" a "fazer aquilo que lhe compete", porque "a função do primeiro-ministro não é andar a queixar-se, mas resolver os problemas e encontrar novas soluções para aquilo que vai surgindo. Cada um cumpre as suas funções. E a minha função é muito simples: tenho um contrato com os portugueses assente no programa do Governo que apresentei aos cidadãos e vou cumprir."
E não há de ser o clima de tensão com Belém, desde o caso Galamba, e depois dos avisos de Marcelo sobre a "responsabilidade absoluta" do Governo que retirará o "sorriso" a Costa que diz ser a "tranquilidade" o seu "estado de espírito na vida".
"E não tenho qualquer motivo para a perder", garantiu.
Marcelo, por seu lado, tem seguido a linha mestra traçada na mensagem de Ano Novo: "Um 2023 perdido compromete, irreversivelmente, os anos seguintes (...). Está ao nosso alcance, tirarmos proveito de fundos europeus que são irrepetíveis e de prazo bem determinado. E nunca me cansarei de insistir que seria imperdoável que o desbaratássemos."
E como o Governo não pode "desperdiçar" o que "só dele depende", o Presidente não tem perdido as oportunidades de recordar que só o Governo e "a sua maioria podem enfraquecer ou esvaziar" a estabilidade," ou por erros de orgânica, ou por descoordenação, ou por fragmentação interna, ou por inação, ou por falta de transparência, ou por descolagem da realidade".
Sobre o que já tinha sido falado no Conselho de Estado, a 21 de julho, o Presidente assegurou não ter planeada "nenhuma ação em concreto". Mas, acrescentou, "a menos que eu entenda que há uma razão [nova] para falar aos portugueses sobre uma determinada matéria. Isso eu decidirei depois de ouvir o Conselho de Estado". Costa não falou. Marcelo ficou sem uma razão nova.
O objetivo, explicava Marcelo antes da reunião, é que se faça "um ponto de situação antes de se entrar num período que é crucial para o país e para todos os países, que é o Orçamento do Estado".
E "tendo em linha de conta as declarações dos conselheiros e agora já com mais um mês e meio de experiência" fazer uma "intervenção de fecho" aos conselheiros sobre a situação económica, social e política do país.
E foi o que fez. Durante cerca de meia-hora analisou o que "são os principais temas atuais": A Saúde [Manuel Pizarro vai dar explicações ao Parlamento no dia 15], a Educação [há novas greves marcadas], a Habitação [PS garante que vai ignorar veto de Marcelo], sem esquecer a questão do novo aeroporto e da privatização da TAP.
Marcelo, já o disse, tem outros receios. O Presidente teme que a inflação alta possa causar um "novo aumento dos juros" e que "os meses de final do ano podem não ser o que desejaríamos". Tradução? Crescimento zero.
Ou seja, "não subir o turismo ao ritmo em que estava a subir, não subirem as exportações ao nível em que estavam a subir e, obviamente, o crescimento sofrer com isso, ao mesmo tempo que a nossa inflação é melhor do que a externa, que pode provocar a continuação da política de juros altos do BCE".
Preocupação que é também partilhada pelo governador do Banco de Portugal, que alerta para um "enquadramento económico (externo) que "mostra sinais de desaceleração e mesmo com dimensões recessivas".
Mário Centeno, ex-ministro das Finanças de Costa, considera que "os indicadores económicos da área do euro divulgados em julho não são animadores, mas o cenário em que evitamos uma recessão está ainda no centro das nossas avaliações".
Um final de ano "bastante complicado" para a economia
Em junho, com revisão em alta da previsão para o crescimento do PIB este ano pelo Banco de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa sublinhava a "dupla realidade" em que o país vive, com os números da economia a melhorarem, mas as famílias a tardarem a senti-lo no bolso. Mais recentemente, em plenas férias no Algarve, o chefe de Estado disse que, com as contas públicas equilibradas, "há folga para desagravar impostos", mas também reconheceu que as perspetivas se degradaram desde o início do verão e que tudo dependerá da evolução da economia. E o que se pode esperar até ao final do ano?
"Um último trimestre bastante complicado em consequência do abrandamento do turismo a partir de setembro, e do impacto da subida dos juros iniciada há um ano e que se irá refletir agora nos contratos indexados à Euribor a 12 meses. A persistência da inflação, associada à diminuição da capacidade de endividamento das famílias portuguesas e à diminuição das poupanças, vai contribuir para uma enorme pressão no consumo interno", antecipa Pedro Lino, economista da Optimize. Por isso, acrescenta, "é expectável que o último trimestre mostre uma contração do PIB em termos trimestrais, mas registe um crescimento quando comparado com o ano anterior".
Os desafios vêm de dentro e de fora do país. "Do lado dos fatores que não controlamos, temos uma subida dos juros e indícios de recessão ou de forte abrandamento nos principais parceiros comerciais, o que se irá refletir no investimento efetuado pelas empresas. A incerteza em torno dos preços da energia, produtos alimentares e das cadeias de abastecimento são desafios cujo desfecho pouco controlamos", sublinha. Na vertente interna, defende Pedro Lino, "a ausência de reformas e as greves na justiça, educação e saúde colocam um forte entrave ao crescimento da economia portuguesa". C.A.R
Guerra sem fim à vista traz inflação e incerteza
Enquanto o Conselho de Estado se reunia a 21 de julho, a Rússia multiplicava os ataques a Odessa, tendo os armazéns de cereais como alvo, Zelensky ameaçava destruir a ponte entre a Crimeia e a Rússia e as tropas bielorrussas anunciavam treinos futuros com os mercenários do grupo Wagner. Passado mês e meio, o round 2 do encontro entre Marcelo e os seus conselheiros de Estado coincide com a continuação dos ataques russos na Ucrânia, com a contra-ofensiva de Kiev - apesar do apoio do Ocidente - a não descolar. O acordo para a exportação de cereais foi rasgado e nem um esforço do presidente turco Erdogan para o resgatar teve qualquer sucesso. Drones de um lado e do outro continuam a infligir danos ao inimigo, numa guerra nos ares que, se não causa os estragos de uns caças F-16, vai desgastando as defesa e a moral de um lado e do outro da fronteira. Quanto ao grupo Wagner, o seu futuro é incerto depois da morte do seu líder, Yevgeny Prigozhin, na queda do avião onde seguia, a 23 de agosto, exatamente dois meses depois da sua rebelião contra as chefias militares de Putin.
No terreno, as baixas continuam a crescer, sem que nenhum dos lados revele números reais. Nem pareça disposto a ceder. O impacto sente-se em todo o mundo, Portugal não é exceção: a inflação continua a ser ameaça e o desacordo sobre os cereais ameaça a segurança alimentar, sobretudo nos países mais vulneráveis, e uma escalada dos preços. H.T.