"O Chega tem uma margem de crescimento significativa. É um partido que pode chegar aos 15%, 20%"
A poucos dias dos 49 anos do 25 de Abril, está nas bancas O Essencial da Política Portuguesa, 936 páginas densas de um contributo para explicar o meio século da democracia em Portugal. O politólogo António Costa Pinto, um dos três coordenadores do livro, olha para o país que temos, e também para o mundo, com serenidade e ciência.
Deixe-nos começar por citar Baptista Bastos: "Onde é que estava no dia 25 de Abril de 1974"?
No 25 de Abril de 1974 estava em Lisboa, no Campo Grande, em casa de um amigo, porque era já um ativista estudantil contra a ditadura e estávamos numa reunião. E de manhã, às 8h30, vem um estudante da Padre António Vieira dizer que tinha havido um golpe de Estado. Era aí que estava no 25 de Abril.
Relacionados
E o que é que se seguiu?
Seguiu-se a ida para a rua e, enquanto jovem ativista antiditadura, apercebi-me rapidamente, ao contrário de muitos outros, de que o governo tinha efetivamente caído. E mais, que a capacidade de resistência do próprio Estado Novo tinha sido reduzida a escombros. Com as manobras dos militares, com o República sem ser submetido à Comissão de Censura e com o início da presença popular nas ruas, pareceu-me que estávamos perante a queda irreversível do regime.
Tem fotografias suas nesse dia ou guarda apenas na memória?
Não, ficou apenas na memória, porque o movimento em que participava era clandestino, portanto, ainda estávamos com algumas preocupações nesta altura.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
O Essencial da Política Portuguesa foi editado esta semana. Podemos dizer que o essencial é que nestes 49 anos desde a Revolução, a democracia nunca foi verdadeiramente posta em causa?
A democracia foi posta em causa nos debates, nos conflitos, nos primeiros dois anos após o 25 de Abril. Mas com a consolidação democrática, podemos dizer efetivamente que a democracia nunca esteve em causa. Ou seja, a democracia portuguesa nunca conheceu conjunturas de crise que nos pudessem dizer que haveria um perigo para o sistema democrático, nunca tivemos um golpe de Estado com Parlamento ocupado, como no caso espanhol, e nunca tivemos outras manifestações de crise. Efetivamente, podemos dizer que a partir de 1974 nunca tivemos, sobretudo com a consolidação democrática, dinâmicas de crise que pusessem em causa ou em perigo a democracia portuguesa.
"Mário Soares teve essa grande visão e essa grande visão foi ser o dirigente de um Partido Socialista que foi muito determinante na defesa da democracia representativa em Portugal. E, por isso, podemos considerar que ele foi pai, sob esse ponto de vista ideológico, da democracia que temos."
O Partido Socialista fez 50 anos esta semana. Podemos dizer que foi o partido decisivo para a democracia, por ter sido capaz, por um lado, de conter a esquerda autoritária e, por outro, por ter obrigado a direita a aceitar um compromisso?
Diria que sim e por razões que também não são muito comuns à história da família socialista e social-democrata europeia. Isto porque quando o Partido Socialista nasce em 1973 é um pequeno partido que representa segmentos da oposição democrática e republicana à ditadura. Outras forças políticas antiditatoriais tinham muito maior peso político e de ativismo em 1973 do que o Partido Socialista. Mas em 1974/1975, o PS vai desempenhar um papel raro que, aliás, não foi o desempenhado pelo Partido Socialista espanhol ou mesmo pelo Partido Socialista grego, partindo do princípio de que estamos a falar de democratizações muito próximas temporalmente. Não, o Partido Socialista português, que se cria como um partido social-democrata, nessa altura em 1974/1975 com um programa político mais à esquerda, era até teoricamente um partido com uma base marxista, veio protagonizar o fundamental da luta pela democracia representativa e contra as tendências mais próximas da esquerda radical. E, portanto, é aí que o Partido Socialista se transforma efetivamente no grande partido em que se vai tornar. E por uma razão simples. Ele tinha uma legitimidade antiditatorial e também, e isso foi relembrado, aliás, pelo secretário-geral do Partido Socialista, António Costa, nas comemorações dos 50 anos do PS, também contra aquilo a que Mário Soares naquela altura apelidou das "tentações totalitárias do PREC". E por isso, os partidos que vão representar o centro-direita e a direita, que tinham obviamente menos legitimidade, digamos assim, no combate à esquerda radical, embora fossem partidos democratas, num certo sentido encostam-se ao Partido Socialista, que vai liderar essa dinâmica. E é a partir daí que vai ser o partido dominante da consolidação democrática em Portugal.
E é legítimo, na sua opinião, chamar a Mário Soares o pai da democracia, com o papel que teve?
Digamos que fica bem e, inegavelmente, diria que sim, porque ele é o principal pai da democracia política representativa. Mário Soares teve essa grande visão e essa grande visão foi ser o dirigente de um Partido Socialista que foi muito determinante na defesa da democracia representativa em Portugal. E, por isso, podemos considerar que ele foi pai, sob esse ponto de vista ideológico, da democracia que temos. Mas, evidentemente, tivemos outros dirigentes políticos marcantes na democracia e na democratização de Portugal que não apenas Mário Soares.
O PPD, depois PSD, não se enquadra na social-democracia europeia, ou seja, é um partido tipicamente português, é uma construção tipicamente portuguesa, ou seja, no fundo, temos um grande centrão social-democrata, isto é, a social-democracia via socialismo e a social-democracia via humanismo?
O nosso processo de democratização não diria que foi singular, mas foi distinto da maior parte dos processos de democratização da chamada terceira vaga de democratizações. Mesmo mais tarde, com as transições dos regimes socialistas no leste, na América Latina, etc., porque teve origem, como todos sabemos, de um golpe de Estado militar não hierárquico e que conheceu uma grande radicalização política à esquerda. O PPD, ou PSD, é um partido central na democratização de Portugal, porque, mais uma vez, se baseia numa dissidência legitimada no combate à ditadura. É um partido dirigido por Sá Carneiro que, como sabemos, veio da ala liberal, e muito importante porque, justamente, é o polo de um centro-direita democrático em Portugal. Mas evidentemente, este é um ponto muito interessante que não temos tempo para desenvolver, os partidos políticos em Portugal, por causa da forte dinâmica, nasceram todos à esquerda. Como disse aliás um ideólogo da direita radical, à esquerda dos seus militantes e à esquerda inclusivamente dos seus eleitores. E, por isso, o eleitor que vai votar em 1975 no PPD tem um conjunto de valores bem mais à direita do que aquilo que era o programa político do PPD, que chegava a falar de socialismo e de social-democracia. O mesmo acontece com o CDS, que se chama Centro Democrático Social, mas é um partido, obviamente, de direita democrática, mas o assumir, inclusivamente, a palavra "direita" demorou muito tempo na democracia portuguesa pelos partidos de centro-direita e direita.
A revista Economist descreve Portugal, como grande parte do ocidente aliás, como democracia frágil. Aliás, se olharmos para aquela classificação, democracias completas neste momento praticamente só os países nórdicos. Acha um exagero ou, olhando para Portugal, há sinais de fragilidade daquela democracia que como já disse nunca foi posta em causa, mas pode estar fragilizada neste momento?
Aproveito para falar do Essencial da Política Portuguesa, porque este livro pretende devolver um pouco à sociedade portuguesa uma imagem, digamos assim, mais objetiva e rigorosa daquilo que foram estes 50 anos de democracia. E não apenas em relação à sua democracia, mas também à relação entre democracia e economia, entre democracia e tipos de democracia, em relação a dinâmicas de centralização, descentralização, em relação à cultura política, à participação política, etc. A razão pela qual não é apenas por uma mera publicidade a este estudo que coordenamos, mas porque os indicadores com os quais nós observamos as democracias de uma perspetiva comparativa remetem não apenas para a questão da segurança, ou seja, se ela é frágil agora no sentido de poder sucumbir, por exemplo, numa dinâmica de crise, são indicadores que remetem para as atitudes perante a corrupção, para o grau de confiança, por exemplo, da cidadania no seu sistema judicial, à autonomia do sistema judicial, ou seja, para muitas destes indicadores. A dinâmica de repressão legítima, se por exemplo as polícias têm atitudes, digamos, de uma democracia de qualidade ou se têm excessos. E muitos mais indicadores que são muito diferenciados. E, portanto, no que é que se baseiam alguns desses que apontam para uma democracia frágil? Muitos indicadores, como salientei: as atitudes perante a corrupção, a lentidão do sistema judicial e outros que não remetem para a fragilidade no sentido, enquanto sistema político, da democracia, porque podemos dizer que numa perspetiva comparativa a democracia portuguesa tem dimensões de menor qualidade, mas que não associaria a dimensões que põem em causa ou que a colocam com fragilidade.
"Hoje o principal inimigo das democracias vem de dentro, ou seja, vem de líderes políticos que muitas vezes estão legitimados democraticamente e chegam até ao poder legitimados democraticamente. Trump chegou ao poder democraticamente, Bolsonaro chegou ao poder democraticamente."
Já falou da vaga democrática dos anos 70 que Portugal lançou, depois seguido por Espanha e Grécia, e também da nos anos 90 no leste europeu. Houve uma altura em que ficámos convencidos de que a democracia seria o modelo que o mundo todo seguiria, mas atualmente percebe-se que há um retrocesso no número de países que são considerados democracias. Há uma crise do modelo democrático?
Existe, sem dúvida nenhuma, uma crise do modelo democrático, uma crise de representação entre aqueles que, em princípio, um sistema democrático deve representar, que é a sociedade. Existem dinâmicas daquilo a que nós podemos chamar de revoltas eleitorais e existem, evidentemente, partidos políticos legitimados democraticamente que hoje não expressam valores democráticos. Como um politólogo norte-americano diz, que aliás vem à apresentação do Essencial da Democracia Portuguesa, Daniel Ziblatt, hoje o principal inimigo das democracias vem de dentro, ou seja, vem de líderes políticos que muitas vezes estão legitimados democraticamente e chegam até ao poder legitimados democraticamente. Trump chegou ao poder democraticamente, Bolsonaro chegou ao poder democraticamente. Não vou compará-los, porque a democracia italiana ainda não sofreu nenhuma dinâmica de crise comparável, mas Meloni, que provém de um partido que não expressa valores democráticos muito afirmados, chegou ao poder democraticamente. Portanto, isso é uma diferença em relação ao passado, pelo menos nas democracias europeias, vale a pena salientá-lo. Nas democracias europeias muitas vezes a nova vaga de ameaças não vem de um golpe de Estado militar ou de dinâmicas, digamos, revolucionárias, mas provém de dinâmicas do próprio interior de um sistema político democrático.
Já aqui falou na fragilidade, ou na falta dela, da democracia, mas o que é que na sua opinião ameaça mais a qualidade da democracia em Portugal? São partidos extremistas, como esses que está a descrever que acabam por fazer o combate dentro do regime, ou a abstenção que é absolutamente recorde em Portugal e que nos deixa até um pouco inquietos e irritados?
Nós temos, no geral, duas dimensões para observar a qualidade da democracia. Uma é aquilo, no fundo, o que a cidadania pensa e a outra é como é que as instituições funcionam e se relacionam. Nós podemos dizer que no campo das instituições temos dinâmicas complexas como, por exemplo, o facto do sistema judicial não responder atempadamente. E quando digo atempadamente quero dizer em relação a um conflito de cidadania, seja ele um divórcio, seja ele um problema político, seja ele um problema que remeta para as elites económicas, é de facto um problema que temos de associar à qualidade da democracia. Por exemplo, sob esse ponto de vista, está uma dimensão em que não podemos dizer que a democracia portuguesa tenha uma grande qualidade, sob esse ponto de vista. Depois temos outro, que é provavelmente o que preocupa mais a cidadania, que é a participação. Evidentemente que quanto mais participado é um sistema político democrático, para o melhor e para o pior, até porque uma maior participação pode não querer dizer que as instituições funcionam melhor, mas também não quer necessariamente dizer que valores não democráticos não penetrem mais no próprio funcionamento do sistema político democrático. E depois temos uma terceira dimensão, essa sim, que remete sem dúvida nenhuma, para um problema das sociedades democráticas contemporâneas, que é o desenvolvimento muito significativo de partidos que, muito embora não sendo antissistema, porque alguns não são, protagonizam valores que põem em causa o funcionamento da democracia. O crescimento desses partidos, eventualmente a sua chegada ao poder pelos poucos exemplos que temos, provocam uma erosão muito significativa nessa qualidade da democracia. E veja-se que temos poucos interessados neste momento, evidentemente em Portugal, em regimes políticos como o do Sr. Orban na Hungria, que foi legitimado democraticamente e que a partir de cima constrói um regime que atualmente tem muito pouco de democrático. É essa, no fundamental, a dimensão mais preocupante para a nossa democracia.
Quase 50 anos depois do 25 de Abril, acha que há algum cansaço dos partidos tradicionais? Ou seja, nós vemos por exemplo, o Chega que tem dois ou três anos, a Iniciativa Liberal que tem dois ou três também, e depois temos os dois grandes partidos do Centrão, que parecem desgastados, envelhecidos, cansados.
Sob esse ponto de vista, aliás, poderia mesmo dizer que Portugal chegou atrasado a algumas das dimensões de crise da democracia, sobretudo associada à implosão de partidos políticos que dominaram durante 30, 40 anos as democracias. Foi o caso em Itália, que é um laboratório político fascinante para nós, mas enfim, não sei se necessariamente fascinante para muitos segmentos da sociedade italiana, onde assistimos ao desaparecimento do grande partido democrata-cristão, inclusivamente de outros partidos. O caso de França, o desaparecimento quase total do partido que, aliás, pertence à família política do Partido Socialista que celebra 50 anos em Portugal, e que hoje é um partido menor. Ou seja, nessa perspetiva, podemos dizer que o sistema partidário português nos últimos 50 anos, para o melhor ou para o pior, resistiu muito acima do que muitos previam.
E vai continuar a resistir?
Ora bem, não creio, e os sinais estão lá. Enquanto à esquerda do leque político, o Partido Socialista, já há muito tempo que sofreu o desafio de um Partido Comunista relativamente poderoso, em comparação, evidentemente, com os outros e com o aparecimento do Bloco de Esquerda, pois hoje temos o desafio à direita do espectro político. Como muitas vezes tenho salientado, mas é uma banalidade, a representação política de direita estava congelada em Portugal. Tínhamos o PSD e o CDS desde 1975. Finalmente, à direita do espectro político existe um maior fracionamento com o aparecimento do Chega, finalmente, que é um partido político, temos de reconhecer, cuja família política na Europa já se tinha desenvolvido há bastante tempo, e temos agora o Iniciativa Liberal. Portanto, a ilusão dos dois grandes partidos é um grande ponto de interrogação em Portugal. Agora, já que estamos, peço desculpa e sem qualquer publicidade, numa conjuntura de comemoração dos 50 anos do Partido Socialista, diria até que, sob esse ponto de vista, a sobrevivência e o desenvolvimento do Partido Socialista é algo que o demarca de muitos partidos socialistas da sua família política na Europa.
O sistema eleitoral que temos terá alguma responsabilidade no afastamento de muitos portugueses da política? Isto é, os círculos uninominais poderiam ser uma boa alternativa a esta representatividade por distritos que leva a que, por exemplo, só para dar este exemplo, nas últimas eleições o CDS tinha tido mais votos que o Livre, mas não elegeu nenhum deputado e o Livre elegeu. Isto não leva também a algum afastamento dos eleitores que sentem que o voto deles não conta?
Há muitos anos que debatemos e uma das dimensões que é muito explorada na obra é justamente a ausência de reformas do nosso sistema eleitoral. A ausência, eu não diria de coragem, a ausência de experimentalismo por parte da nossa elite política. Mas também sabemos que uma vez consolidado um sistema eleitoral, os dois principais partidos, para o melhor ou para o pior, que são os que ganham mais com o nosso sistema eleitoral, obviamente se opõem a muitas dessas reformas. Mas deixem-me salientar que Portugal tem um sistema eleitoral que dá voz muito rapidamente a pequenos partidos, ou seja, a segmentos da sociedade portuguesa que se revêm em pequenos partidos. Ou seja, a segmentos da sociedade portuguesa que se revêm em pequenos partidos. Temos uma grande diferença dos outros, que é isso acontecer nos grandes círculos eleitorais e não acontecer, como é evidente, nos círculos eleitorais, sobretudo no caso português, de província, não é verdade? Não urbanos, ou seja, que não estão situados nas grandes metrópoles de Lisboa e do Porto. Mas a descrença na representação, a descrença nos partidos políticos não é facilmente resolvível se fizéssemos uma reforma eleitoral.
Há muita gente que critica o método D"Hondt, mas a culpa não é dele, a culpa é claramente de haver círculos eleitorais, neste momento, que por diminuição da população tornaram quase impossível eleger um deputado com menos que 40% dos votos.
Não é o método de D"Hondt que está em causa. Repare, algumas propostas que foram recusadas de reforma do sistema eleitoral, por exemplo, poderiam resolver isso. Com a criação de um círculo nacional de compensação que aproveitasse, por exemplo, todos esses votos do CDS que ficaram perdidos porque não são votos concentrados. Portanto, temos hoje toda uma panóplia de propostas para melhorar. Aí temos de reconhecer a responsabilidade exclusivamente dos dois grandes partidos da democracia portuguesa.

Leonídio Paulo Ferreira, Pedro Cruz e António Costa Pinto.
© Gerardo Santos / Global Imagens
"A guerra na Ucrânia e a sua ocupação, ou de parte dela, pelas tropas russas, inaugura uma polarização maior do sistema internacional que tem parecenças com a dinâmica democracia versus autoritarismo."
O convite ao presidente brasileiro, Lula da Silva, para discursar no 25 de Abril, faz sentido para si?
Discursar no 25 de Abril enquanto sessão oficial cumulativa não faz sentido. E não faz sentido, ainda mais porque atualmente o nível de consenso em torno do 25 de Abril no sistema partidário que está representado na Assembleia da República, após longos anos de democracia, diminuiu. Evidentemente que do ponto de vista simbólico, o presidente Lula expressa a luta pela democratização do Brasil e, inegavelmente, é um presidente que muito contribuiu para a consolidação da democracia brasileira. Mas, de uma forma ou de outra, a politização em torno da visita do presidente Lula seria realizada. Ou seja, há aqui também um episódio que me parece interessante. Até há pouco tempo, os partidos representados no Parlamento não politizavam as relações externas portuguesas, fosse na vinda, eventualmente, do presidente José Eduardo Santos, para dar o exemplo de um presidente de um regime ditatorial. Era de um país lusófono, mas com certeza não gozava de muita amizade em segmentos políticos em Portugal. Mas a ativação política de visitas como a do presidente Lula ou de outras passou a ser um facto na democracia portuguesa.
Então prevê que estas recentes declarações do presidente Lula, quase em sintonia com a Rússia na Ucrânia, criticando abertamente os Estados Unidos e a União Europeia, vão estar presentes na visita e na sua presença em Portugal?
Estarão inegavelmente presentes, mas não têm tanto a ver com o presidente Lula, reconheçamos, mas têm a ver com a conjuntura política que Portugal vive. E diria mais, têm a ver com algo que estudámos, mas que vale a pena ver como exemplo. O crescimento de novos partidos na esfera da direita do centro político colocam o principal partido de centro-direita com um grande desafio. O que é que temos observado, por exemplo, só nos últimos meses? Temos observado, por exemplo, sob ponto de vista da análise de conteúdo do discurso político, uma Iniciativa Liberal que tenta crescer politicamente e que hoje utiliza até algumas bandeiras do Chega. Não estou a dizer que seja um partido antidemocrático, longe disso. Algumas bandeiras do Chega politizam dimensões que há pouco tempo não politizavam. Temos também um PSD que naturalmente tem de responder eleitoralmente a estes desafios à sua direita. Ou seja, temos um grau de polarização maior, sob o ponto de vista discursivo. Daí, por exemplo, não tanto o PSD, mas por exemplo, a Iniciativa Liberal tomar esta iniciativa de ter, eventualmente, apenas um deputado no Parlamento, caso Lula venha e por aí adiante. Ou seja, a sociedade portuguesa tem de se habituar agora à direita a um nível de polarização como no passado conhecemos à esquerda. Não vale a pena iludir, simplesmente à esquerda já estávamos habituados, esquecemo-nos com a geringonça.
Já falámos da guerra na Ucrânia. Quando se tenta sintetizar que este choque entre o Ocidente e a Rússia e os aliados da Rússia é um choque entre democracias e autoritarismos, estamos a ser simplistas?
Estamos a ser simplistas, mas parece não haver dúvidas de que a guerra na Ucrânia e a sua ocupação, ou de parte dela, pelas tropas russas, inaugura uma polarização maior do sistema internacional que tem parecenças com a dinâmica democracia versus autoritarismo. Mas há uma enorme diferença para todos aqueles que pensam hoje isso, que pensam a natureza autoritária da China ou a natureza autoritária da Rússia em relação à outra dinâmica antiga da Guerra Fria. É que quer a Rússia, quer a China, não exportam ideologicamente ou estrategicamente ditaduras ou regimes autoritários, olham sim para os seus interesses no sistema internacional.
"Uma democracia é um sistema político em que a cidadania, em igualdade, consegue alterar a natureza dos seus governantes. E isto é um claro separador de águas entre a ditadura e a democracia."
Os Estados Unidos organizaram, pela segunda vez, a chamada Cimeira da Democracia. Escolhem quem querem, mudam os convidados de ano para ano, deixam de fora países da União Europeia e até da NATO. Pode haver muitas definições de democracia ou a democracia no sentido ocidental e liberal está claramente definida e, portanto, não há dúvidas sobre essa interpretação?
Sob o ponto de vista, quer académico, muito embora evidentemente o mundo seja por definição politizado, utilizamos conceções minimalistas de democracia. Mas quer as organizações internacionais, quer o sistema político, digamos, o sistema internacional, sabe perfeitamente distinguir democracia de ditadura. É verdade que com o aparecimento de muitos regimes políticos a que chamamos de autoritarismos competitivos, sistemas políticos como por exemplo Orbán, que tem graus maiores de liberdade de expressão e de associação, mas que são regimes autoritários, ou por exemplo a Turquia de Erdogan, essa distinção tornou-se menos clara. Mas há uma definição minimalista que não engana e essa definição creio que está interiorizada pelo sistema internacional. Uma democracia é um sistema político em que a cidadania, em igualdade, consegue alterar a natureza dos seus governantes. E isto é um claro separador de águas entre a ditadura e a democracia. Agora, deixe-me só acrescentar um ponto muito rápido. E esse ponto é que o conceito de democracia no sistema internacional em conflito sempre foi muito flexível. No passado, na Guerra Fria, o salazarismo foi considerado um regime democrático na medida em que entrou na NATO, não é verdade? E todos sabíamos que era um regime ditatorial e muitas vezes, evidentemente, que quer num bloco, quer no outro, no passado, na Guerra Fria e provavelmente hoje, há dinâmicas internacionais que se vão sobrepor, por exemplo para os Estados Unidos e para a NATO. Neste momento, parece que a prioridade é evidentemente a questão da guerra da Ucrânia e a defesa. E, por exemplo, é de prever que a posição perante regimes como o de Orbán ou mesmo perversões ao sistema democrático na Polónia sejam diminuídos.
Imagina um país como a China ser democrático? Pergunto porque a população não é desculpa, aliás, a Índia tem uma democracia e tem uma população que já ultrapassou a da China...
A Índia é muito interessante porque conhece, e falamos pouco disso, uma dinâmica populista muito significativa nos últimos anos.
Já falaremos da Índia, Voltando à China, do ponto de vista cultural também não há álibi porque Taiwan, que é povoada por chineses, que foi uma migração que veio em várias vagas do continente, é uma democracia. Portanto, imagina esta China um dia evoluir, tal como evolui economicamente, para um sistema político democrático?
Sem dúvida, por uma razão simples, porque não existem muitas condicionantes culturais, económicas e sociais ao desenvolvimento de um sistema democrático. Já que fala na questão de Taiwan e da China, a China conheceu, sem dúvida, um processo de mudança muito interessante de um tipo de ditadura a outro com as mesmas instituições políticas. Uma transição do socialismo ao capitalismo de Estado com alguns valores, entre aspas, formais associados à velha ditadura socialista e que hoje nada têm a ver com o funcionamento do sistema político chinês. Mas repare, até há muito pouco tempo, o que estava em causa aqui em Taiwan versus China não era um conflito democracia versus regime ditatorial. Taiwan é um produto, como é evidente e todos sabem, da Guerra Fria. É um produto histórico daquilo que se poderia chamar um dirigente político de direita que cria uma ditadura de direita em Taiwan, que é Chiang Kai-shek, e que conheceu um processo de transição à democracia que é muito recente. Estamos a falar dos anos 80, final dos anos 80 do século XX. E, portanto, o conflito China/Taiwan é um conflito, evidentemente, de soberania - este é o primeiro ponto -, mas que se transformou, evidentemente, numa clivagem ditadura/democracia, porque observamos que a integração de Hong Kong, de Macau e eventualmente de Taiwan na China representa a extensão do sistema ditatorial e não uma concessão ao sistema democrático.
A Índia, como se diz, é então a maior democracia do mundo, mas com muitos defeitos, é isso que quer dizer?
Quer dizer que a dinâmica eleitoral mais recente da Índia está muito próxima, internacionalmente, da dinâmica Bolsonaro ou Trump. Ou seja, com base na legitimidade do sufrágio universal, há um nacionalismo populista hindu que a partir do poder introduz já algumas dinâmicas, digamos assim, menos democráticas.
O que é que explica o sucesso dos populistas, sobretudo na Europa?
O sucesso dos populistas na Europa é explicado, creio eu, por dois fatores fundamentais, um deles é muito difícil. Os partidos sociais-democratas e socialistas perderam os grupos sociais populares e, portanto, os partidos populistas de direita, de direita radical, na sua retórica antissistema, na sua retórica, inclusivamente, seja anti-imigração, os temas variam muito, antidemocracia representativa, conquistaram segmentos muito importantes das sociedades europeias.
Mas esses partidos populistas, muitas vezes chamados de extrema-direita radical, têm coerência entre si? Ou seja, o VOX é igual à Frente Nacional ou é igual ao Chega?
São partidos que muitos colegas meus definiram como partidos de ideologia fina. Ou seja, não são partidos com uma grande coerência ideológica, mas têm três valores fundamentais. O primeiro é a soberania e a identidade nacional. Essa identidade nacional de preferência é homogénea, portanto movimentos multiculturais são, no fundamental, rejeitados. E, em terceiro lugar, é quase sempre em função de um interesse nacional e de uma identidade nacional em que são rejeitadas não apenas as instituições políticas democráticas, mas sobretudo as dimensões associadas ao Estado Social, mas só para nós, à imigração, à segurança e à ordem, que são valores, evidentemente, mais conservadores tradicionais.
E em Portugal até onde é que pode ir o Chega?
O Chega pode ir basicamente a todos esses. O que nós observamos no Chega é que, por um lado, a figura do seu líder é muito marcante ainda, mas observamos que o Chega explora basicamente toda a panóplia de valores que são expressos por esses partidos. Não explora aqueles que são menos sensíveis na sociedade portuguesa. Não vale a pena falar de alguns. Agora fala mais de imigração porque a imigração está mais visível, mas não se falava. Não se fala de Salazar porque Salazar não é muito mobilizável politicamente como valor positivo, mas na sociedade espanhola Franco é. Portanto, digamos, é aí que podemos dizer que o Chega é um partido populista, não é um partido de extrema-direita clássica, coerente. Até do ponto de vista eleitoral pode crescer significativamente. Vai depender muito da capacidade e isso vale a pena salientar, porque há limites na maior parte dos casos. Até agora o sistema partidário português tem resistido bem, mas o Chega tem uma margem de crescimento significativo ainda na sociedade portuguesa. Ou seja, é um partido que pode chegar aos 15%, aos 20%.
As Europeias de 2024, que vão acontecer pouco depois dos 50 anos do 25 de abril, podem ser um grande teste à democracia portuguesa, exatamente porque há uma grande abstenção, normalmente, há um voto menos responsável porque não há um governo para escolher e, portanto, pode haver aqui uma surpresa nos resultados eleitorais?
Sem dúvida. As eleições europeias são eleições onde o eleitorado se sente mais à vontade e, portanto, pode dar margem de crescimento ao Chega, por exemplo. Mas há um ponto, isto é, só poderá ser perturbada por um fator. Nos últimos tempos, como é sabido, a democracia portuguesa tem conhecido ameaças de dissolução com base em crises da maioria absoluta do Partido Socialista. Vai competir ao PSD conseguir junto do eleitorado de direita dizer "atenção, nós precisamos de algum voto útil porque estas eleições não são apenas europeias e cuidado com essa liberdade de voto, podem ser fundamentais para construir uma maioria alternativa ao Partido Socialista".
Vamos ter legislativas antecipadas depois das europeias?
É muito difícil de prever. No entanto, há dois pontos que também não eram previsíveis. O primeiro era a maioria absoluta do Partido Socialista e o segundo é a existência de crises de governabilidade da inteira responsabilidade do Partido Socialista. Estas duas variáveis novas, podem de facto introduzir um grande ponto de interrogação sem resposta à sua pergunta.
Partilhar
No Diário de Notícias dezenas de jornalistas trabalham todos os dias para fazer as notícias, as entrevistas, as reportagens e as análises que asseguram uma informação rigorosa aos leitores. E é assim há mais de 150 anos, pois somos o jornal nacional mais antigo. Para continuarmos a fazer este “serviço ao leitor“, como escreveu o nosso fundador em 1864, precisamos do seu apoio.
Assine aqui aquele que é o seu jornal