Morreu Otelo Saraiva de Carvalho, o capitão de abril com o "coração junto da boca"

Capitão de Abril, de 84 anos, estava internado no Hospital das Forças Armadas.
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Otelo Saraiva de Carvalho morreu este domingo, aos 84 anos, no Hospital das Forças Armadas, em Lisboa, onde estava internado há cerca de 15 dias, confirmou ao DN o presidente da Associação 25 de Abril, Vasco Lourenço. O velório realiza-se na terça-feira, na Igreja da Academia Militar, em Lisboa, e o funeral no dia seguinte, em local ainda a determinar, segundo disse a Associação 25 de Abril à Lusa.

Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho nasceu em 31 de agosto de 1936 em Lourenço Marques, Moçambique, e teve uma carreira militar desde os anos 1960, fez uma comissão durante a guerra colonial na Guiné-Bissau, onde se cruzou com o general António de Spínola, até ao pós-25 de Abril de 1974.

Responsável pelo setor operacional da Comissão Coordenadora do MFA, foi ele quem dirigiu as operações da revolução dos cravos.

Conotado com a ala mais radical do Movimento das Forças Armadas, foi preso do 25 de novembro.

Na década de 1980, o seu nome surge associado às Forças Populares 25 de Abri (FP-25), organização terrorista responsável por vários atentados em mortes, tendo sido condenado, em 1986, a 15 anos de prisão por associação terrorista.

Em 1991, recebeu um indulto, tendo sido amnistiado em 1996, a pedido do Presidente da República Mário Soares.

Figura sempre controversa, em ainda em 2011 foi alvo de um inquérito do Ministério Público, arquivado depois, na sequência de uma queixa alegando que teria cometido o "crime de alteração violenta do Estado de Direito, de incitamento à guerra civil e à desobediência coletiva".

Em causa estavam as suas declarações a propósito de uma manifestação de militares que estava marcada para dia 12 de novembro desse ano.

Otelo Saraiva de Carvalho afirmara ser contra essas manifestações, mas defendeu que, se fossem ultrapassados os limites, com perda de mais direitos, a resposta poderia ser um golpe militar, que a concretizar-se seria mais fácil do que em 1974.

Depois Otelo retratou-se. "Para mim, os militares, que são o último bastião do poder instituído, estão sempre em situação de reserva. E vão aguentando a situação, mesmo que vejam que a atividade política dos governantes não seja a preferida do povo, até que sejam ultrapassados determinados limites, tal como aconteceu no 25 de abril".

"Não disse que estavam criadas as condições para isso, nem incitei ninguém à revolta. Nada disso", sublinhou.

Sobre este episódio, na altura o general Ramalho Eanes afirmou: "Sabe, eu sou muito amigo do Otelo, mas o Otelo é um homem que tem o coração junto da boca, de maneira que muitas vezes diz o que o coração quer e não o que a cabeça deve pensar", disse o ex-chefe de Estado António Ramalho Eanes.

Mário Soares tinha uma opinião semelhante sobre este capitão de abril: "é uma pessoa de coração muito bom, apesar de tudo, que tem de ser considerada como uma pessoa que contribuiu para que nós hoje vivamos todos em liberdade. Eu tenho esse sentimento em relação a ele, e amizade em relação a ele, apesar de de vez em quando dizer assim a sua asneira. E eu digo-lhe a ele também, ele não se importa muito", acrescentou Mário Soares, na sequência nas polémicas declarações.​​​​

O Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra, resume assim o seu percurso:

- Foi alferes em Angola de 1961 a 1963, capitão de novo em Angola de 1965 a 1967 e também na Guiné entre 1970 e 1973, sendo um dos principais dinamizadores do movimento de contestação ao Dec. Lei nº 353/73, que deu origem ao Movimento dos Capitães e ao MFA;

- Era o responsável pelo setor operacional da Comissão Coordenadora do MFA e foi ele quem dirigiu as operações do 25 de Abril, a partir do posto de comando clandestino instalado no Quartel da Pontinha. Graduado em brigadeiro, foi nomeado Comandante do COPCON e Comandante da região militar de Lisboa a 13 de Julho de 1975;

- Fez parte do Conselho da Revolução quando este foi criado em 14 de Março de 1975. Em Maio do mesmo ano integra, com Costa Gomes e Vasco Gonçalves, o Directório, estrutura política de cúpula durante o IV e V Governos Provisórios;

- Conotado com a ala mais radical do MFA, viria a ser preso em consequência dos acontecimentos do 25 de Novembro.

- Solto três meses mais tarde, foi candidato às eleições presidenciais de 1976. Volta a concorrer às eleições presidenciais de 1980;

- Em 1985 foi preso na sequência do caso FP-25;

- Foi libertado cinco anos mais tarde, após ter apresentado recurso da sentença condenatória, ficando a aguardar julgamento em liberdade provisória;

-Em 1996 a Assembleia da República aprovou uma amnistia para os presos do Caso FP-25.

No twitter vão sendo publicadas algumas reações.

"Otelo Saraiva de Carvalho (1936-2021) Uma figura maior do que a sua própria história. Estratega do 25 de abril, será sempre lembrado como um dos libertadores de Portugal", sublinha a coordenadora do BE Catarina Martins.

"Morreu Otelo Saraiva de Carvalho. A história julgará a sua coragem, o seu arrebatamento e os seus erros, mas ficará na nossa memória como um forte símbolo de Abril. Que descanse em paz", escreve Carlos Zorrinho.

"O plano militar de Otelo Saraiva de Carvalho saiu vencedor no dia 25 de Abril de 1974, e estou-lhe grato por isso. O plano político de Otelo Saraiva de Carvalho no processo revolucionário que se seguiu foi derrotado, e estou também grato por isso. É impossível (e fundamentalmente injusto) passar julgamento sobre toda a vida de um homem. Houve violência, abusos e arbitrariedades no processo revolucionário, que felizmente foram vencidos. Ter conduzido a ação militar que acabou com a ditadura vale mais do que tudo. Otelo Saraiva de Carvalho venceu quando era fundamental que vencesse; e perdeu quando era fundamental que perdesse. Acho que ficámos todos melhor assim. O (muito) que nos falta resolver na qualidade da nossa democracia cabe-nos agora a nós. Obrigado, capitão", assinala João Paulo Batalha, ativista anticorrupção e ex-presidente da associação cívica Transparência e Integridade.

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