Moedas põe na gaveta proposta que fazia disparar rendas acessíveis
Carlos Moedas pôs na gaveta uma proposta que iria fazer disparar os preços nos dois novos projetos de renda acessível da Câmara de Lisboa. Moedas anunciou a retirada da proposta, minutos antes de se iniciar a sua discussão, sem dar justificações sobre o seu adiamento, nem nova data para a levar a votos, mas o texto previa um novo modelo de cálculo das rendas acessíveis em dois empreendimentos (um em Benfica e outro no Parque das Nações) que propunha uma mudança radical da forma de cálculo das chamadas “rendas acessíveis”.
Até agora, a Câmara de Lisboa estabelece estas rendas tendo como referência uma taxa de esforço máximo de 30% do rendimento dos agregados familiares, mas Carlos Moedas quer que se aplique antes um desconto de 20% sobre o preço médio de mercado praticado na zona. Na prática, isso fará com que um T1 em Benfica deixe de ficar no intervalo, estimado pelo Regulamento Municipal, entre os 150 e os 500 euros e passe a custar 790 euros, atingindo 158% a 526% do preço anterior . Se o mesmo T1 ficar no Parque das Nações, o preço será 1,8 a 6,4 vezes o valor anterior, com a renda a ficar nos 900 euros por mês.
Neste momento, um T2 de renda acessível custa entre 150 e 600 euros. Com as regras que Moedas propunha, em Benfica um T2 poderia ficar até 6,4 vezes mais caro, passando para os 970 euros. E um T3, que hoje custa entre 200 e 800 euros, poderia passar a custar entre 171,8% e 687% do preço anterior, se situado no Parque das Nações, onde a Câmara propõe uma renda de 1375 euros para esta tipologia.
Caso a proposta venha a ser aprovada, as rendas serão cobradas pelos promotores privados a quem a autarquia cederá terrenos municipais no valor de cerca de 30 milhões de euros, num direito de superfície por 90 anos, para que construam e giram estes novos fogos.
O novo modelo será uma forma de contornar o aparente desinteresse dos privados pelos concursos de renda acessível que tinham sido lançados por Fernando Medina. Os programas para Benfica e Parque das Nações tiveram apenas um concorrente, que foi desclassificado por não cumprir os requisitos da Câmara, e concurso do Paço da Rainha ficou deserto.
As regras propostas por Carlos Moedas para Benfica e Parque das Nações geraram um coro de protestos na oposição, com críticas de PS, Cidadãos por Lisboa, PCP, BE e Livre, que questionavam como se podem considerar acessíveis rendas que podem chegar aos 1150 euros para um T2 no Parque das Nações.
Na véspera da reunião de Câmara na qual estava prevista a discussão da proposta, a vereadora da Habitação, Filipa Roseta, introduziu uma alteração que prevê que a autarquia subsidie a diferença entre as rendas estabelecidas nestes termos de referência e uma taxa de esforço correspondente a 30% dos rendimentos dos agregados familiares.
“A necessidade de introduzir essa alteração é a prova de que essas rendas não são acessíveis”, critica ao DN a vereadora do PS Inês Drummond, notando que se a Câmara suportar essa diferença está, “na prática, a financiar duplamente” a operação dos privados.
CML paga duas vezes?
Segundo as contas de Inês Drum mond e tendo em conta que o preço médio de um T1 de renda acessível em Lisboa em 2021 estava nos 300 euros, a Câmara poderia ter de pagar “600 euros por mês durante 90 anos” para garantir esse subsídio. Segundo dados recolhidos pela vereação socialista, só nestes apoios às rendas acessíveis podia estar em causa uma despesa de “3,5 milhões de euros por ano”.
Mais: a vereadora socialista diz que não se pode considerar acessível uma renda que, para cumprir a taxa de esforço de 30%, exclui quem ganha menos de 1930 euros para um T1 e faz com que seja preciso um agregado familiar ter um rendimento mínimo de 3930 euros para aceder a um T3. “Estamos a deixar de fora enfermeiros, polícia, médicos internos, professores. São profissões que Lisboa tem dificuldade em atrair”, ataca Inês Drummond, que considera estas regras “um insulto aos lisboetas”.
Paula Marques, vereadora dos Cidadãos por Lisboa que no anterior Executivo teve a pasta da Habitação, não poupa críticas a um modelo que “subverte o conceito de renda acessível”. Paula Marques frisa que este modelo prevê benefícios fiscais nacionais e municipais, incluindo a isenção de IMI, pelo que ainda se entende menos esta “dupla subsidiação” com o subsídio de renda para manter a taxa de esforço nos 30%.
Para contornar este disparar de preços previsto com a possibilidade de tomar como referência o valor de mercado da zona, PS e PCP apresentaram propostas nas quais se aplicaria o Regulamento Municipal, que calcula a renda de acordo com uma taxa de esforço até 30%. João Ferreira, do PCP, diz ao DN que na proposta de Carlos Moedas “a Câmara paga duas vezes, paga através da cedência do direito de superfície dos terrenos e paga no subsídio de renda”, para suportar rendas que “tendo por referência os valores de mercado não deixam de ser especulativas e inacessíveis”.
De resto, Paula Marques entende que, não havendo interesse dos privados no modelo que estava previsto, a Câmara devia ponderar assumir a construção de fogos de renda acessível. “Neste momento, o município tem uma condição financeira que não havia no anterior mandato. Era mais prudente avançar com um modo de construção pública.” É que, segundo Paula Marques, além das receitas de que a Câmara goza, há ainda que ter em conta as verbas previstas no PRR (Plano de Recuperação e Resili-ência) que podiam ser alocadas a programas de apoio à habitação através do arrendamento acessível.
Essa é uma fórmula com a qual João Ferreira concorda. De resto, era essa ideia do PACA (Programa de Arrendamento a Custos Acessíveis), que foi lançado por Fernando Medina, tendo por base uma proposta comunista. Era sobre esse modelo de construção feita e gerida pela Câmara que estava desenhado o projeto de rendas acessíveis para o Restelo, que PS e PCP acusam Carlos Moedas de ter deixado na gaveta, depois de duas consultas públicas e quando - como afiança João Ferreira - “havia pareceres internos dos serviços a dizer que o projeto estava em condições de avançar”. Faltava lançar o concurso para avançar a construção.
“Não temos nenhuma oposição a parcerias com privados, mas o acesso tem de estar garantido”, comenta a socialista Inês Drum- mond, que acusa Carlos Moedas de “estar a arrastar os pés”, por “em dois anos e meio ainda não ter apresentado um novo modelo de arrendamento acessível”, quando critica aquele que foi desenhado por Fernando Medina.
Na prática, diz Drummond, esta proposta que foi adiada ontem não representava sequer um novo modelo, mas serviria apenas para “dar instruções aos serviços para desenvolverem os procedimentos para depois lançar os concursos”.
Contactados pelo DN, nem o BE, nem o Livre estiveram disponíveis para comentar.
Filipa Roseta, responsável pela Habitação, também optou por não dar qualquer esclarecimento sobre a proposta que esteve agendada para a reunião de Câmara de ontem, nem sobre os motivos que levaram a que fosse retirada ou quando voltará a ser discutida pelo executivo camarário.
Moedas critica oposição
Fonte oficial da Câmara de Lisboa limitou-se a remeter para uma declaração feita por Carlos Moedas, segundo a qual “Lisboa tem hoje um dos maiores programas públicos da Europa para renda acessível e apoiada, que ascenderá a 800 milhões de euros de investimento até 2028”.
Nessa declaração escrita, Moedas aponta o dedo à oposição, insinuando que o facto de não ter maioria no Executivo o impediu, mais uma vez, de pôr em marcha as suas ideias para a cidade.
“Durante anos, o PS nunca conseguiu ter um modelo que trouxesse para a solução a contribuição dos privados. Hoje estávamos preparados para trazer um complemento ao esforço público, feito por privados, que iria ajudar centenas de famílias de professores, polícias, enfermeiros e outras profissões que já não conseguem pagar renda em Lisboa. Infelizmente, mais uma vez, não tivemos condições para o aprovar”, lê-se na nota enviada ao DN.
Oposição podia passar proposta
Uma vez que o tema não chegou a ser sequer discutido, as propostas de PS e PCP acabaram por sair da ordem de trabalhos sem ter ido a votos. No entanto, pelas reações recolhidas pelo DN, percebe-se que havia uma forte probabilidade de haver uma proposta da oposição aprovada, algo que Carlos Moedas terá querido evitar, retirando a proposta sem qualquer justificação sobre os motivos que o levaram a tomar essa decisão e sem qualquer anúncio de uma nova data para trazer o tema a votação em reunião de Câmara.