Frank Carlucci e Mário Soares com as respetivas mulheres, Marcia Carlucci e Maria Barroso.
Frank Carlucci e Mário Soares com as respetivas mulheres, Marcia Carlucci e Maria Barroso.

Marcia Carlucci: “Frank acreditava que foi totalmente o povo português que construiu a democracia”

A viúva do embaixador Frank Carlucci, diplomata que teve um papel decisivo na consolidação democrática do país, vai estar em Lisboa na quarta-feira para um debate na FLAD sobre as relações entre Portugal e os Estados Unidos depois do 25 de Abril e falou com o DN por Zoom.
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A viúva do embaixador Frank Carlucci, diplomata que representou os Estados Unidos em Portugal a seguir ao 25 de Abril, vai estar quarta-feira às 19.30, em Lisboa, na sede da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) para debater as relações entre os dois países no pós- Revolução dos Cravos. Participam também na conversa a filha, Kristin Carlucci Weed, autora da biografia Get Me Carlucci, João Barroso Soares e Fernanda Rollo.  A moderação será feita pela embaixadora Randi Charno Levine. Por Zoom, antes de viajar, Marcia Carlucci partilhou com o DN a sua memória dos tempos do casal em Portugal.

Recordo que na sua visita a Lisboa em 2019, para o batismo da residência oficial do embaixador como Casa Carlucci, contou que viajou em 1975  e 1976 pelo país no seu pequeno Fiat, e contactou com as pessoas de norte a sul, e ia partilhando com o seu marido, o embaixador Frank Carlucci, o que sentia o povo português pela democracia. O que lhe disse?
Bem, é interessante porque sempre trabalhei e estive empregada até me casar. E quando Frank e eu nos casámos, o meu trabalho tornou-se o que eu quisesse que fosse. E Frank, ao longo da sua carreira, sempre sentiu que era muito importante, quando se está a lidar com qualquer situação, sair e conversar com as pessoas, ouvir as pessoas, ouvir o que os cidadãos estão a dizer. Quando ele foi nomeado como emissário do presidente [Richard  Nixon] após o enorme desastre causado pelo furacão Agnes [que atingiu em 1972 grande parte da costa Leste dos Estados Unidos], sentiu que era seu dever sair e ouvir. Ouvir os cidadãos cujas vidas foram totalmente perturbadas por esse enorme furacão. Então senti, como se estivesse a seguir cartilha dele, que era uma boa ideia sair no meu pequeno Fiat, onde não seria reconhecida por ninguém, e viajar por Portugal. E então fiz isso e voltei a fazer. E provavelmente fiz isso mais no segundo ano do que no primeiro. Mas logo no primeiro ano consegui perceber que havia um sentimento generalizado, de que o povo português queria a democracia, que não desejava que o comunismo fosse o caminho a seguir. E foi isso que senti, que havia laços com o Ocidente, que havia laços com a Europa e laços com os Estados Unidos. E certamente uma sensação de que estava certo o pensamento inicial de Frank, que se opunha ao que o secretário [de Estado Henry] Kissinger pensava. Frank acreditava que Portugal não estava condenado, que o que precisávamos fazer era ouvir mais, falar menos e apoiar mais.

Marcia Carlucci em Lisboa em 2019, na inauguração da Casa Carlucci, novo nome da residência oficial dos embaixadores americanos
Sara Matos / Global Imagens

Quão difícil foi para o seu marido, como embaixador em Lisboa, transmitir as suas ideias a Washington contrariando a ideia e as teorias de Kissinger? Havia pessoas em Washington que ouviam?
Sim. Deixe-me responder primeiro dizendo que pessoalmente sinto que a carreira de Frank, o que ele tinha feito antes de chegar a Portugal, fez dele o melhor emissário que os Estados Unidos poderiam ter enviado. Ele era um diplomata, então sabia como operar no mundo do Departamento de Estado. Ele esteve no Brasil, então falava um pouco de português, com sotaque [risos]. Ele também passou muito tempo nas agências nacionais. Ele trabalhou no que chamamos o nosso Departamento de Gestão e Orçamento. Então, para sintetizar, ele sabia onde estava o dinheiro. Ele sabia como conseguir o dinheiro. Ele também atuou no Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar. Então, conhecia a área de saúde médica de emergência, que foi um dos programas que trouxe para Portugal e ajudou a implementar. Ele soube usar esses dois elementos da sua formação. Além disso, ele sabia como trabalhar com o Capitólio. Ele conhecia membros do Congresso. Ele testemunhou lá muitas vezes sobre muitos assuntos. E também tinha um aliado no Chefe de Gabinete do presidente [Gerald ]Ford. Assim, ao contrário de muitos embaixadores, ele sabia que Ford o deixaria visitá-lo se fosse necessário. Então, o Frank veio para Portugal com alguma experiência e conhecimentos que provavelmente não teria de outra forma. Dito isto, o secretário de Estado era um indivíduo muito poderoso e com ideias firmes. Ele e Frank discordaram abertamente sobre Portugal. Quero dizer, esteve evidente na imprensa por uns bons seis meses. E Frank ia e voltava muito de Washington para Lisboa. Ele costumava dizer que embaixadores eficazes são aqueles que passam pelo menos tanto tempo a conversar com o nosso governo quanto a conversar com o governo do país anfitrião. Mas a dada altura, provavelmente no final do verão de 1975, Kissinger basicamente disse, ok, se você é assim tão inteligente, vá em frente e decida a nossa política [risos]. E a partir desse momento, passou a concordar. E apoiou-o sempre a partir dai. Não foi fácil. Mas deixe-me dizer também que uma das primeiras coisas que Frank fez quando chegou a Portugal foi dizer: concordo que temos aqui uma situação em que precisamos de ter uma equipa e uma boa equipa. Assim, Frank conseguiu trazer vários profissionais de alto nível. Ele trouxe o seu DCM [vice-chefe de missão], o seu conselheiro económico, o seu chefe da USIA [United States Information Agency]. Tudo isso foi crítico e importante.

Frank Carlucci e Mário Soares.

Também importante foi a relação de Frank Carlucci com Mário Soares. Lembro-me de ter visitado consigo o Cesto da Gávea, ou Ninho da Águia, a varanda com vista para o rio Tejo na agora Casa Carlucci, onde falavam sobre política. Como descreve a relação entre o seu marido e Soares? Foi uma relação política que se tornou pessoal em determinado momento?
Acho que chegou a esse ponto. Certamente não começou naquele ponto. E vou contar-lhe algo sobre o que chamam de Ninho do Corvo ou Ninho da Águia. Algum embaixador militar deu-lhe esse nome. Nós não fizemos isso. Éramos mais básicos e chamámos de Quinto Andar, assim em português [risos]. Era para nós o quinto andar. Mas, como mencionei, Frank, logo depois de chegar lá, disse: Vou procurar conhecer o maior número de pessoas no menor tempo possível. E ele saiu e começou a convidar as pessoas. E era mais o seu estilo tirar as pessoas das salas de jantar formais e subir ao topo da residência até essa vista extraordinária de Lisboa com os telhados vermelhos e o rio muito movimentado com barcos, essa vista extraordinária de um país extraordinário. E em pouco tempo, durante as conversas, os casacos foram tirados e a gravata afrouxou-se e amizades e compreensão puderam surgir com os portugueses.

Mas de qualquer forma, com Soares foi uma parceria estreita. Eles partilhavam o mesmo objetivo.
Sim. Eu diria que partilhavam o mesmo objetivo, mas a assistência e o apoio dos Estados Unidos a Portugal foram dados aos três partidos políticos [PS, PSD e CDS] logo no início. Frank também teve um bom relacionamento com Sá Carneiro. Mas depois foi o povo português que votou e os governos foram estabelecidos. Obviamente, Mário Soares, que ganhou as eleições, foi a pessoa com quem Frank teve mais relação. E isso produziu entendimento, uma amizade maior. E sim, foi uma amizade no final.

Temos no arquivo do DN uma foto sua e do seu marido juntamente com Soares e Maria Barroso. Houve alguns jantares apenas com os dois casais?
Lembro-me de um ou dois. Sim.

A sua filha, Kristin, escreveu uma biografia do seu marido usando também algumas memórias dele. Frank Carlucci teve, como disse, uma carreira extremamente bem sucedida, antes da passagem por Portugal, mas sobretudo depois, sendo o número dois da CIA com o presidente Jimmy Carter e o secretário da Defesa mais tarde com Ronald Reagan. É possível dizer, mesmo com uma vida profissional de tanto sucesso, que a etapa portuguesa foi um dos pontos altos da sua carreira?
Eu certamente colocaria esse momento no topo. Acho que foi aquele em que ele sentiu mais satisfação. Muitas vezes, quando se está no governo, está-se a trabalhar em prol de um objetivo. E, sabe, é sempre um esforço e outro esforço, mas talvez o próximo governo chegue e acabe com tudo. Mas em Portugal o quadro da democracia foi iniciado e agora podemos comemorar os 50 anos. Sim, acho que Frank diria que a sua experiência em Portugal foi um dos pontos altos da carreira, com certeza.

O embaixador Carlucci apresenta credenciais ao presidente Costa Gomes.
ARQUIVO DN

Mais tarde, o seu marido sempre foi recebido com honras em Portugal e foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique. É possível dizer que Frank Carlucci estava satisfeito por Portugal se ter consolidado como democracia , com o seu amigo Soares eleito primeiro-ministro e mais tarde presidente, e o país a entrar na União Europeia?
Ah, claro. Mas ele nunca procurou nenhum crédito pessoal por isso. Frank acreditava que foi totalmente o povo português que construiu a democracia, e que o seu papel foi apenas o de emissário dos presidentes e de garantir que o presidente pudesse ouvir as suas opiniões sobre Portugal e que a assistência, o apoio e a crença no povo português e as suas motivações eram o caminho correto a seguir. 

Sei que há dias, com a sua filha, esteve na embaixada de Portugal em Washington para uma comemoração dos 50 anos do 25 de Abril.
Eu estava lá, sim.

As pessoas reconheceram-na? Estão cientes do papel histórico do seu marido. Pode dizer-se que hoje o apelido Carlucci é popular entre os portugueses?
Fiquei surpresa com quantas pessoas vieram até mim e me agradeceram pelo que Frank tinha feito. Sim, houve muito calor, mas acho que acontece sempre que estou num encontro com portugueses.

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