Marcelo total. Ana Gomes urbana. Ventura da periferia

Os resultados das eleições de domingo confirmam que dentro de um país existem vários países diferentes - e candidatos específicos para cada um deles. Só Marcelo representa, verdadeiramente, o país no seu todo. O DN analisa os resultados, candidato a candidato.
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As eleições presidenciais estão mais do que resolvidas, mas os diversos mapas que revelaram providenciam um sem-fim de análises sociopolíticas. Há vários Portugais no Portugal que foi a votos no domingo. O do interior e o do litoral. O urbano e o suburbano. O dos excluídos e dos remediados. O dos letrados e os iletrados. E, no fim, o Portugal de Marcelo, que é o Portugal todo, nas suas múltiplas dimensões.

Marcelo Rebelo de Sousa sai das eleições presidenciais plenamente reforçado na sua legitimidade para um segundo e último mandato de cinco anos em Belém. Entrou para a galeria dos recordistas presidenciais ao conseguir ser o candidato mais votado em todos os 308 concelhos do país (e ainda nos círculos da emigração). Nunca ninguém o tinha conseguido. No conjunto de todas as eleições e reeleições presidenciais, obtém o terceiro lugar, só atrás de Mário Soares em 1991 (70%) e de Ramalho Eanes em 1976 (61%). No capítulo das reeleições, só é batido por Soares, ultrapassando os resultados de Eanes em 1980 (56,4%), de Jorge Sampaio em 2001 (55,7%) e de Cavaco Silva em 2011 (52,9%). O Presidente reeleito sai mais forte desta eleição - e bem precisa, quando o país está em verdadeiro estado de guerra por causa da covid-19. Terá também força para impor as suas condições se porventura tiver nos próximos cinco anos de enfrentar uma real ascensão da extrema-direita à governação (por via de acordos com o PSD) ou novas manifestações de instabilidade na "maioria" de esquerda.

Foi o advogado Ricardo Sá Fernandes quem, na noite eleitoral, verbalizou os ataques mais duros da candidatura de Ana Gomes à direção do PS: "demitiu-se" destas eleições e António Costa até se comportou como "mandatário de Marcelo Rebelo de Sousa". Aparentemente, a esmagadora maioria do eleitorado PS foi para Marcelo. Mas se o partido a tivesse apoiado, teria tido condições para uma vitória mais folgada sobre André Ventura. É certo que o venceu, mas a margem foi amargamente escassa. Venceu Ventura por pouco e falhou por muito o objetivo da segunda volta. E a derrota clamorosa do BE (Marisa Matias) nestas eleições também justifica plenamente a perplexidade por não ter tido o apoio dos bloquistas. Ana Gomes representou o campo dos "democratas progressistas", mas fê-lo sozinha. Ficou com a medalha de ser agora a mulher mais votada de sempre em eleições presidenciais. Mas fica muito longe dos resultados de Manuel Alegre (2006 e 2011) ou de Sampaio da Nóvoa (2016). O resultado acaba também por fragilizar a linha interna do PS que aposta no seu apoiante Pedro Nuno Santos para a sucessão de Costa. Na geografia eleitoral, Ana Gomes suplantou André Ventura sobretudo nos distritos mais urbanos e/ou litorais: Braga, Porto, Aveiro, Coimbra, Setúbal, Lisboa. Notoriamente, bateu o candidato da extrema-direita nos eleitorados mais letrados e nas geografias mais litorais. Fica uma frase sua para história da noite eleitoral: "Se eu não tivesse estado nesta disputa, estaríamos hoje a lamentar ainda mais a progressão da extrema-direita."

Nas legislativas de 2019, o Chega apresentou-se pela primeira vez a votos e conseguiu eleger um único deputado, o seu líder, André Ventura, obtendo o partido cerca de 68 mil votos. No domingo à noite, Ventura subiu meteoricamente para quase meio milhão. Falhou, por pouco, o objetivo de ficar em segundo - pelo que levará brevemente a votos a sua liderança dentro do Chega, esperando-se uma relegitimação esmagadora. O crescimento eleitoral que protagonizou foi de tal forma exponencial que emergiu da noite de domingo como um dos grandes vencedores, a par de Marcelo. Teve muito mais do que o dobro dos votos de Marisa Matias ou de João Ferreira e, em teoria, os quase 500 mil votos que obteve dariam para o Chega formar um grupo parlamentar da dimensão da do Bloco (19 deputados, a terceira força na AR, depois do PS e do PSD). No domingo ficou claro que nas próximas legislativas nenhuma maioria de direita se formará sem o Chega, e Ventura não se cansou de o sublinhar. Tem, porém, um problema para resolver: o mapa das presidenciais (ver ao lado) revela que a sua grande força se concentra muito em distritos com escassa representação parlamentar (os do interior fronteiriço). Ora, essa pequena representação parlamentar faz que, na maior parte dos casos, só as duas maiores forças, PS e PSD, consigam eleger deputados. Dito de outra forma: ter 20% em Lisboa (que Ventura não tem) elege deputados; ter 20% em Portalegre (como teve no domingo) não elege ninguém. Tendo mais sucesso eleitoral nas comunidades onde há mais exclusão social (periferias das cidades e periferias do próprio país, com a tal concentração no interior), o Chega poderá nas próximas legislativas enfrentar o risco de não conseguir traduzir votos em deputados eleitos. Mas ficou com uma certeza (ele e o país todo): Rui Rio não se importará nada de negociar políticas com um líder político que já disse que não se importaria de viver numa "ditadura" de "pessoas de bem". Resta saber quem ficaria com o privilégio de definir o que são "pessoas de bem". Provavelmente, entre os dois, esse será o menor de todos os problemas.

Ao candidato do PCP o partido pedia que resistisse, e foi isso que João Ferreira fez: resistir. No cômputo geral, o seu resultado quase repete o alcançado há cinco anos pelo candidato presidencial comunista de então, o madeirense Edgar Silva. Ambos tiveram à volta de 180 mil votos. Percentualmente, João Ferreira até ficou um pouco acima de Silva: 4,32% contra 3,95%. E esse paralelismo de resultados permitiu ontem aos comunistas dizer, com razão, que na verdade é falsa a ideia segundo a qual milhares de votos comunistas voaram para André Ventura. Seja como for, é uma resistência nivelada por baixo. Nas presidenciais de 2011, Francisco Lopes recebeu 300 mil votos (7,14%); e Jerónimo saiu das presidenciais de 2006 com 466 mil (8,59%). Assim, os comunistas celebram terem resistido e o facto de terem conseguido ficar à frente da candidata do Bloco de Esquerda - algo que faz feliz qualquer comunista que se preze. Hoje o Comité Central analisará os resultados. Falta perceber se João Ferreira ainda reúne condições para ser o futuro líder - mas provavelmente será, até por falta de alternativas internas. Tudo aponta para que nas próximas legislativas a CDU passe de quarta para quinta força política, por via do crescimento do Chega. Sobre isso os comunistas nada dirão.

Em 2016, a candidatura presidencial de Marisa Matias deu ao Bloco de Esquerda o seu melhor resultado percentual de sempre: 10,12%. No domingo passado, a candidatura presidencial de Marisa Matias deu ao BE o seu pior resultado desde 2002. A eurodeputada bloquista pagou caro a recente evolução do partido contra o PS. E também o facto de o partido não ter apoiado Ana Gomes, dividindo a esquerda e assim potenciando a posição relativa de André Ventura no "campeonato dos segundos". O eleitorado do BE nas legislativas de 2019 (meio milhão de eleitores) puniu-a severamente e colocou-a não só atrás de Ventura como também do candidato do PCP, João Ferreira. Na verdade, Marisa Matias ficou escassas sete décimas à frente do liberal Tiago Mayan. E ficou definitivamente arrumada como futura líder do BE (embora sempre tenha dito que essa nunca foi a sua ambição). O caminho está todo aberto para Mariana Mortágua.

Nas legislativas de 2019, a Iniciativa Liberal elegeu um deputado e o Chega outro. Agora, o candidato da IL obteve 134 mil votos (3,22%) e o do Chega quase meio milhão (11,9%). No campeonato dos pequenos partidos eleitos em 2019 para a AR, a Iniciativa Liberal claramente perde agora para o Chega - mas apesar de tudo o candidato liberal conseguiu um score acima do do partido nas legislativas. É provável que a IL comece agora a captar personalidades do CDS descontentes com o rumo do partido.

Vitorino Silva foi candidato apenas por uma razão: apeteceu-lhe. Também passou em tempos pelo Big Brother da TVI pela mesma razão: porque quis. Tinha estabelecido um objetivo, ter mais um voto do que os 152 mil obtidos nas presidenciais de 2016, e falhou. Ficou-se pelos 122 mil.

Os cadernos eleitorais registaram um crescimento de 1,2 milhões de novos eleitores recenseados automaticamente no estrangeiro, mas para o resultado final isso nada contou. O facto, incontornável, é que no domingo votaram menos de metade de eleitores do que nas presidenciais de há cinco anos. Foi a mais elevada taxa de abstenção alguma vez registada em eleições presidenciais.

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