Marcelo "prende" Costa ao Governo e faz ameaça velada de eleições antecipadas

O aviso do Presidente dificilmente poderia ter sido mais claro: agora que tem maioria absoluta, Costa tem de governar "sem desculpas nem álibis". E que nem pense em, a "meio caminho", zarpar para a Europa. Ele próprio, "se necessário", poderá então "avançar para decisões mais arriscadas ou ingratas, sem hesitações ou inibições"
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Nasceu ontem um novo tabu. Um tabu para António Costa mas consolidado pelo Presidente da República (PR), no discurso que fez na tomada de posse do XXIII Governo Constitucional, no Palácio da Ajuda. E o tabu é: pode o primeiro-ministro abandonar o atual Governo para rumar a um cargo europeu em 2024? Poderá tentar suceder à alemã Ursula von der Leyen na presidência da Comissão Europeia? Ou ao belga Charles Michel na presidência do Conselho Europeu (cujo atual mandato, de resto, já não pode ser renovado)?

Discursando perante António Costa e os restantes 55 membros do novo Governo (17 ministros e 38 secretários de Estado, todos ontem empossados), Marcelo Rebelo de Sousa dificilmente poderia ter sido claro: não aceita que o primeiro-ministro deixe o cargo a meio do mandato que ontem iniciou e que, se for até ao fim, se prolongará até outubro de 2026.

O Presidente da República começou por recordar que, nas eleições de 30 de janeiro passado, entre as várias opções que tinham, os portugueses escolheram "dar a maioria absoluta a um partido" - mas "também a um homem". E isso criou ao eleito responsabilidades especiais porque cumprir o mandato até ao fim "é o preço das grandes vitórias, inevitavelmente pessoais e intencionalmente personalizadas" e, além disso, "é sobretudo o respeito pela vontade inequivocamente expressa pelos portugueses para uma legislatura." Isto é - disse ainda o PR: "Agora que ganhou, e ganhou por quatro anos e meio, tenho a certeza de que Vossa Excelência sabe que não será politicamente fácil que essa cara que venceu de forma incontestável e notável as eleições possa ser substituída por outra a meio do caminho. Já não era fácil no dia 30 de janeiro, tornou-se ainda mais difícil depois do dia 24 de fevereiro [início do ataque da Rússia à Ucrânia]."

Marcelo foi mesmo ao ponto de, muito veladamente, ameaçar com eleições antecipadas (caso Costa parta para a Europa). Fê-lo ao garantir que, "se necessário", não hesitará em "avançar para decisões mais arriscadas ou ingratas", como - recordou - fez ao convocar as últimas legislativas e ao decretar vários estados de emergência.

Depois, como se esperava, fez também vários avisos contra eventuais maus usos da maioria absoluta que agora sustenta o poder socialista no Parlamento. Usando mesmo a expressão que um dia Mário Soares (Presidente da República) atirou contra Cavaco Silva (primeiro-ministro), disse que maioria absoluta não significa "ditadura da maioria" - mas antes a responsabilidade acrescida de governar "sem desculpas nem álibis". Assim, ele próprio, continuará "vigiando distrações, adiamentos, autocontemplações e deslumbramentos", sempre "institucionalmente solidário e cooperante" - mas também procurando "espaços de pluralismo e de afirmação das oposições".

De resto, e num discurso que se iniciou com uma longa reflexão sobre a guerra que eclodiu na Ucrânia ("sabemos que ninguém gosta de passar de potência mundial a potencia regional"), o Presidente exigiu, quanto à agenda interna, "passos mais vigorosos" na reforma do sistema de justiça, "reformar com brevidade e bem" o SNS, mudanças no sistema eleitoral que o tornem "mais eficaz cá dentro e lá fora", que os fundos europeus "avancem depressa" para "remendar o que há a remendar e construir o que houver para construir", garantias de "vacinação a tempo" caso se verifiquem novos surtos pandémicos, proteção pelo Governo dos "custos dos bens básicos", não vá a guerra causar agora uma nova pandemia, a "pandemia da inflação" e até da estagflação (inflação acompanhada de recessão económica) .

Na resposta, Costa repetiu o que já tinha afirmado sobre o (inesperado) resultado que obteve nas últimas legislativas: "A maioria absoluta que nos foi concedida não significa poder absoluto. Pelo contrário, a maioria absoluta corresponde a uma responsabilidade absoluta para quem governa." "Saberemos ser uma maioria de diálogo, de diálogo parlamentar, político e social" porque "só comprometendo-nos com o diálogo social, mobilizando a sociedade civil e acolhendo os contributos positivos dos outros partidos políticos poderemos continuar a avançar."

Contudo, acabou por não responder ao repto de Marcelo sobre a eventualidade de uma aventura europeia a meio do mandato, alimentando assim o tabu. Por um lado, assegurou que está comprometido com o princípio da "estabilidade". Mas ao mesmo tempo salientou também que isso não significa "imobilismo". Foi assim, a frase completa: "Os portugueses resolveram nas eleições a crise política e garantiram estabilidade até outubro de 2026. Estabilidade não é sinónimo de imobilismo, é sim, exigência de ambição e oportunidade de concretização."

António Costa aproveitou também para anunciar que hoje mesmo o Conselho de Ministros aprovará o novo Programa de Governo, ficando assim pronto para ser discutido no Parlamento na próxima semana.

Segundo acrescentou, o Orçamento do Estado para este ano está pronto, "honrando os compromissos assumidos, como o aumento extraordinário de pensões com efeitos retroativos, a redução do IRS para a classe média ou o início da gratuitidade das creches". No médio prazo o objetivo é "romper definitivamente com um modelo de desenvolvimento assente em baixos salários", sendo que "Portugal tem hoje as condições de que nunca dispôs para virar a página para um novo ciclo de desenvolvimento sustentável e inclusivo" assente numa "economia que produz maior valor acrescentado e com mais justa repartição desse valor com os trabalhadores".

Quanto às relações com o PR, nada muda: "As eleições alteraram a composição da Assembleia da República, mas não alteraram a Constituição." Ou seja: "O Presidente é o mesmo e o primeiro-ministro também" e portanto "os portugueses podem contar com normalidade constitucional e a continuidade da saudável cooperação e solidariedade institucional".

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