Marcelo. Portugal deve assumir "glórias e fracassos" do seu passado
Foi um discurso reflexivo, longe dos temas quentes da atualidade, colocado no presente na medida em que olha para o passado. Marcelo Rebelo de Sousa fechou esta manhã a sessão solene comemorativa do 47º aniversário do 25 de Abril com um discurso em que defendeu que a História do país - nomeadamente a mais recente - deve ser dissecada, no que teve de bom e de mau. E isso deve ser, aliás, uma prioridade. Mas essa "história da História" deve ser feita sem intolerâncias e sem o extremismo de "autocontemplações globais indevidas" ou "autoflagelações globais excessivas".
"Que os anos que faltam até ao meio século do 25 de Abril sirvam a todos nós para trilharmos um tal caminho", com "as glórias que nos honram e os fracassos pelos quais nos responsabilizamos", sublinhou Marcelo Rebelo de Sousa, defendendo que estes passos devem servir hoje para a construção de "coesões e inclusões" e para o combate a "intolerâncias pessoais ou sociais".
Numa altura em que História do país se tem vindo a tornar num terreno de disputa ideológica, o Presidente da República insistiu na ideia da complexidade do olhar sobre acontecimentos passados, nomeadamente sobre o passado colonial do país, até porque "o olhar de hoje não era o desses tempos", tem uma "densidade personalista, de dignidade da pessoa humana, da condenação da escravatura e do esclavagismo, de recusa do racismo e das demais xenofobias" que foi apurando com o tempo.
E não se pode levar esse olhar de hoje, adverte o Presidente da República, ao ponto de se passar de "um culto acrítico triunfalista exclusivamente glorioso da nossa história, para uma demolição global acrítica". "Não há nem nunca houve um Portugal perfeito, não há nem nunca houve um Portugal condenado", diria, já no final.
No discurso, em que fez o elogio dos militares de abril, Marcelo evocou a sua própria história pessoal, "filho de um governante na ditadura e no império que viveu o ocaso tardio inexorável desse império, e viveu depois, como constituinte, o arranque de um novo tempo democrático, charneira entre duas histórias da mesma História".
Um discurso que mereceu o aplauso de quase todo o hemiciclo (exceção feita a Ventura), incluindo Bloco de Esquerda e PCP, que habitualmente não aplaudem as intervenções do Presidente da República.
Nesta sessão solene de comemoração do 25 de Abril, a segunda que decorre com o país em estado de emergência, a generalidade dos partidos escolheu a justiça e a corrupção como os principais temas das intervenções.
Para Rui Rio, líder do PSD, o "regime está doente e divorciado dos seus próprios princípios". Num discurso centrado na justiça, o presidente social-democrata disse que o país celebra hoje o nascimento do atual regime "num clima de algum descontentamento e algum descrédito". Sem surpresa, dado que "não tem sido capaz de se regenerar e de desenquistar os interesses que o tempo foi instalando".
"Tem faltado vontade política e ambição para se realizarem, com a necessária coragem, reformas", defendeu Rio. "Se essas reformas não forem feitas, não será com 'cordões sanitários' nem artigos de opinião radicais que venceremos os extremismos emergentes", declarou o líder social-democrata, numa óbvia referência ao Chega de André Ventura. E se há reforma que é necessária é a da Justiça, onde "grassa um claro sentimento de impunidade, seja relativamente aos mais poderosos, seja no que concerne ao próprio sistema judicial, que se autogoverna com evidente défice de transparência".
No PS, Alexandre Quintanilha sustentou que uma das lições da pandemia foi a necessidade de União de esforços - "Ou nos ajudamos mutuamente ou naufragamos todos juntos. A emergência climática, as desigualdades obscenas, as novas e antigas doenças, a insegurança laboral, a transição demográfica e os conflitos armados não podiam ser mais evidentes".
Pelo Bloco de Esquerda, Beatriz Gomes Dias defendeu que Abril "não se cumprirá cabalmente enquanto não encararmos de frente a corrupção, cimento da injustiça económica e da desigualdade" que "mina a democracia, corrói a justiça e ameaça a coesão social". Um problema explorado por muitos "para fazer crescer o seu negócio político", alertou.
Já o PCP, que levou ao púlpito a deputada Alma Rivera, sustentou que "a impunidade da corrupção, dos crimes económicos e financeiros, dos buracos da banca, da utilização indevida do erário público são afrontas à democracia". Noutro plano, lembrou que as gerações mais jovens "já são bisnetas dos antifascistas que deram a vida pela libertação", sublinhando que "todos quantos não viveram Abril de 1974 são chamados a continuá-lo". Mariana Silva, do PEV, citou Jorge de Sena para defender que se "continue a colorir" com aquilo que ainda está por fazer.
O CDS, pela voz do deputado Pedro Morais Soares, apontou também ao combate à corrupção, uma questão "prioritária". "Importa que o Estado não ignore o sentimento generalizado de descrença dos portugueses, muitas vezes justificado, relativamente à justiça, urge reformá-la e o combate à corrupção é necessário e indispensável", afirmou o parlamentar, recém-chegado à Assembleia da República.
Pelo PAN, André Silva falou num Portugal "capturado por interesses instalados", num país que "teima em não ter uma lei de criminalização do enriquecimento ilícito".
Pelo Chega, André Ventura defendeu que "os cravos vermelhos deviam ser substituídos por cravos pretos porque é o luto da nossa democracia que hoje devíamos estar a celebrar" - "Grande Abril que nos deram, grande revolução que nos transmitiram ao fim de 47 anos de um país que já não acredita".
Já João Cotrim Figueiredo, da Iniciativa Liberal, voltou à polémica em torno do desfile desta tarde na Avenida da Liberdade, acusando a "esquerda sectária" de querer ser dona do 25 de Abri.