Marcelo beijou mesmo a barriga de uma grávida? História de uma foto

Sim, beijou. O momento foi captado na noite das Marchas de Lisboa por um fotojornalista da Lusa. Mas a foto, agora icónica, acabou por não chegar diretamente aos jornais.
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Tem sido uma das sensações virais das redes sociais nos últimos dias. A foto onde o Presidente da República surge, num daqueles seus rompantes de afeto, a beijar a barriga de uma mulher (bastante) grávida, já suscitou milhares de comentários e piadas e, no estilo quezilento habitual das redes sociais, inúmeras críticas a Marcelo e à forma excessiva como às vezes manifesta os seus carinhos.

Foi tirada pelo fotojornalista da Agência Lusa António Cotrim, 64 anos, nado e criado na Madragoa, um veterano do fotojornalismo (35 anos de experiência) como já restam poucos no ativo.

Exemplo da acidez viral online foi o que escreveu, num post público no Facebook, o antigo jornalista (nomeadamente do DN) Nuno Saraiva, agora responsável pela comunicação do grupo parlamentar do PS. Elogiando o fotojornalista, Saraiva considerou que a foto é "reveladora da atual e preocupante falta de noção de Marcelo Rebelo de Sousa e de quão populista e irresponsável pode ser um Presidente da República". Depois, numa tirada escrita em modo Para Bom Conhecedor Meia Palavra Basta, enfiou o PR no mesmo saco do populismo de André Ventura: "O Coiso não faria pior. Valha-nos Deus!"

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A fotografia, porém, não foi parar ao serviço da Lusa. Ou seja: a agência não a disponibilizou aos seus assinantes (o DN entre eles). As redações só se terão apercebido da sua existência da mesma forma como se aperceberam outras centenas de internautas: pela conta no Facebook de Cotrim. Aí o fotojornalista publicou-a, dois dias depois de a ter tirado. A preto e branco e já com uma leitura política: "Com tantas urgências de obstetrícia a encerrarem todo o afeto é necessário." Mas porque não foi publicada pela Lusa?

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A razão resume-se em duas palavras: a urgência do jornalismo. Conforme Cotrim explicou ao DN, foi tirada num momento em que, como habitual (e mais ainda no jornalismo de agência), "estava a trabalhar a mil à hora".

Era de noite, já por volta das 22h00, e Cotrim, na sua veterania, tinha na cabeça a ideia da urgência de enviar serviço, tendo em conta que a essa hora os jornais estão a fechar. E portanto, de entre as muitas fotografias que tinha feito - evidentemente com uma máquina digital capaz de "metralhar" centenas por minuto -, enviou para a redação da Lusa as que mais diretamente ilustravam o evento agendado: as Marchas e a presença de Marcelo. Em rigor, se vista com atenção, aquela imagem do PR a beijar uma grávida remete muito pouco para as festividades populares da Avenida da Liberdade. Mas permite leituras que vão muito além disso.

Foi só muitas horas depois, em casa, revendo o trabalho dessa noite, que Cotrim reparou com mais atenção na foto. E fez então a ligação entre o gesto do Presidente e a crise presente nas urgências de obstetrícia do SNS. Dois dias antes (10 de junho), o país tinha ficado a saber que um bebé morrera, ao nascer, num hospital (das Caldas da Rainha) forçado a encerrar as urgências obstétricas por falta de médicos. E depois sucederam-se notícias dando conta que o problema atinge várias unidades do SNS, tema evidentemente aproveitado de imediato para a oposição, em bloco, colocar o Governo debaixo de fogo.

Acontece que, nessa altura, a imagem já tinha perdido a atualidade que a relacionava com o evento onde tinha sido registada (as Marchas, dia 12). Cotrim já a terá colocado no arquivo da Lusa mas hoje, à hora em que este texto está a ser escrito (16h00), contínua indisponível no serviço fotográfico da agência subscrito pelo DN.

Assim, o fotojornalista, achando que tinha perdido o seu tempo de publicação pela Lusa, colocou-a no seu Facebook pessoal (dia 14). A imagem iniciou então o seu trajeto viral online. E, evidentemente, como é tradição nas redes sociais, perdendo pelo caminho os seus créditos autorais.

Ora essa (falsa) ausência de autoria deu pretexto a muitos internautas (muitos dos quais escondendo-se atrás do anonimato) para, no quadro da tal tendência quezilenta das redes sociais, pôr em causa a sua autenticidade. Fotomontagem, disseram.

Irritado com isto, um camarada de Cotrim na secção de fotografia da agência portuguesa de notícias, Miguel A. Lopes, pediu-lhe autorização para publicar na sua página no Facebook a fotografia tal e qual ela fora tirada: a cores e "sem crops" [enquadramento posterior ao momento em que é tirada].

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E o que se ficou a perceber, com esta nova publicação, é que se acrescenta à imagem uma nova camada de leitura, não imediatamente percetível na versão a preto-e-branco: a mulher que o PR beija é negra.

António Cotrim conseguiu, portanto, uma imagem absolutamente icónica de Marcelo.

Tanto retrata um Presidente totalmente alinhado com a ideia de um Portugal inclusivo e aberto a todas as raças como alguém que, mesmo já estando impossibilitado de ir a votos outra vez, prossegue o seu caminho mais afetuoso do que nunca (e, para muitos, já para lá dos limites do sensato no que se exige de compostura presidencial).

E mostra também um Presidente que, face à atualidade, quer passar um recado de compaixão e empatia com as mulheres grávidas (e portanto de censura subliminar ao Governo por causa das falhas do SNS). E ainda que, beijando a barriga de uma mulher que parece estar quase a dar à luz uma vida, sinaliza assim a sua oposição de sempre à legalização da eutanásia, escassas semanas depois desta ter sido aprovada, na generalidade, no Parlamento.

Quem conhece bem Marcelo Rebelo de Sousa assegura que se "fez" ao momento, consciente de todas as mensagens que poderia passar sem ter de dizer uma única palavra. Deu também (sem querer?) uma prenda ao fotojornalista que registou a imagem: António Cotrim fê-la no exato dia em que comemorava os seus 44 anos de serviço na agência portuguesa de informação.

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