Madeira. Os "gajos" que tramaram Jardim, os milhões de obras "inventadas" e os governantes "afastados" por empresários
O "sucesso" de 47 anos de poder, as habilidades do "mestre", as obras e o "esbanjar de dinheiros", as desavenças e os "sacanas", o "poder" dos empresários e a certeza de Jardim: "Só perderam depois de eu sair." O retrato da região por 14 protagonistas da governação e da oposição. Domingo, no próximo artigo: "Os erros e falhanços do PS, os medos e as eleições "condicionadas" e o eterno braço de ferro pela bandeira da autonomia".
Domingo, 27 de junho de 1976. O CDS elege os seus únicos dois deputados no Funchal; a UDP consegue um no Machico e outro no Funchal; o PS elege sete no Funchal e um em Santa Cruz. Os restantes são todos candidatos do PSD. Só no Funchal, Machico e Santa Cruz é que o PSD, que elege no total 29 deputados, não fica com a totalidade dos eleitos. A partir daqui são maiorias absolutas a cada eleição.
Relacionados
O primeiro sinal de queda surge em 2007, mas só em 2011 é que se percebe uma tendência. A oposição (sete partidos) soma 22 deputados contra os 25 do PSD. Em 2015, a distância encurta: 23 contra 24; em 2019 surge a reviravolta histórica: 26 contra 21. Pela primeira vez a oposição tem a maioria dos deputados [PS e PSD estão separados por dois deputados - nunca tinham estado tão próximos], mas surge outra reviravolta: o CDS salta da oposição, onde esteve 43 anos, e dá a mão ao PSD, que, assim, consegue ser governo pela décima segunda vez. A maioria fica presa por um deputado. A maioria "social", como a definem dirigentes socialistas, já é "outra".
"Porque é que o CDS não se quis juntar ao PS?", pergunta Paulo Cafôfo. "Porque, obviamente, havia o interesse em manter este poder e não o interesse de fazer uma mudança. O CDS vendeu-se claramente, é esta a palavra: vendeu-se, vendeu-se ao PSD em troca de benesses. Aliás, acho que não sobra nenhum elemento do CDS que não esteja em lugares da Administração Pública regional. Ou seja, zelaram pelos seus próprios interesses em vez dos interesses das pessoas, o interesse que diziam defender", responde o atual secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, que era, na altura, líder do PS e candidato a presidente do governo regional - foi presidente da Câmara do Funchal de 2013 a 2019, ano em que renunciou para tentar ganhar o governo ao PSD.
Se esta é a "explicação" para 2019, o que explica as restantes 11 maiorias do PSD?
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
É simples, diz Jardim
Alberto João Jardim simplifica: "O caminho não era difícil, era conhecer bem a doutrina social da Igreja Católica, que dá primazia ao trabalho. E reconhecer, por outro lado, a questão da autonomia: temos que ser livres. E era preciso instalar a justiça social, era preciso instalar a educação. Em síntese: autonomia e desenvolvimento. E o desenvolvimento faz-se até eu sair do governo. Quando peguei nisto a luz era só à volta das igrejas. A gente lia nos jornais: "o almirante Américo Tomás veio inaugurar a luz no concelho tal"... Era só à volta da igreja (risos). Comecei pela luz, a seguir a água, depois o saneamento básico. E depois os caminhos, estradas pequeninas, em tudo onde havia povoados. E só depois é que comecei no grande, que eram também estruturais, as vias rápidas por exemplo, mas a prioridade foi o aeroporto", explica.
O homem que diz ter saído da liderança do partido e do governo regional "quando quis e como quis, porque aquilo [o PSD Madeira] estava cheio de gajos que não me gramam" - mais adiante há de explicar que quem "foi oposição foi o próprio partido", o "Passos que estava por trás" de Miguel Albuquerque e a "maçonaria" -, afirma-se orgulhoso de ter feito "tudo", porque "tanto governei à esquerda como à direita, tanto arranjei soluções de esquerda como de direita. Não me podem acusar nem ser de direita nem de esquerda. Encontrei talvez foi as melhores soluções".
E esse "tudo", insiste, não "são as obras". "As pessoas falam de mim por causa das obras. Eu fiz 4890 inaugurações, é verdade, mas sinto-me mais realizado na educação. A Madeira tem 500 e poucas escolas, eu fiz mais de metade. Só havia ensino secundário no Funchal, hoje há em todo o lado. Depois foi trazer uma universidade, não podia desenvolver isto sem uma universidade. E, isto é importante, articular a universidade com as linhas que são precisas para o desenvolvimento da Madeira. Não há autonomia quando os principais grupos económicos da Madeira, na altura, eram ingleses e tipos do continente. Hoje, graças a Deus, os grandes grupos económicos são de madeirenses."

As explicações ou o "segredo do sucesso", até hoje, são coincidentes - são ligeiras as diferenças - entre o que diz Miguel Albuquerque (presidente do governo regional e o primeiro a enfrentar Alberto João Jardim em eleições internas), Pedro Calado (presidente da Câmara do Funchal, que Jardim diz ser "um homem com instinto político" mas com "o defeito de falar muito, dizer coisas tontas como aquela do Exército"), João Cunha e Silva (que foi 15 anos vice-presidente de Jardim e diz que "as inimizades estão mais dentro dos nossos próprios partidos do que nos adversários"), Miguel Sousa (que esteve 12 anos no governo e aponta um "esbanjar de dinheiros" a partir de 2000) e Sérgio Marques (que também fala de "obras inventadas" a partir de 2000 e do poder de grupos económicos que, com "dedo do Jardim", o afastaram a ele e a outros do governo).
Guilherme Silva, durante anos deputado no Parlamento nacional, que mantém uma ligação próxima com Jardim e também com Miguel Albuquerque, considera o "seu" PSD "um braço que se estende nas várias áreas de influência do poder" que não descura "todas as frentes", porque "tudo isso são votos".
O "sucesso", o mestre e os "aprendizes"
Miguel Sousa, que esteve no governo de 1980 a 1992, sublinha uma palavra que justifica tanto tempo de poder: "Agradecimento" da população ao PSD, ainda hoje. Isto apesar de ter deixado "de ter a maioria absoluta, o que é significativo. E [o PSD] ganhou as eleições porque substituiu o Alberto João pelo Miguel Albuquerque. Se o Jardim, na minha opinião, se candidata mais uma vez - e ele próprio sabia -, perdia". Nas "eleições internas no PSD anteriores às da saída dele, a dos seis candidatos, em que Jardim ganha ao Miguel Albuquerque, eu estou convencido de que ele não ganhou, mas o Miguel também não reclamou, não protestou porque sabia que o Alberto João Jardim não se candidatava mais". Os madeirenses, considera o antigo vice de Jardim, "sentem e têm admiração pelo que a Madeira é hoje. Basta olhar e perceber que as pessoas estão satisfeitas. Sabem que há sempre coisas que podem ser melhoradas. Há sempre insatisfeitos, muitas vezes com a sua própria vida pessoal, mas isso ninguém pode resolver".
Quando olha para o seu percurso político (tinha 23 anos quando foi convidado para o governo e foi também o primeiro presidente da JSD Madeira), Miguel Sousa diz não sentir "mágoas" e que a sua relação com Jardim "ficou bem", apesar de "ele não me ter ajudado no que eu estava à espera, preferiu apoiar outros [nas eleições internas] depois de me ter dito muita coisa".
"Fiz grandes obras, inventei a zona franca e pu-la a marchar, fiz o aeroporto, fiz a primeira ampliação e preparei esta, fiz a adesão à UE - talvez o processo mais complexo com que nos deparamos -, ajudei a construir a autonomia porque estive lá desde 1978, praticamente fiz o percurso dos primeiros 14 anos, que é realmente aquilo que faz criar alguma coisa", afirma.
Conclusão? "Fiz o suficiente para se proteger a democracia, faço o que quero, digo o que quero."
João Cunha e Silva, vice de Jardim de 2000 a 2015 e que mais à frente defenderá o seu legado, que é questionado por Miguel Sousa e Sérgio Marques [governante de 2015 a 2017], explica o "segredo, que nem é tão segredo assim". "Logo que começaram as eleições, as primeiras eleições, antes mesmo das primeiras eleições, o PSD foi quem agarrou a bandeira da autonomia e a bandeira do desenvolvimento. E fez uma coisa brilhante: não esperou pelo governo da República e fez as regionalizações de quase tudo, porque sabia que ou tínhamos as coisas nas nossas próprias mãos e decidíamos o que era melhor para fazer, ou tínhamos que esperar por Lisboa. Lembre-se de que antigamente uma estrada decidia-se em Lisboa."
Ou seja, "o PSD confundiu-se com o partido da Madeira. Os madeirenses votavam no partido que defendia os interesses da Madeira e que desenvolvia a Madeira. Simples". E depois, claro, a "habilidade" de Jardim, que "criou um inimigo externo". "Qualquer aprendiz de político percebe isso. Ele desvaloriza os adversários internos e põe-se ao nível do adversário externo. Ficou ao nível dos que eram primeiros-ministros e fez isso com os governos do PS e do PSD."
E hoje? "O grande mérito do Dr. Miguel Albuquerque é ter querido continuar a aproveitar tudo o que de bom a gente fazia antes. Ele não mudou grande coisa. As pessoas é que são diferentes." E o PSD? "Continua o mesmo, a forma de atuar é semelhante. Não se notam grandes diferenças na forma de governar com sucesso."
Miguel Albuquerque: "Há ciclos na vida dos partidos. Há ciclos de ascensão, de menos energia, é normal. Há sempre uma época de mais cansaço. O que se passou, passou."
Sérgio Marques, que reconhece que "neste momento" a sua relação com Jardim "não é a melhor", diz ser claro que o histórico líder do partido "foi a chave enquanto agente político e o PSD beneficiou muito da liderança dele. Esta longa permanência no poder vem muito por autoria de Jardim, que soube criar uma cultura de poder. Um partido muito unido, muito mobilizado, um partido quase feito à imagem de um exército, de uma força armada, com muito pouco espaço para dissidentes".
A "estratégia que esteve sempre na base", explica, foi o "PSD afirmar-se como verdadeiramente autonomista perante Lisboa, perante o PSD nacional", e "ao mesmo tempo que era um partido de governo, era um partido da oposição". E como Jardim foi "mestre", fez parecer que "a intensidade" na defesa pelos interesses da Madeira "era praticamente a mesma [...] fosse um primeiro-ministro do PSD ou fosse um primeiro-ministro do PS. Nunca foi a mesma, mas aos olhos do eleitorado havia a arte de fazer com que fosse praticamente idêntica".
E, claro, explica, também conta muito o ADN de "parte da cultura de poder do PSD: atender a todos os aspetos, não descurar nada", mas "ele [Jardim] levou aquilo a um tal ponto que depois o que estava em primeiro lugar era garantir o poder e não tanto a governação".
Hoje, assegura Sérgio Marques, Jardim "continua a condicionar muito a vida política do partido. E muito com a ajuda dos grupos económicos que ele ajudou a formar para condicionar o PSD e a governação [...]. O Jardim ainda tem como grande motivação, é a minha impressão, em vida dele, ter uma ação importante no afastamento do Miguel [Albuquerque] da presidência do governo".
Alberto João Jardim, por seu lado, considera que "as contas batem certo" para 2027 - "o Miguel diz que só quer fazer três mandatos, o Calado diz que só quer fazer dois" -, mas, assegura, nunca irá "discutir o líder a não ser numa situação de hecatombe". Sérgio Marques não tem dúvidas: "A relação entre os dois [Calado e Albuquerque] está minada pela rivalidade."
Os rivais?
Pedro Calado - que já foi vice-presidente do governo regional e é desde as últimas autárquicas, de setembro de 2021, presidente da Câmara do Funchal - diz que "faz parte do sucesso nós [PSD] sermos muito objetivos e muito pragmáticos na defesa do interesse dos madeirenses. Isso é que é a chave", considerando "natural que um partido depois de estar tantos anos em governação acuse um certo cansaço".
"O Alberto João, bem ou mal, esteve à frente do PSD e do governo durante 37 anos... Há um certo cansaço, há um certo desgaste da imagem pública do próprio Alberto João", considera. Mas, acrescenta, "foi ele quem assinou a minha ficha de adesão ao partido. E hoje é uma pessoa com quem trabalho, com quem me aconselho".
E ser presidente do governo regional? "Tudo depende", responde. Se só quer dois mandatos, fica livre para ser candidato em 2027. Vai ser? "Sabe que na vida política um dia é muito tempo. Tudo fica dependente das circunstâncias em que nos encontrarmos. Não tenho nenhum objetivo político de ser isto ou aquilo. Há essa visão porque estive com o Miguel desde 2005. E naturalmente que a câmara, pela dimensão que tem, é um segundo governo, um minigoverno dentro da região."
"É melhor ser um bom número dois do que ser um mau número um", resume.
Miguel Albuquerque - presidente do Governo Regional da Madeira desde 2015 e presidente da Câmara do Funchal de 1994 a 2013 - afirma que o PSD se "implantou e cresceu por ser um partido verdadeiramente popular. Ou seja, um partido que fez as grandes mudanças estruturais, económicas e sociais na região. Depois foi um partido que garantiu aos madeirenses e aos porto-santenses, pela primeira vez, a mobilidade social e profissional que estava vedada. Ainda hoje, e por muito que custe à esquerda, o PSD é o partido dos trabalhadores da Madeira".
Alberto João Jardim: "A certa altura eu tinha mais adversários dentro do partido do que na rua, as pessoas que votavam. Na rua estava bem, o problema era aqueles sacanas lá dentro [do PSD]."
O homem que tomou o lugar do líder histórico social-democrata no governo e no partido, perdendo, no entanto, no combate direto com Jardim as primeiras eleições internas, diz que até "ao momento" em que disputou a liderança do PSD Madeira "não havia necessidade nenhuma", porque "havia estabilidade, havia progresso, estava-se a governar bem, havia boa liderança". Depois "passou a haver necessidade".
Alberto João Jardim, presidente do governo regional de 1978 a 2015 [de 1976 a 1978 a liderança foi de Ornelas Camacho], que tem bem fresca a memória desses dias, afirma que quando Miguel Albuquerque o "enfrentou já tinha o Passos Coelho por trás", e não só: "A maçonaria esteve fortemente ligada ao processo da minha substituição. Não estou a dizer que o Miguel seja da maçonaria, mas estiveram fortemente empenhados na minha substituição."
"Tenho maioria absoluta em outubro de 2011, mas os gajos em 2012 querem eleições para me porem na rua, para me afastar. A certa altura eu tinha mais adversários dentro do partido do que na rua, as pessoas que votavam. Na rua estava bem, o problema era aqueles sacanas lá dentro [do partido]", afirma.
Alberto João Jardim diz que só lhe "tocaram as sirenes" quando na contagem dos votos viu o "52 contra 48". "O que é que se passa aqui dentro? Depois de ganhar anunciei que me ia embora. Saí quando quis e como quis porque aquilo [o PSD Madeira] estava cheio de gajos que não me gramavam."
Confessando "uma certa tristeza" - "Porra, devo ser o primeiro primeiro-ministro no mundo que depois de uma maioria absoluta vai ser posto na rua!" - por o partido se ter transformado num "coio de ambições que não dava para todos", Jardim não tem dúvidas: "Arranjei inimigos por ter afastado gajos que eram suspeitos de ... [faz uma pausa] ou mesmo incompetentes." A verdade é "só uma", diz: "Deixei-lhes o partido com maioria absoluta. Só perderam depois do Alberto João sair."
"É a opinião dele", diz Miguel Albuquerque. "Há ciclos na vida dos partidos. Há ciclos de ascensão, de menos energia, é normal. Os partidos são como organismos vivos. Há sempre uma época de mais cansaço. E ainda bem que o PSD se renovou e soube renovar. O que se passou, passou", acrescenta.
Obras inventadas?
"Sim", afirma Miguel Sousa, que teve a coordenação económica do governo de 1988 a 1992. "Qualquer pessoa conhecedora, atenta à vida da Madeira, percebe isso. A partir de 2000 foi assim." E tudo começou com o "santo Guterres", que "pagou a dívida da Madeira em 1997. Pagou-a não com vontade de ajudar a Madeira, mas porque o Carlos César tinha acabado de ser eleito presidente do governo dos Açores e impôs ao Guterres que ou limpava a dívida dos Açores ou ele [Carlos César] não assumia o cargo. E o Guterres, para pagar a dívida dos Açores, teve que pagar a da Madeira".
Miguel Sousa: "Fizeram tudo o que era pensável e impensável, o necessário e o desnecessário, o que nunca vai ser preciso, o que nunca ficou pronto nem vai ficar [...]. E pronto, a Madeira foi à bancarrota."
Nessa altura, em 2000, a "Madeira acaba o aeroporto, tem tudo feito: o que era preciso fazer. E não tinha dívida. Ora isto era o céu na terra. Melhor não era possível". Só que, afirma, logo de seguida "[os do governo de Jardim] fizeram tudo o que era pensável e impensável, o necessário e o desnecessário, o que nunca vai ser preciso, o que nunca ficou pronto nem vai ficar pronto, foi um esbanjar de recursos financeiros que não tínhamos".
É um período de "euforia", acentua Miguel Sousa, em que "Jardim muda o governo todo, e eles pegam em 15 mil milhões de euros - 15 mil milhões de euros! -, e quase metade foi dívida, e gastam-no em 10 anos! Ninguém fazia contas, toda a gente autorizava tudo, ninguém se opunha a isso. O Alberto João também foi uma pessoa que sempre precisou de quem o acompanhasse dentro das Finanças com rigor e com acerto, e nessa altura não teve. E pronto, a Madeira foi à bancarrota. E ainda hoje temos essa dívida".
Sérgio Marques partilha da mesma ideia e separa a governação de Jardim em dois momentos: antes de 2000 e depois de 2000. Antes "foi fantástica , respondeu a tudo o que a Madeira precisava. Foi decisiva"; depois "foi um déjà vu. E a dada altura começaram a inventar-se obras, quis-se continuar no mesmo esquema de governo, a mesma linha. Obras sem necessidade, aquela lógica das sociedades de desenvolvimento, todo aquele investimento louco que foi feito pelas sociedades de desenvolvimento".
Sérgio Gonçalves: "Os grandes setores de atividade continuam a depender do governo regional e do orçamento regional."
O antigo deputado na Assembleia Legislativa (1984 a 1999), eurodeputado (1999 a 2009) e secretário regional, entre 2015 e 2017, no primeiro governo de Miguel Albuquerque considera que "o vice do Jardim, o meu colega Cunha e Silva, acabou por fazer com que muitos vícios, muitas coisas menos boas, tivessem ocorrido. E depois a influência do Jaime Ramos [empresário e antigo secretário-geral do PSD Madeira]... o crescimento dos grupos económicos".
João Cunha e Silva, vice-presidente do governo regional de 2000 a 2015 [saiu a meio do mandato na que foi a quarta remodelação no governo], é claro quando confrontado com as críticas: "Não me arrependo nada do percurso que fiz. Pode ter havido um degrau ou outro em que eu talvez devesse ter saltado, mas isso são particularidades. No geral, não me arrependo do percurso político que tive, que não foi só regional, foi nacional também."
E lembrando que "as inimizades estão mais dentro dos nossos próprios partidos do que nos adversários" e que "às vezes há uns inimigos que são capazes de maldades para atingir os seus objetivos", sublinha uma ideia: "As pessoas que fazem muita coisa sujeitam-se à crítica pelo que estão fazendo. E há outra coisa: podem fazer 100 coisas boas, se fazem uma má, é dessa que se fala e as outras são esquecidas." "O que me faz imensa confusão", acrescenta, "é a gente que passa pelos lugares e se limita à gestão, e até pode ser uma gestão competente, mas que não é atrevida, não vai para a frente, não dá a cara, não concretiza coisas. Esse ninguém critica, "tá tudo bem"".
Numa frase: "Só atiram pedras às árvores que dão fruto. Quando não dão fruta, não jogam pedras."
Pressões e dependências?
Sérgio Gonçalves, líder do PS Madeira desde fevereiro de 2022, que este ano vai disputar a liderança do governo regional, fala de "um regime, um sistema que criou uma série de dependências" e que, "se olharmos para o modelo que foi criado", percebe-se que a Madeira se desenvolveu "em grande parte com fundos comunitários que levaram a grandes obras públicas, as quais se refletiram em dois grandes setores de atividade que ainda hoje são os nossos dois principais: a construção e depois o turismo". A realidade, afirma, "é que são dois setores marcados por baixos salários e alguma precariedade laboral. Ou seja, isto leva a que os grandes setores de atividade continuem a depender do governo regional e do orçamento regional e sejam também de alguma forma criadores dessa dependência, porque as próprias pessoas com baixos salários, com menores rendimentos, acabam também por ter essa dependência".
O paradoxo? "É que são os dois, construção e turismo, setores que mais contribuem para o emprego."
Vítor Freitas, líder do partido entre 2012 e 2015, realça os "milhões e milhões de euros, além das receitas próprias e das transferências do Estado", que permitiram "aumentar a dimensão da Administração Pública regional. O que, naturalmente, também contribui para alicerçar o poder do PSD e algum clima de medo que eles conseguiram criar, quer desde a altura da FLAMA [Frente de Libertação do Arquipélago da Madeira, movimento separatista ativo entre 1975 e 1978], quer ao longo das décadas de 80 e 90 em especial".
Paulo Cafôfo: "Há ameaças nos empregos, e não falo só dos empregos públicos porque há muitos empresários que dependem do poder regional."
Paulo Cafôfo, anterior líder socialista [2020 a 2022] e atual secretário de Estado das Comunidades, sublinha essa ideia das "dependências" apontada por Sérgio Gonçalves, mas vai mais longe ao dizer que "quando até há ameaças nos empregos, e não falo só dos empregos públicos, porque há muitos empresários que dependem do poder regional, quando até simples likes em páginas das redes sociais são questionados no ambiente de trabalho, isto significa, só para dar estes exemplos, que temos uma cidadania encolhida com base neste medo que é criado".
Carlos Pereira, deputado no Parlamento nacional e também ex-líder do PS Madeira [2015 a 2018], acrescenta como argumento o seu caso pessoal: "Quando saí da Câmara de Comércio, fui diretor de uma empresa que tinha uma participação privada, não interessa sequer o grupo, mas é um grupo conhecido, e no dia em que anunciei que ia ser candidato à Câmara do Funchal o administrador veio ter comigo e disse-me que eu tinha que me demitir."
Atípico ou normal? "Era um cenário normal. Era com este tipo de coisas, e outras, que nós éramos confrontados. Até disse à minha mulher que isto ia mudar tudo, que do ponto de vista profissional ia ser complicado. E foi. Tive que sair mesmo."
Jacinto Serrão reforça a ideia do peso dos privados - "as grandes empresas, que não têm nada a ver com partidos". "Agora não é tanto, mas isso ainda acontece, e eu posso dizer isso porque sei. Mas antes era pior. Ai de um trabalhador, por mais humilde que fosse, de uma construção civil que dissesse que ia votar no PS: era despedido. Era despedido e ameaçado pela chefia da própria empresa."
O antigo líder [2002 a 2007 e 2010 a 2012] e agora deputado na Assembleia Legislativa garante que tudo "isto aconteceu de forma generalizada no tecido privado, nas empresas. E empresas com grande estrutura, hoje com grande nome". Que empresas? "Não vou falar dos nomes. São grandes empresas com um poder muito grande e com um poder de empregabilidade muito grande".
Sérgio Marques, secretário regional, entre 2015 e 2017, no primeiro governo de Miguel Albuquerque, afirma que "o problema é que esta governação social-democrata acabou por levar a que se afirmassem quatro ou cinco grupos económicos, que acabaram por acumular muito poder: Sousa, Avelino, Pestana, Trindade e Trindade/Blandy. E principalmente dois grupos [...], o Luís Miguel [Sousa], com quem eu trabalhei oito anos, e o Avelino [Farinha] acho que foram os mais beneficiados da governação regional".
Pedro Calado: "A câmara [do Funchal], pela dimensão que tem, é um segundo governo, um minigoverno dentro da região."
Foram, entende o antigo secretário regional, "muito protegidos". "Grupos que cresceram muito à conta dos negócios com a região. E depois o que é certo é que acumularam, uns e outros, muito poder e a dada altura começaram a condicionar a governação." E isso, assegura, "sentiu-se, e tanto que a dada altura foi um dos grandes argumentos do PS contra o PSD. Foi dizer que o PSD estava aprisionado pelos interesses dos grupos. Isso pesou tanto assim que os grupos viram-se na necessidade de controlar os media regionais".
Mais ainda: "Quando houve a remodelação do governo, quando eu deixo o governo, houve ali muito dedo do Jardim. O Jardim jogou as suas peças e pôs o Avelino [grupo AFA] e o Sousa [grupo Sousa] em campo. O [Luís Miguel] Sousa consegue afastar o Eduardo Jesus porque o Eduardo Jesus [ secretário regional]tinha uma agenda para reformular o porto. O Avelino [Farinha] não estava satisfeito com o meu desempenho nas obras públicas, porque eu é que era o secretário das Obras Públicas, e ele sempre se habituou a ter um secretário que o servisse. Comigo isso não acontecia [...], o Avelino depois consegue afastar-me das obras públicas. Ele não queria que eu saísse do governo, ele queria era só afastar-me das obras públicas".
Contactado pelo DN, Avelino Farinha entendeu não responder às questões colocadas: "Em algum momento, direta ou indiretamente, condicionou a governação do Governo Regional em função dos seus interesses? Em algum momento sugeriu ou pressionou o Governo Regional, nomeadamente o seu presidente, de forma a que fosse afastado do governo algum elemento que não estivesse de acordo com os seus interesses?"
Já Luís Miguel Sousa, contactado pelo DN, afirma: "Isso é um absurdo. O meu amigo Sérgio [Marques] sempre teve a mania da perseguição e sempre adorou o papel de vítima", considerou ainda o empresário.
Alberto João Jardim tem uma palavra como resposta às acusações de "dependência", "intromissão" e de "condicionamentos" da governação: "Lérias!"
A resposta de Albuquerque
Sentiu-se alguma vez pressionado por empresários?
As pessoas sabem muito bem quem é que está na política por gostar da política e fazer da política. Quem vem para a política não é para enriquecer. Toda a gente sabe disso. E também já estou na vida pública há tantos anos, eu e o Dr. Alberto João, e nunca ninguém nos acusou de corrupção nem nada disso. Estamos aqui porque gostamos disto. E sabemos o serviço que fazemos, não estamos por sacrifício. Nem o Dr. Alberto João esteve nem eu. Isso de esquemas de enriquecimento rápido não funciona connosco. Se quisesse isso, tinha enveredado pela vida empresarial.
Nunca, em momento algum, alguém lhe sugeriu que afastasse um secretário regional que estava a atrapalhar negócios?
Há uma coisa que eu gosto de ouvir, gosto de ouvir a opinião dos empresários, não tem mal nenhum ouvir a opinião e ouvir a sociedade. Nós ouvimos os empresários. Há coisas que são importantes de ouvir. O governo tem que criar as condições para o progresso económico. Não sou eu que tomo as decisões. Nós criamos as condições favoráveis. Uma coisa que eu faço também, como sempre fizemos, foi receber o investimento, recebemos os investidores. Agora, ninguém vem aqui dizer-me que me vai comprar por razões políticas, não há nada disso.
Nunca, em momento algum, afastou ninguém do seu governo por sugestão de empresários?
Não. As mudanças que eu fiz no governo foram mudanças políticas. Nunca por razões de pressão.
Nem nunca lhe disseram isso?
Não.
Nunca ninguém do seu governo saiu porque um empresário quis que saísse?
No meu governo acho que não. Pode perguntar aos secretários, mas nunca tive nenhum secretário que saísse por razões de alguém me dizer que era para sair.
Seria estranho para si ouvir alguém sentir isso e dizer que saiu por causa de pressões externas ou por sugestão externa?
Claro. Não tem nenhum sentido, até porque as políticas são definidas por mim e pelo conjunto do governo. Não é pelos secretários, os secretários trabalham em nome de uma equipa. E é definido na equipa quais são as políticas que são seguidas e estão plasmadas no orçamento e no programa do governo.
artur.cassiano@dn.pt
Partilhar
No Diário de Notícias dezenas de jornalistas trabalham todos os dias para fazer as notícias, as entrevistas, as reportagens e as análises que asseguram uma informação rigorosa aos leitores. E é assim há mais de 150 anos, pois somos o jornal nacional mais antigo. Para continuarmos a fazer este “serviço ao leitor“, como escreveu o nosso fundador em 1864, precisamos do seu apoio.
Assine aqui aquele que é o seu jornal