Jerónimo, o "camarada bom homem", deixa um guião a Raimundo

No discurso de despedida como líder do PCP, Jerónimo de Sousa passou ao largo da geringonça, mas admitiu que o partido tem "insuficiências". E deixou um caderno de encargos ao sucessor, que foi eleito este sábado secretário-geral. Os militantes mostram-se confiantes com a escolha de Paulo Raimundo.
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O camarada "é um bom homem e foi um bom líder". André Jardim, militante da JCP, veio com a família ao Pavilhão Alto do Moinho, em Corroios, Seixal, para ouvir o último discurso daquele que assumiu o comando do partido durante mais tempo do que os 17 de vida do jovem militante.

Vestido de vermelho para a Conferência Nacional do PCP, a quarta em 100 anos do partido, o Pavilhão rendeu-se quando Jerónimo de Sousa entrou ao lado do sucessor, Paulo Raimundo. De pé, punhos erguidos e a gritar "PCP, PCP" a plenos pulmões.

Raimundo foi eleito em Comité Central esta sábado à noite, por unanimidade, num dia que foi ainda de Jerónimo. No discurso de despedida da liderança, o "bom camarada" fez o pleno do verbo comunista: atacou o "imperialismo" da NATO, os EUA, a Europa e o PS, que colou completamente à direita.

Jerónimo de Sousa, que deu o "primeiro passo" para geringonça em 2015, passou agora ao largo dela. Apenas se ateve aos resultados das legislativas de janeiro. "A alteração da correlação de forças no plano político e institucional, com a obtenção de uma maioria absoluta pelo PS - acompanhada da redução da expressão parlamentar do PCP, alcançada na base de uma operação de chantagem e mistificação." A acusação feita com via única para os socialistas e para António Costa.

Das conversas com militantes convidados para a conferência não transparece "remorso" pela decisão de ter sido dada a mão ao PS para formar governo. O que João Oliveira, antigo líder parlamentar e membro da Comissão Política do PCP, também quis reforçar na sua intervenção. "Por muito que haja quem quer semear a ideia de uma falsa oposição entre os interesses do PCP e os interesses dos trabalhadores e do povo, procurando com isso retirar conclusões de arrependimento perante as decisões corajosas que tomámos em 2015, o que fica claro é que os interesses do PCP são os dos trabalhadores e do povo."

O que não impediu Jerónimo nesta despedida emotiva, de reconhecer que foram cometidos erros, a que chamou de "insuficiências e atrasos identificados e que importa superar". Sem os enumerar.

Ao sucessor, deixou o guião do que é preciso para que se confirme novamente que "assim se vê a força do PC". Jerónimo apontou ao recrutamento e à integração de novos militantes, ao reforço das células do partido junto da "classe operária e dos trabalhadores" e à dinamização das estruturas locais e do órgão oficial do partido, o Avante!. E os delegados da Conferência Nacional renderam-se, em palmas. Uma ovação de sete minutos, de pé, rematou a última intervenção do camarada Jerónimo.

No partido, a saída de Jerónimo é encarada com naturalidade, mesmo que o timing não fosse o esperado. Cipriana Pontes, de 75 anos e militante desde o 25 de Abril, admite que "ultimamente Jerónimo fazia um grande sacrifício" ao desempenhar "uma tarefa tão pesada para a sua idade e a sua saúde. "Faz 76 anos em abril - eu, que sou da mesma idade, não aguentava dois dias". Mas assegura: "Ele não vai sair nem desaparecer."

Virada para a mesa da conferência - onde se sentou a Comissão Política do partido e com Paulo Raimundo na primeira fila, ainda à espera de ser confirmado pelo CC -, Cipriana manifesta-se "contente" com a escolha. "Gosto muito dele, é uma pessoa serena e com muita entrega ao partido e tem a felicidade de ter 46 anos." Agora, reconhece que "ele terá uma tarefa muito pesada pela frente, quer pelo contexto nacional quer pelo internacional".

Também sentado entre os convidados, José Alexandre, militante do PCP há 30 anos, destaca a "clarividência" de Jerónimo ao "apontar pistas" para a mudança que é preciso fazer no partido. E Paulo Raimundo vai estar à altura do desafio? "Não há secretários-gerais iguais, Álvaro Cunhal não foi igual a Jerónimo de Sousa. O que importa é que o novo líder seja capaz de dignificar o legado e o orgulho que temos em pertencer ao PCP."

Paulo Raimundo, funcionário do partido e com uma vida no Faralhão, em Setúbal, reconhecido por muitos dos que ali estavam da sua presença nas "campanhas eleitorais", assume hoje o comando de um PCP que deu um valente trambolhão em janeiro, quando passou de uma bancada de 12 deputados (conquistada em 2019) para uma de seis. Sem lugar no Parlamento, como teve Jerónimo de Sousa desde a Assembleia Constituinte de 1975, tem de se afirmar como o rosto do partido nos combates que se avizinham para os comunistas portugueses.

Cipriana Pontes mostra-se confiante: "Não estará sozinho, o PCP é um coletivo. Nenhum secretário-geral esteve sozinho!"

Paulo Raimundo foi este sábado eleito secretário-geral do PCP por unanimidade. O anúncio foi feito por Margarida Botelho, do Secretariado do Comité Central comunista: "A proposta foi aprovada por unanimidade. O camarada Paulo Raimundo entendeu não votar."

Paulo Raimundo, 46 anos, excluiu-se da votação, pelo que votaram apenas 128 dos 129 membros do Comité Central. O novo secretário-geral é um de cinco dirigentes que pertence em simultâneo ao Comité Central, Comissão Política e Secretariado. É funcionário do partido desde 2004.

paulasa@dn.pt

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