"Irregularidades", "receios" e os boletins de voto em sacos do PSD

A CNE começou a receber queixas logo pela manhã e quase todas são semelhantes a denúncias de eleições anteriores. A surpresa foram os sacos da campanha eleitoral de Miguel Albuquerque usados para transportar boletins de voto.
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"Votaste direito?" A pergunta é feita com sorrisos entre apertos de mão. "Sempre direito", dizem alguns. Outros afastam-se e ficam à conversa. Pouco passa das dez e meia da manhã e na Escola da Ladeira, na freguesia de Santo António, Funchal, há um mistério por esclarecer. "O que fazem aqui carros da SESARAM (o Serviço Regional de Saúde) se não há registo deles na Comissão Nacional de Eleições?", diz-me Gonçalo Jardim, representante do PS.

São carros normais, novos, percebe-se pela matrícula, brancos, que estão a transportar eleitores. Dois estão estacionados no parque "de cima". Num deles entram duas mulheres. Uma não terá mais de 30 anos e senta-se no lugar da frente. A outra andará pelos 60. Nenhuma aparenta ter qualquer problema de mobilidade. O outro carro, estacionado à frente, aguarda pelas pessoas que trouxe.

No pequeno largo frente à porta de entrada, que dá acesso às mesas de voto, há um grupo de homens à conversa. "São todos do PSD", dizem-me. Junto ao muro está um homem, identificado, que vai pedindo às pessoas que já votaram se querem "responder à sondagem da Católica para a RTP". Quem aceita preenche um boletim de voto e coloca-o numa urna de papelão.

Minutos depois, ainda não são 11 horas, surge o presidente da Junta de Freguesia. Está quase sempre ao telefone. Entra, vai às salas de voto, sai, vai à mesa de informações e volta a sair. O homem da sondagem sai por minutos e deixa os boletins de voto e a urna em cima do muro.

Chegam duas carrinhas. Trazem idosos. Começam a surgir relatos de "irregularidades": transportes "que só podem ser ilegais" em vários locais, pessoas a "serem recebidas por quem manda" antes de votarem, "alguns" a serem acompanhados para votar, gente que vai votar e cujo "voto já foi descarregado nos dois cadernos eleitorais" - são referidos casos nas Escolas Francisco Franco e de Boliqueime.

"Chega uma senhora, entrega o seu cartão de cidadão, e os dois escrutinadores verificam, ao mesmo tempo, que aquele nome com aquele número de cartão de cidadão já tinha sido descarregado. Eu estava lá e vi na Escola de Boliqueime. A senhora disse que não tinha estado lá, que não tinha votado e exigiu votar. Informei a senhora de que lhe assistia o direito de protestar, e ela fez o protesto, e os membros da mesa deliberaram, por unanimidade, que ela não poderia votar", relata Maria João Rodrigues.

Mas os casos denunciados não ficam por aqui. Houve delegados impedidos "de exercer as funções de fiscalização, designadamente de apresentar reclamação", urnas por "selar, por lacrar, que já recebiam votos", boletins de voto entregues em sacos da coligação PSD/CDS "nalgumas secções de voto no concelho do Funchal" e nalguns casos os sacos continuaram à vista de todos, durante alguns minutos após a abertura das salas de voto.

Pelas 10h15 já há queixas a serem enviadas para a CNE com fotos dos casos reportados. A meio da tarde sabe-se que "a presidente do conselho de administração do Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira, E.P.E., foi notificada para se pronunciar" sobre as denúncias dos transportes não divulgados.

Na Escola da Ajuda, no Funchal, "onde votam os ricos" [é o que me dizem quando revelo que vou até lá], e onde Miguel Albuquerque iria votar antes da uma da tarde, há "um ver e ser visto" de algumas personalidades ligadas ao governo.

São 13h02. Chego à Escola de Boliqueime. Há mais um carro branco do SESARAM que pára e deixa duas pessoas que, apressadas e sem sinais de qualquer problema de mobilidade, se dirigem às mesas de voto.

O carro estaciona uns metros abaixo. Vou até lá. O motorista tem o vidro aberto. Identifico-me e questiono a razão daquele transporte. A resposta é curta: "É por não terem viatura." Só por isso?, pergunto. "Sim", responde o homem, que está incomodado com a abordagem.

Nem 20 metros acima há uma paragem de autocarro

Três minutos depois chega o presidente da Junta de Freguesia com quem me tinha cruzado na Escola da Ladeira. Entra, continua ao telefone, e dirige-se ao átrio que dá acesso às salas de voto. Entra numa, fica por lá uns minutos, e à saída da escola pergunto por que anda naquela azáfama. "Ando a ver se está tudo a correr bem. Houve esta manhã umas faltas nas mesas, pessoas que não vieram, e também uns problemas informáticos", justifica.

Como é que as pessoas sabem destes carros? "Ligam para a junta. Os carros andam por aí a circular. As pessoas pedem e nós dizemos que sim." E porque não estão estes carros registados no site da CNE? "Não sei, acho que a câmara enviou. Nós informámos a câmara de que íamos ter quatro carros." E porque transportam pessoas que não têm, não aparentam, ter quaisquer problemas de saúde? "Quando as pessoas ligam, a gente não consegue saber", responde, argumentando que "lá em cima" - e aponta para umas casas - "a camioneta não vai lá". Digo que há transportes públicos que lá vão muito perto, que estive lá esta semana. E também lhe pedem carro para irem trabalhar ou às compras?, pergunto. "Não... não... devem ir de táxi ou vão a pé até à camioneta", responde, rindo.

Às cinco da tarde surgiu o "receio" já manifestado por Miguel Albuquerque: a abstenção estava nos 60,1%...

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