Incompatibilidades. Quando 32 diplomas não chegam para sanar dúvidas
Uma lei "pouco clara", em "círculo vicioso" de alterações ou, nas palavras de Marcelo, um "complexo emaranhado legislativo". Lei das Incompatibilidades voltou ao Parlamento.
Marcelo Rebelo de Sousa chamou-lhe um "complexo emaranhado legislativo". E, na mensagem que esta semana enviou à Assembleia da República, elencou todo o quadro legislativo que, ao longo dos anos, foi regulando as incompatibilidades dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, e matérias conexas como o regime de exercício de funções e regime sancionatório para os mesmos agentes. Contas feitas, são nada menos que 32 os diplomas elencados na mensagem presidencial que Marcelo Rebelo de Sousa dirigiu ao Parlamento, pedindo aos deputados que ponderem avançar para... a revisão da legislação. Desejavelmente para um "corpo único e claro".
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A eventual situação de incompatibilidade de vários ministros do governo de António Costa voltou ontem à ordem do dia, com o titular das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, a responder no Parlamento face às dúvidas levantadas pelo facto de ter uma participação de 0,5% na empresa da família, a Tecmacal, detida em 44% pelo pai, e que fez recentemente um contrato público por ajuste direto, somando a outros já feitos no passado.
Repetindo que agiu sempre de "boa-fé" neste processo, Pedro Nuno Santos invocou um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR) de 2019 para afirmar que, face à posição enunciada no documento, ficou "descansado" e considerou o caso fechado, razão pela qual manteve a participação "simbólica" na empresa da família. "Havia dúvidas, foi pedido parecer ao Conselho Consultivo, esse parecer esclareceu as dúvidas, a questão ficou sanada", afirmou o titular do Ministério das Infraestruturas: "Depois de 2019 tomei posse como ministro mais duas vezes e ninguém veio dizer que aquele parecer não se aplicava à minha situação".
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Assumindo que aceitará a decisão que vier a ser tomada pelo Tribunal Constitucional - que, no caso de uma situação de incompatibilidade pode determinar a perda de mandato - Pedro Nuno Santos acrescentou que, na circunstância de isso vir a acontecer, ficará com "um profundo sentimento de injustiça". "Se estiver em incompatibilidade, cumprirei a sanção que me for aplicada. A única questão aqui que me revolta, obviamente, é que eu estive três anos a achar que estava bem e não é porque não conhecia a lei, eu conhecia a lei, mas também conhecia a interpretação da lei".
Pela oposição, Emília Cerqueira (PSD) e Filipe Melo (Chega) argumentaram que o parecer do Conselho Consultivo da PGR deixou de se aplicar face à alteração da lei em 2019, um argumento rejeitado pelo ministro e pelo socialista Pedro Delgado Alves, que defenderam que a mudança na lei não abrangeu os artigos analisados no parecer.
Já o BE, pela voz de Mariana Mortágua, defendeu que a lei " pode ser aprimorada", mas disse também que a fiscalização do regime de incompatibilidades, "mais do que ao Parlamento", cabe ao Ministério Público e ao TC. Paula Santos, líder parlamentar do PCP, questionou se o governo pediu uma fiscalização aos contratos em causa.
Posição diferente teve a Iniciativa Liberal. Depois de ter pedido a demissão da ministra Ana Abrunhosa, também por um caso de alegada incompatibilidade, o deputado Carlos Guimarães Pinto defendeu ontem que o caso de Pedro Nuno Santos é substancialmente diferente, dado que o ministro "nem tutela os compradores, nem tem capacidade de influenciar as decisões de quem vende". "Por este caso em concreto, não consigo, em boa consciência, julgá-lo nem política, nem eticamente", afirmou o deputado da IL.
Também o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, esteve ontem no Parlamento, acabando por ser questionado sobre alegadas situações de incompatibilidade. No caso, Pizarro é casado com a bastonária da Ordem dos Nutricionistas, entidade que está na tutela da Saúde. A esta questão somou-se entretanto uma segunda, face à posição de sócio-gerente do antigo eurodeputado numa empresa de consultoria na área da Saúde. Manuel Pizarro assegurou que as situações estão "completamente resolvidas": "Sobre a questão que releva para esta câmara não estou abrangido por nenhuma incompatibilidade nem regime de interesses".
Uma "lei pouco clara" e em "círculo vicioso"
A Lei das Incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos determina que as empresas em que um governante tenha uma participação superior a 10% ou 50 mil euros não possam participar em procedimentos de contratação pública.
O impedimento é válido seja a empresa detida individualmente pelo titular de um cargo político ou em conjunto com familiares até ao segundo grau (cônjuge, unido de facto, pais e avós, filhos e netos, assim como irmãos). Em 2019 o governo pediu um parecer ao Conselho Consultivo da PGR, que concluiu que a limitação se aplica apenas se o titular do cargo político tiver a tutela da área em que é firmado o contrato público. Já no caso da ministra Ana Abrunhosa, o parecer sublinha que as limitações impendem sobre contratação pública - no caso da ministra trata-se de fundos comunitários.
Para o constitucionalista Tiago Duarte a lei que regulamenta as incompatibilidades de titulares de cargos políticos e altos cargos públicos "nos termos em que está feita, não é muito clara", o que torna ainda mais difícil um tema que, por si, já é "muito complexo". O caminho, defende, deve passar por uma alteração legal, mas precedida de uma "reflexão sobre o que é que se quer impedir".
Neste contexto, o constitucionalista sublinha que "há um princípio muito importante no Direito que é o princípio da proporcionalidade - o que é que é razoável?" "Queremos regras tão limitativas que transformem a decisão de aceitar ir para o governo numa decisão que deixa de ser pessoal e tem de ser tomada em conselho de família" pelas repercussões que tem sobre os familiares, questiona, alertando que isto "pode afastar pessoas competentes" do exercício de cargos políticos.
Por outro lado, o "facto de alguém estar no governo abre-lhe um conjunto de contactos que podem, direta ou indiretamente," beneficiar terceiros, mas neste caso deve exigir-se "maior rigor nos contratos que se fazem" - se o concurso público é permeável a influências é porque "não estava bem feito".
Questão diferente, sublinha Tiago Duarte, são os ajustes diretos. O que não é seguramente boa solução, diz ainda o jurista, "é estar a alterar leis à luz de casos concretos".
Para João Paulo Batalha, vice-presidente da associação Frente Cívica, o problema não está tanto na lei - apesar de esta ser "indefinida" - mas na falta de um "organismo verdadeiramente independente que avalie as situações no concreto". E que não é o Tribunal Constitucional: "O TC é provavelmente o pior organismo para fazer este papel, porque é um tribunal de nomeação política".
Nesta altura, "o problema maior é que são os próprios [políticos] a tomar essa decisão, o que cria um problema de confiança", defende João Paulo Batalha, acrescentando que o pedido do Presidente da República para que a lei seja revista - e para o qual o PS já se mostrou disponível - "é uma confissão do fracasso das instituições", depois das sucessivas alterações que têm sido feitas à lei. "Continuamos no mesmo círculo vicioso", conclui.
susete.francisco@dn.pt
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