Governo quer rever fase de instrução para evitar pré-julgamentos durante anos
A ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, defendeu esta quinta-feira que a fase de instrução dos processos tem de ser revista para evitar que se tornem em pré-julgamentos, considerando que isso é necessário para dar maior celeridade à justiça.
Na apresentação das medidas da agenda anticorrupção, que foram hoje aprovadas em conselho de ministros, a governante assinalou que é preciso "pôr o dedo na ferida" relativamente a esta matéria.
"Muitas vezes os processos arrastam-se durante anos e vamos ter de olhar para a amplitude e a função para que possamos evitar que a instrução seja a repetição do inquérito ou um pré-julgamento. Não queremos que seja um pré-julgamento. Vamos ter de olhar para a matéria da instrução", observou a governante, sem especificar muito os detalhes de como será feita essa revisão.
O documento apresentado pelo Governo, que conta com 32 medidas, aponta para a redução desta fase processual facultativa, sobretudo na produção de prova e no controlo sobre a matéria de facto, "limitando a utilização de expedientes dilatórios".
Entre esses expedientes dilatórios, Rita Alarcão Júdice elencou o recurso para o Tribunal Constitucional (TC), rejeitando que esta instância se torne "um quarto grau de jurisdição" para arguidos evitarem o cumprimento das decisões dos tribunais.
"Queremos também olhar para o regime de recursos e para o TC, para que este não seja utilizado como mero expediente dilatório. Não podemos permitir que o TC seja um quarto grau de jurisdição e um mero expediente para impedir a celeridade da justiça. Vamos olhar também para esse ponto", observou.
Entre as medidas destacadas pela ministra da Justiça na agenda anticorrupção hoje aprovada, sobre a qual não ficaram definidos prazos de aplicação, encontram-se ainda a regulamentação do lóbi, o registo da pegada legislativa, o aumento das potencialidades do Portal BASE para elevar a "transparência nos negócios entre o Estado e privados", a formação de entidades para o combate à corrupção ou a análise do agravamento de penas.
Confrontada com o facto de várias destas medidas já estarem previstas no programa de Governo apresentado há mais de dois meses sem que houvesse desenvolvimentos significativos ou a fixação de prazos e metas, Rita Alarcão Júdice apontou o diálogo com os outros partidos e instituições da sociedade civil.
"É normal que correspondesse ao programa do Governo. O que procurámos foi, em diálogo com os partidos e entidades, procurar contributos que não entrassem em contradição. A agenda é ambiciosa, porque a execução é extensa, vai envolver muitas entidades e alguns pontos vão ainda ser discutidos", resumiu.
Perda alargada de bens pode aplicar-se mesmo com arquivamento de processo
A ministra revelou ainda que o mecanismo de perda alargada de bens aprovado no âmbito da agenda anticorrupção pode ser aplicado mesmo no cenário de arquivamento de processos.
"Já existe hoje um mecanismo de perda alargada de bens relativo a certas categorias de crime, incluindo a corrupção, mas queremos incrementar e melhorar este mecanismo para torná-lo mais eficaz. (...) Este mecanismo pode ser aplicado mesmo que não haja condenação e que o processo seja arquivado", afirmou.
Para a ministra da Justiça, a perda de bens efetivos detetados no âmbito de uma investigação criminal deve ser possível quando, "analisada a prova disponível, o tribunal fique convencido que esse bem tem origem em atividade criminosa".
"Esta medida vai ter de ser aplicada por um tribunal, vai cingir-se a um número limitado de crimes, entre os quais a corrupção, e será sujeito a requisitos suplementares. Teremos sempre de assegurar os direitos individuais, que é para nós um limite intransponível. É uma medida que terá de ser trabalhada neste sentido", acrescentou.
Rita Alarcão Júdice considerou o mecanismo de perda alargada de bens como "uma das medidas-chave" aprovadas neste pacote de mais de 30 medidas.
"A melhor forma de combater o enriquecimento ilícito é assegurar a efetiva perda da vantagem do crime e que seja percecionado que a corrupção não compensa. Por isso, queremos que seja possível, no âmbito do processo penal, declarar perdida a vantagem de um crime sem necessidade de uma condenação prévia, naturalmente verificadas que estejam determinadas circunstâncias", sublinhou.
A governante recusou que haja "quebra de presunção de inocência" nesta medida e assinalou que o mecanismo "já hoje existe e passou no crivo", com o Governo a procurar agora ir mais longe.
"O que vamos fazer é alargá-lo e torná-lo mais ambicioso e assim resolver um problema que é premente. Acreditamos que vai ser eficaz, porque o atual regime (...) apenas olha para a incongruência entre o património e o rendimento", disse.
Por outro lado, assumiu que a criminalização do enriquecimento ilícito, uma das medidas que constava do programa eleitoral da AD e do programa de Governo, seria, no seu entender, uma violação da Constituição.
"[A perda alargada de bens] é realista e viável, julgamos que dá resposta a outro mecanismo que, esse sim, era impossível e inviável. Na minha perspetiva, embora não constitucionalista, mas tendo ouvido muito quem saiba do tema, a criminalização do enriquecimento ilícito seria inconstitucional", afirmou.
Assegurando que são medidas para "iniciar de imediato", Rita Alarcão Júdice descreveu a agenda como "realista" e defendeu que o Governo não quis "mudar tudo" no setor do combate à corrupção, mas vincou também que continua a ser "ambiciosa", tal como foi anunciado originalmente pelo Governo, e que abrange também medidas de outros partidos.
"Vamos chamar-lhe agenda, porque o que está na agenda não é para ser esquecido, é um compromisso. É assim que deve ser entendido, como um compromisso de Governo, que assenta numa ideia muito simples: eficácia", disse, continuando: "Elaborámo-la sem dogma, à luz do diálogo que levámos a cabo com os partidos e com mais de 30 entidades de quem recolhemos contributos".
Questionada sobre a recente divulgação de escutas de processos, nomeadamente as que envolveram o ex-primeiro-ministro António Costa no processo Operação Influencer, Rita Alarcão Júdice não quis fazer comentários.
A governante rejeitou ainda responder à questão sobre a permanência ou saída do atual diretor da Polícia Judiciária, Luís Neves, que está em fim de mandato.
PM diz que pacote anticorrupção foca-se em aumentar eficácia do atual quadro legislativo
O primeiro-ministro afirmou entretanto que "o foco principal" das medidas anticorrupção aprovadas pelo Governo será melhorar a eficácia e capacidade operacional de instrumentos legislativos que já existem.
"Não significa que não haja alterações a vários instrumentos legislativos, mas o foco principal está em obter maior eficácia na prevenção, na repressão e na celeridade com que a justiça funciona no combate à corrupção", afirmou Luís Montenegro, no final da reunião do Conselho de Ministros em que o Governo PSD/CDS-PP aprovou um conjunto de mais de 30 medidas com o objetivo de combater a corrupção.
O chefe do Governo salientou que esta "é uma prioridade assumida desde a primeira hora" pelo atual executivo, quer na tomada de posse, quer na discussão do programa do Governo.
"Sabemos que [a corrupção] mina e muito a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas, prejudica e muito a atividade económica do pais, retira muita da nobreza que deve estar sempre subjacente ao exercício de funções públicas, seja em que circunstancia for", defendeu,
O primeiro-ministro referiu que, depois de "ouvir e auscultar" os vários agentes do setor, "a sensação generalizada" é que em Portugal é preciso sobretudo "dar eficácia, capacidade instrumental a muitos dos instrumentos legislativos que já existem".
O objetivo, defendeu, será "fixar uma agenda para um combate sem tréguas à corrupção em Portugal", realçando que o tema foi debatido por duas vezes em Conselho de Ministros.
Nos próximos meses, a partir da agenda hoje apresentada pelo Governo, o primeiro-ministro desejou que se possa, em sede parlamentar, "consensualizar alterações que se mostrem necessárias para aperfeiçoar o enquadramento legislativo, mas sobretudo para dar eficácia, para trazer mais resultados".
"É um combate pela democracia, pela justiça, pela igualdade de oportunidades e é um combate também pela dinamização da nossa economia e, de alguma maneira, pela solidariedade para que recursos hoje perdidos nas atividades corruptivas possam ser canalizadas para políticas publicas sociais", disse.
PSD e CDS-PP vão propor comissão eventual para debater medidas anticorrupção
O primeiro-ministro anunciou ainda que as bancadas que suportam o Governo no parlamento vão propor a criação de uma comissão eventual para prosseguir "a interação e diálogo" sobre o pacote anticorrupção hoje apresentado pelo Governo.
Luís Montenegro falava no final da reunião do Conselho de Ministros em que o Governo PSD/CDS-PP aprovou um conjunto de mais de 30 medidas com o objetivo de combater a corrupção.
"Esta agenda anticorrupção incorpora já muitos contributos que foram transmitidos ao Governo por parte de agentes de justiça e partidos políticos", assegurou.
O primeiro-ministro acrescentou que "esta forma de interação e diálogo" é para manter na concretização das medidas hoje anunciadas.
Por um lado, disse, será disponibilizado no portal do Governo todo o documento hoje aprovado em Conselho de Ministros para que "todos os cidadãos possam dar a sua opinião" e sugestões.
Em segundo lugar, anunciou, PSD e CDS-PP comunicaram ao Governo a intenção de criar na Assembleia da República uma comissão eventual para discutir quer as propostas de alteração legislativa do Governo, quer a dos restantes grupos parlamentares, de forma a "aprofundar e consensualizar" as mudanças a fazer ao quadro legislativo na área da corrupção.
Na fase de perguntas -- que apenas puderam ser dirigidas à ministra da Justiça e não ao primeiro-ministro -, Rita Alarcão Júdice foi questionada sobre quais os contributos dos partidos da oposição refletidos neste pacote de medidas, depois de duas rondas com as forças políticas com assento no parlamento, mas não quis especificar.
"Quando os grupos parlamentares olharem para o conteúdo das medidas, vão reconhecer os contributos", assegurou.
À pergunta de quais as medidas deste pacote que serão aprovadas por decreto-lei e quais as que irão passar pelo parlamento, Rita Alarcão Júdice também não detalhou.
"Algumas medidas são de caráter prático, serão executadas pelo Governo, outras medidas vão ser discutidas na comissão especializada parlamentar. O que for da competência do Governo será aprovado pelo parlamento, o que for competência do parlamento será aprovado no parlamento", disse.
A ministra foi ainda questionada se está disponível para incluir contributos dos subscritores do manifesto para a reforma da Justiça, dando uma resposta genérica: "Estamos abertos a receber contributos de toda a sociedade civil, designadamente os do manifesto".