"Governo deve criar exceções para Lisboa em regimes como o dos nómadas digitais"

Líder da concelhia de Lisboa do PS considera que os regimes especiais de residência estão a agravar o problema da habitação na cidade e defende que não devem ser aplicados à capital. Sobre Carlos Moedas diz que tem "revelado uma inação total" na câmara.

É presidente da junta de freguesia de Alcântara. Depois das cheias que se repetiram nas duas últimas semanas, que avaliação faz do que aconteceu?
As duas situações, as inundações a 7/8 de dezembro e depois a 12/13, têm que ser distinguidas, porque houve grandes diferenças na abordagem por parte da Câmara de Lisboa. Na primeira, não houve preparação, coordenação, nem planeamento, apesar do alerta laranja. Na segunda houve preocupação na coordenação e planeamento. O encerramento dos túneis de Lisboa atempadamente foi exemplo disso, bem como o condicionamento prévio de artérias consideradas de maior risco de cheias. Decorrido algum tempo sobre estes dois fenómenos é preciso fazer uma avaliação séria do que aconteceu e do que é necessário fazer pela entidade camarária, como a manutenção permanente do saneamento do subsolo e a continuação de substituição de coletores na cidade, em zonas mais críticas, como tem vindo a ser feito nos últimos anos.

Esta situação de cheias tem sido recorrente ao longo dos anos. Porquê? Não é evitável?
Estes fenómenos sempre ocorreram neste território. Nos últimos anos têm-se feito obras que têm servido para mitigar estas situações, mas isso não impede que aconteçam. Tem que se continuar a trabalhar, não só no Plano de Drenagem, que começou há bastante tempo e está agora a ser implementado, mas em obras de saneamento que têm de ser acompanhadas e resolvidas por parte da câmara. Obviamente que a construção dos túneis é muito importante, mas o Plano Geral de Drenagem é mais do que estes dois túneis. É essencial dar continuidade ao trabalho desenvolvido na última década e executar as cinco bacias de retenção na cidade de Lisboa. Por outro lado, a câmara tem que pensar em implementar ou atualizar sistemas de monitorização, por exemplo do nível da água.

Já há alguma estimativa dos danos materiais?
Tivemos imensas atividades económicas afetadas, pessoas que ficaram com bens totalmente destruídos. A câmara deve liderar o processo de apoio aos comerciantes e particulares afetados, tomando como exemplo o que foi feito em anos anteriores, como a resposta Covid "Lisboa Protege", que permitiu uma resposta mais célere a quem precisava. Importa relembrar que a câmara tem um orçamento de quase 1400 milhões de euros, pelo que tem capacidade, e o dever, de apoiar quem mais precisa neste momento.

O PS acabou de viabilizar o segundo orçamento de Carlos Moedas. Está disponível para viabilizar os dois restantes?
O PS faz uma oposição serena e responsável, que é o papel que os lisboetas nos atribuíram nas últimas autárquicas. Agora, a viabilização pela abstenção não significa que o PS concorde com este orçamento, que tem a maior receita de sempre da Câmara de Lisboa e que nos levanta preocupações, nomeadamente na área da habitação. O orçamento deve ser um mecanismo de resposta aos problemas da cidade e o que temos visto é que este executivo tem adiado a cidade em áreas fulcrais, nomeadamente a habitação.

Sobre o papel que os eleitores atribuíram ao PS: visto a esta distância, porque é que o PS perdeu Lisboa ao fim de 14 anos?
Depois de António Costa ganhar a câmara, em 2007, Lisboa teve uma transformação enorme. Com António Costa, e depois com Fernando Medina, a cidade mudou: mudou o espaço público, o conceito de bairro, a cidade cinzenta que tínhamos na altura, a câmara municipal falida... Toda a gente se lembra das trapalhadas que existiram da última vez que a direita governou Lisboa. Catorze anos depois, obviamente que houve um desgaste grande... Temos que ser humildes e aceitar que, provavelmente, houve coisas que o PS podia ter feito de outra maneira, comunicado de outra maneira, que podia ter feito com outra velocidade - umas mais rápidas, outras mais lentas. O PS tem bem a noção das situações que existiram nos últimos anos, que obviamente também causaram desgaste na governação, os casos e casinhos...

Por exemplo?
Toda a história da questão da Rússia, temos a noção que houve um desgaste. Mas também houve um empolar de toda a situação.

Carlos Moedas tem acusado o PS de não ter percebido que perdeu as eleições...
Carlos Moedas é que não percebeu que ganhou as eleições e que tem que governar Lisboa. Está a tornar-se especialista em ser oposição à oposição, mas tem que se tornar especialista é em ser presidente da câmara. Passado um ano vemos a cidade adiada em áreas como a higiene urbana, o espaço público, a ação social, os espaços verdes, que são áreas fundamentais que corriam bem. Havia questões pontuais, obviamente, mas o que tem acontecido neste último ano é que as questões pontuais - nomeadamente na higiene urbana - tornaram-se regulares: agora, pontualmente não há problemas. Com isso é que o presidente se devia preocupar, em governar a cidade e não fazer uma espécie de campanha permanente de propaganda a si próprio e a algumas medidas que nunca se tornam efetivas.

O PS tem defendido que a habitação é um dos grandes problemas da cidade e que é preciso lançar mão de todas as medidas possíveis. Assim sendo, porque é que não viabilizou a isenção de IMT aos jovens na compra de casa, proposta por Moedas?
É uma medida errada no tempo errado. Por três razões. O universo de casas disponíveis para este valor não é grande: casas a 250 mil euros em Lisboa conseguimos T0 e T1, a maior parte delas a necessitar de reabilitação. Depois temos que considerar o valor da entrada, vamos supor que são 10% - são 25 mil euros. E há outra questão que torna inviável esta solução: neste momento um empréstimo de 250 mil euros representa à volta de 850 euros de prestação ao banco. Ou seja, tinha que haver casas, que praticamente não há, os jovens tinham que ter dinheiro para a entrada e tinham que ter capacidade, depois, para suportar a prestação. E o valor que atribuíram a esta medida - 4,5 milhões de euros - dava no máximo para 500 jovens. Isto é uma medida populista. Se me perguntar se o PS votava contra se houvesse mais casas, se os juros fossem mais baixos? Não. Votou contra porque não é uma medida funcional, não resolve qualquer problema na habitação. E a nossa alternativa, porque entendemos que enquanto oposição responsável o nosso dever é apresentar alternativas, é um contraponto à proposta de Carlos Moedas: conseguimos chegar efetivamente a mil jovens e não é preciso ter 25 mil euros para dar de entrada. Mas o problema da habitação não se resume a isso: nem a nossa proposta nem a do IMT resolvem o problema. O problema da habitação em Lisboa é gravíssimo. Acho que um dos motivos pelos quais o PS não teve a confiança dos lisboetas foi porque não conseguiu entregar a resposta efetiva ao problema da habitação. O nosso caminho estava certo, mas tem de ser alargado. E isto não tem a ver com questões ideológicas.

Mas a vereação de Moedas propôs a acumulação das duas propostas.
Sim, e depois abstiveram-se. Mais um exemplo daquilo que é a relação de Carlos Moedas com a oposição: junta as duas propostas e depois não viabiliza a nossa. Não faz sentido.

Não há uma enorme incongruência entre o discurso do PS em Lisboa, relativamente ao problema da habitação, e a ação do PS no Governo, que tem promovido sucessivos regimes de benefícios fiscais a cidadãos estrangeiros com rendimentos elevados, como é agora o exemplo dos nómadas digitais?
Tivemos recentemente um congresso da Federação do PS da Área Urbana de Lisboa [FAUL], onde tive a oportunidade de transmitir a minha opinião sobre esses temas: sim, o PS deve rever a sua posição, refletir sobre esta temática dos regimes especiais de residência, dos nómadas digitais. Todos percebemos a mais valia que têm para o país, a nível económico. Mas o problema da habitação em Lisboa é diferente do do resto do país. Enquanto socialistas da cidade de Lisboa, entendemos que essa é a parte em que temos de ir mais além.

Ou seja, Lisboa devia ser excecionada desses regimes, é isso?
O PS em Lisboa tem esta posição de que é preciso o Governo rever algumas das situações, criar algumas exceções para Lisboa nalguns regimes, como os nómadas digitais. Não vejo nenhum problema com este regime no interior, no Alentejo, ou numa cidade que não tenha problemas de habitação, só tem benefícios. Mas numa situação em que a falta de habitação é tão elevada como em Lisboa, todos esses regimes só contribuem para agravar ainda mais o problema. Nós, internamente, fazemos essa reflexão, mas Carlos Moedas, que é presidente da câmara, a única coisa que diz do Governo é que não quer a descentralização disto ou daquilo, sem nunca explicar bem porquê. Mas e estas medidas, é contra ou a favor destes regimes de exceção para Lisboa?

Mas o PS, no Governo ou na Assembleia da República, pode fazer essas alterações à lei...
O PS Lisboa, internamente, defende que estas medidas devem ser repensadas e revistas para a cidade de Lisboa. Eu não sou membro do Governo, nem deputado à Assembleia da República.

O alojamento local também está a agravar o problema da habitação?
Outro tema em que se deveria refletir, e já aprovámos uma moção sobre isso em reunião de câmara, é sobre o limite temporal das licenças do alojamento local (AL). A massificação galopante do AL fez com que algumas freguesias da cidade tenham, neste momento, mais de metade das suas habitações afetas ao alojamento local. E de forma eterna. Isto não pode ser. Tem de haver um limite temporal para as licenças, têm de se rever os limites máximos de AL em cada território, com isso libertando casas para habitação. Eu não sou um perigoso radical de esquerda, mas aquilo que entendemos no PS em Lisboa é que a habitação é o maior problema da cidade e tem sido galopante. Todas as alternativas têm que ser colocadas em cima da mesa. E com um orçamento de 1,4 mil milhões de euros... Carlos Moedas fala em audácia, eu falo em inação e em falta de ambição. Neste momento temos cerca de mil habitações a serem construídas para renda acessível, todas ainda projetadas do mandato anterior. Mas temos duas mil casas de renda acessível, em projeto, algumas já com concurso lançado, que foram colocadas na gaveta, em Benfica, em Marvila, em Belém...

O PS também não conseguiu dar resposta à questão da habitação...
Todos esses projetos que não foram mais céleres contribuíram em grande parte, no meu entender, para que os lisboetas perdessem a confiança e não quisessem depositar o seu voto no PS. Mas os projetos estão lá, estão feitos, são projetos que demoram muito tempo. O que nós vemos, de há um ano para cá, é zero. Tudo o que são grandes obras na cidade são tudo obras que vinham do mandato passado. Tem que haver uma visão, uma estratégia. O que é que este executivo vai fazer? Inaugurar as obras que já estavam pensadas anteriormente? Isso é suficiente? Não é preciso pensar em mais? Carlos Moedas, primeiro foi especialista em ser oposição à oposição, agora está numa tentativa de ser oposição ao Governo. Está preocupado com outras coisas, não em resolver os problemas da cidade.

Carlos Moedas tem outros objetivos que não a Câmara de Lisboa?
Não sei que objetivos é que tem, sei o que mostra: uma inação total a resolver os problemas da cidade. Naquilo que é propaganda pessoal, marketing pessoal e político, uma proatividade imensa. Isso é notório.

Ganhou a concelhia de Lisboa do PS, com Marta Temido como número dois. Foi uma escolha já a pensar nas autárquicas de 2025?
Nós temos que voltar a ouvir a cidade nestes anos até às eleições, o PS tem de preparar as respostas à cidade, resolver os problemas dos lisboetas. Foi um trabalho que o PS sempre fez, que nestes anos no executivo foi deixando de fazer e tem de voltar a fazer. Fiquei muito honrado quando Marta Temido aceitou o convite, acho que foi uma grande ministra da Saúde, mostrou ser uma pessoa de grande garra e de grande firmeza e liderança. E ela vai fazer parte, como outros militantes, da construção daquilo que é o programa e as ideias que queremos para Lisboa. Temos vários possíveis candidatos para Lisboa.

Mas então Marta Temido é uma possível candidata?
Qualquer militante do PS Lisboa que tenha conhecimento da cidade e queira construir alternativas para a cidade é um possível candidato. Seria insensato da nossa parte ter esse registo agora. Enquanto oposição temos que ir preparando políticas que queremos para as várias áreas, pensar o que devemos fazer para minimizar os efeitos desta cidade adiada que temos tido no último ano. Temos de nos focar num projeto, numa ideia e numa equipa. Isso vai ser construído a partir de janeiro do próximo ano, vamos lançar um Fórum Cidade 2.0, onde vamos ouvir a cidade, os militantes, simpatizantes.

Isso vai acontecer quando?
Esse trabalho começará a ser feito em janeiro, terá a duração de cerca de um ano. Depois é que teremos então os possíveis candidatos à câmara, a vereadores... Isto não é um duelo entre o Carlos Moedas e quem vai ser o nosso candidato, há uma ideia de cidade que temos de aperfeiçoar: a nossa ideia de cidade é completamente diferente da de Carlos Moedas.

susete.francisco@dn.pt

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