E se um enérgico ministro da Defesa tivesse enfrentado o MFA e travado a Revolução?
Um dia entrevistei Niall Ferguson que me fez uma entusiástica defesa da história alternativa, aquilo a que os anglo-saxónicos chamam de what if... (”e se...”). O historiador britânico, professor em Harvard, estava em Portugal para apresentar o seu História Virtual, livro no qual, por exemplo, se conta uma realidade paralela em que os Estados Unidos não proclamaram a independência em 1776. Ora, mesmo quando feito por historiadores, esse “e se..” adquire uma inevitável faceta ficcional, pois têm de sair da imaginação do autor as personagens que fazem a diferença. Em Alvorada Desfeita, livro publicado em 2009, aquando dos 35 anos do 25 de Abril, e reeditado agora por ocasião dos 50 anos, é assumidamente ficcional o fracasso da Revolução dos Cravos, e tudo por causa de um ministro da Defesa, Ricardo Valera, que decide dar luta ao Movimento dos Capitães. O jovem Valera, personagem criada por Diogo de Andrade, contrasta pela energia com a inércia de outras figuras do Estado Novo, incluindo Marcello Caetano, chefe do Governo desde a queda de Salazar da cadeira em 1968, e de Américo Tomás, o presidente da república, eleito pela primeira vez em 1958 nas célebres eleições em que Humberto Delgado desafiou o regime.
Esclareça-se que Diogo de Andrade, e cito a nota sobre o autor que abre o livro editado pela Casa das Letras, “é o pseudónimo de um alto quadro do Estado com obra publicada e que optou pelo anonimato”. O anonimato é levado tão a sério, hoje como há 15 anos, que o autor só aceitou responder a três perguntas sobre Alvorada Desfeita por e-mail e tendo o editor como intermediário. Percebe-se que é alguém que conhece bem o Portugal político e militar do antes e do depois do 25 de Abril, sendo curiosa a solução de liderança que encontra para o país depois de ficcionar o fracasso da revolução: o general Kaúlza de Arriaga e o embaixador Franco Nogueira. Mas não é só conhecimento político e militar que Diogo de Andrade mostra. Há também aqui um romancista de qualidade. E sinto-me tanto mais à vontade em afirmá-lo quanto António Marques Bessa, historiador que foi meu professor no início dos anos 1990 no ISCSP, escreveu no prefácio da primeira edição (e republicado nesta) que este livro foi “escrito com dinâmica num português fluente, com diálogos de quem conhece o poder e os que o exercem, numa tessitura fina de intriga e conjuntura época, exprimindo seriamente uma virtualidade pensada com cuidado”. Segue-se uma pequena entrevista ao misterioso autor.
Como definiria ideologicamente a personagem Ricardo Valera?
Se não é fácil de definir Valera à luz dos padrões ideológicos atuais, já há 50 anos atrás ele encaixaria na matriz da direita spinolista: patriota, conservadora, democrática-autoritária e defensora de uma Federação, com a nuance da continuação da guerra em Angola e Moçambique. Valera, cujas virtudes são acompanhadas de defeitos e de medos, é marcado por um realismo implacável que o leva a enfrentar a Revolução, pois considerava Spínola um ingénuo e um impreparado político que não conseguiria executar o seu próprio ideário. Maquiavélico, mal é nomeado ministro da Defesa, conspira com os kaulzistas para vencer o MFA, para logo depois depor o Chefe do Governo. Cético e manobrador, desconfia das redes esquerdistas no MFA, entende que Spínola não controlaria os capitães e apoia-se nos militares “ultras” para vencer a revolução, induzindo-os depois a reformas que conduzissem o País a uma democracia limitada e a referendos sobre a autodeterminação do Ultramar, considerando que são os “duros” que fazem as melhores transições e que não teriam outra saída. Decidido e calculista não hesita em derramar sangue no esmagamento da Revolução, na repressão dos clandestinos e na sua fixação em dar independência à Guiné que considerava o tumor de fixação do Império.
O ataque bem-sucedido no livro Alvorada Desfeita às forças do capitão Salgueiro Maia no Terreiro do Paço é o momento decisivo para derrotar o MFA?
O frente a frente entre as tropas de Salgueiro Maia e do Brigadeiro Reis no Terreiro do Paço decidiu o triunfo da Revolução. Os documentos históricos e o testemunho de protagonistas, como o Capitão Carlos Beato integrado na coluna do Maia, dão nota de que, se os tanques M47 leais ao Governo abrissem fogo sobre os frágeis Panhard dos revoltosos teria havido um banho de sangue e a rebelião perderia o seu músculo, aquele que depois cercou o Carmo e fez render Marcello Caetano. E foi por um triz que tal não sucedeu, porque na Rua do Arsenal um cabo desobedeceu à ordem de fogo do Brigadeiro, gerando um efeito de cascata que desmoralizou os militares leais. No livro Alvorada Desfeita sucede o contrário. Quem comanda os lealistas é uma personagem ficcional, Sérgio de Melo, amigo e cúmplice de Valera. O Coronel Melo, um “centurião” veterano de África, implacável e meticuloso, colocou militares escolhidos a dedo nos carros de combate, recusou parlamentar e fez-se obedecer quando deu a ordem de fogo. Admito que pouco tem a ver com o padrão típico do militar português. Foi essa, a estratégia do contragolpe: atacar de surpresa, não dialogar, destruir a principal coluna rebelde e depois eliminar, uma a uma, as forças menos numerosas ou combativas espalhadas nos pontos estratégicos de Lisboa.
Kaúlza de Arriaga e Franco Nogueira: mereciam ter tido outro protagonismo no Portugal que nasceu pós-25 de Abril?
Um e outro teriam tido outro protagonismo se o MFA não tivesse vencido. Kaúlza foi o terceiro General mais votado depois de Costa Gomes e Spínola pelos jovens conspiradores, pelo que se o golpe falhasse e houvesse uma purga nas Forças Armadas, ele encabeçaria com Luz Cunha o setor militar conservador ainda de pé que afastaria um enfraquecido Marcello Caetano. Franco Nogueira, que em 1968 esteve prestes a ser Chefe do Governo, em vez de Marcello e que, em 1974, apelara ao Presidente Thomaz para demitir o Professor de Direito, seria uma peça-chave de um Governo alternativo. Resta saber quanto tempo duraria esse Governo, pois nada garante que um binómio Kaúlza/ Franco Nogueira se impusesse como no livro Alvorada Desfeita. Regressando ao 25 de Abril não ficcionado, acho que o General Kaúlza, um patriota genuíno mas mal-amado, poderia ter tido êxito limitado como líder partidário, canibalizando com o seu MIRN o eleitorado do CDS, caso este em 1979 não tivesse integrado a Aliança Democrática. A AD enterrou as expectativas políticas do General. Já Franco Nogueira, sempre com uma boa imagem pública, grandes contactos internacionais e uma cultura cosmopolita, poderia bem ter sido Ministro dos Estrangeiros de Cavaco, o qual, salvo Durão Barroso, não teve grandes titulares nessa pasta.
Diogo de Andrade
Casa das Letras
432 páginas
24,90 euros