Dissolução da Assembleia da República trava qualquer destituição de Marcelo

A improvável hipótese de o Presidente da República vir a ser julgado por crimes de responsabilidade política no caso das gémeas luso-brasileiras depende de o Parlamento estar em funções. Mas deixa de estar a 15 de janeiro, no que alguns veem uma coincidência infeliz.
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A dissolução da Assembleia da República, que deve concretizar-se a 15 de janeiro, trava qualquer processo de destituição do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, por eventuais crimes de responsabilidade política relacionados com o caso das duas gémeas luso-brasileiras que receberam tratamentos no valor de quatro milhões de euros, custeados pelo Serviço Nacional de Saúde, para a atrofia muscular espinal. Isto porque um julgamento do Chefe de Estado por crimes praticados no exercício de funções implica que o Parlamento esteja em plenitude de funções, o que só voltará a acontecer cerca de um mês após as legislativas de 10 de março.

O artigo 130.º da Constituição da República Portuguesa estabelece que o Presidente da República responde perante o Supremo Tribunal de Justiça por crimes cometidos no exercício de funções, como seria o caso de uma atuação considerada ilegal de Marcelo Rebelo de Sousa no caso que o motivou a fazer uma declaração à comunicação social na segunda-feira. Mas para que esse processo arrancasse seria necessário que um quinto dos deputados apresentassem uma proposta nesse sentido e que dois terços aprovassem tal deliberação, contando em ambos os casos deputados em efetividade de funções.

Todos os constitucionalistas ouvidos pelo DN concordam que tal não pode acontecer a partir do momento em que a dissolução da Assembleia da República manterá apenas a comissão permanente, com representantes dos partidos que detiveram mandatos na legislatura que está prestes a chegar ao fim, pelo que a proposta e a deliberação teriam de esperar mais alguns meses até à posse dos eleitos nas próximas legislativas. O que, na prática, leva a que a decisão de dissolver a Assembleia da República tomada por Marcelo Rebelo de Sousa afaste para já a possibilidade de um processo que seria inédito na democracia portuguesa.

"Já existem algumas conversas que colocam em causa se isto é uma coincidência, pois a investigação da TVI iniciou-se dias antes da demissão do primeiro-ministro", refere Vitalino Canas. A 7 de novembro, quando António Costa comunicou a sua decisão ao Presidente da República e aos portugueses, após saber que poderia vir a ser julgado pelo Supremo Tribunal de Justiça, já tinha sido noticiada pela TVI a alegada influência de Marcelo Rebelo de Sousa no tratamento que as gémeas receberam no Hospital de Santa Maria em 2019 - além do medicamento Zolgensma, que é um dos mais caros do mundo, tiveram direito a cadeiras de rodas especiais para os efeitos da atrofia muscular espinal -, mas o constitucionalista afasta aquilo que descreve como "teorias da conspiração" e fala de uma "coincidência infeliz".

Para Vitalino Canas, existirá no imediato uma "limitação clara" da Assembleia da República para tomar decisões sobre um processo de destituição que nunca aconteceu desde 1976, interpretando que as competências da comissão permanente nunca poderão incidir em decisões quanto à destituição do Presidente da República.

"Depois da dissolução, os deputados mantêm o seu mandato até à tomada de posse de outros, pelo que continuam em efetividade de funções. Podem não exercer todos todas as funções, mas alguns, como o presidente da Assembleia da República e os membros da comissão permanente, continuam a exercer algumas funções", diz Vitalino Canas, admitindo que "um quinto dos deputados em efetividade de funções, mesmo com a Assembleia da República dissolvida, podem tomar a iniciativa". No entanto, ressalva o professor universitário, que foi secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros nos executivos de António Guterres, considera que qualquer tentativa tratar-se-ia "de uma iniciativa inconsequente, pois o plenário não pode reunir e a comissão permanente não tem competência para o substituir no exercício da função constitucional no que toca ao julgamento do Presidente".

As circunstâncias decorrentes da dissolução da Assembleia da República também se fariam sentir no caso de uma eventual demissão de Marcelo Rebelo de Sousa. Embora o presidente da Assembleia da República mantivesse a função de substituto constitucional do Presidente da República teria o seu exercício "obviamente muito limitado".

Só o próximo Parlamento, no arranque da legislatura saída das eleições de 10 de março de 2024, poderá decidir sobre o que possa ser apresentado ao próximo presidente da Assembleia da República pela procuradora-geral da República. "Os deputados não têm poderes de investigação criminal. Terá de haver indícios fortes", diz, ressalvando que mesmo assim a iniciativa não será obrigatória, podendo não ser possível reunir um quinto dos parlamentares em funções dispostos a dar o passo inicial. Seriam 46, enquanto os dois terços necessários para aprovar a acusação implicariam 153 votos favoráveis.

A necessidade de maioria qualificada para que um processo contra o Presidente da República avance para o Supremo Tribunal de Justiça é apontada por Carlos Blanco de Morais como um motivo para que a destituição fosse extremamente improvável mesmo que a investigação do Ministério Público pusesse Marcelo Rebelo de Sousa em causa. "Não há hipótese de ocorrer a aprovação por dois terços. Tenho as maiores dúvidas de que o PSD aprovasse", refere, antecipando que tal só ocorreria num "choque aberto com o Presidente". De qualquer forma, concorda que a destituição da Assembleia da República travará qualquer desenvolvimento no imediato.

Teresa Violante também afasta que a comissão permanente possa tomar qualquer decisão relativa ao eventual julgamento do Presidente da República pelo Supremo Tribunal de Justiça, caso o Ministério Público conclua existirem elementos suficientes para iniciar uma investigação criminal, na medida em que não existirá o quórum de deputados em efetividade de funções previsto na Constituição.

Inquérito em curso

Já foi confirmada pelo Ministério Público a abertura de um inquérito ao caso das gémeas, que está a decorrer no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, enquanto o Centro Hospitalar de Lisboa Norte, ao qual pertence o Hospital de Santa Maria, anunciou uma auditoria que também abarca a decisão. Marcelo Rebelo de Sousa disse na segunda-feira que, após receber um mail do seu filho, Nuno Rebelo de Sousa, presidente da Câmara de Comércio Brasil-Portugal, a dar conta que os pais das crianças tinham entrado em contacto com o Hospital de Santa Maria, sem obterem resposta, remeteu essa comunicação para a sua Casa Civil e para a sua consultora para os Assuntos Sociais. Mais tarde, a Presidência da República enviou documentação para os chefes de gabinete do primeiro-ministro e do secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, que era então José Luís Carneiro. Na comunicação aos jornalistas, Marcelo Rebelo de Sousa foi taxativo quando lhe perguntaram se tinha condições para se manter em funções, respondendo com um "obviamente".

Sobre as hipóteses de vir a existir um processo de destituição, Teresa Violante admite que são improváveis. "Sinceramente não acredito. A ter existido uma atuação menos conforme, dificilmente será imputável ao Presidente da República", refere a constitucionalista.

"Tenho defendido que se deve tratar disto de uma forma sensata, porque estamos a falar de uma questão de regime", remata, por seu lado, Vitalino Canas.

Passos do processo que nunca ocorreu

Iniciativa do Parlamento
Perante indícios recolhidos pelo Ministério Público da prática de crimes cometidos pelo Presidente da República no exercício do seu cargo (outro tipo de crimes só podem ser julgados no final do mandato), pelo menos um quinto dos deputados em efetividade de funções têm de apresentar uma iniciativa para autorizar que o caso seja julgado, mas para a acusação ser formulada tem de haver uma deliberação da Assembleia da República por maioria de dois terços dos parlamentares em efetividade de funções, como nas revisões constitucionais.

Supremo assume julgamento
Cabe ao Supremo Tribunal de Justiça realizar o julgamento, tal qual um tribunal de instância, por crimes praticados no exercício das funções pelo Presidente da República, pelo primeiro-ministro e pelo presidente da Assembleia da República. Qualquer um deles apresentaria a sua defesa, procurando rebater os argumentos da acusação.

Consequências imediatas
Se existir decisão condenatória, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça deve enviar de imediato certidão da mesma para o Tribunal Constitucional. Este órgão reúne em sessão plenária, logo no dia seguinte, declarando o Presidente da República destituído, e fica como interino o presidente da Assembleia da República. A condenação também implica a impossibilidade de reeleição.

(Notícia atualizada às 11h30 com declarações de Vitalino Canas)

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