Democracia sim, mas não para os inimigos da democracia?
"A sua natureza é similar à do nacional socialismo. O seu conceito de Volksgemeinschaft [comunidade de pessoas], a sua atitude fundamentalmente antissemita e o seu desrespeito pela ordem democrática existente tem claros paralelos com o nacional socialismo. (...) A identificação com personalidades do partido nazi, o uso de vocabulário, textos canções e símbolos nacionais-socialistas, assim como o revisionismo histórico, demonstram uma afinidade com o nacional socialismo."
Foi assim, associando-o à ideologia professada pelo partido nazi de Adolf Hitler, que em 2017 o Tribunal Constitucional alemão definiu o NPD (Nationaldemokratische Partei Deutschlands, ou Partido Democrático Nacional da Alemanha).
Este, diz o tribunal, advoga um conceito que visa abolir a ordem fundamental liberal democrática e substituir o sistema constitucional existente por um estado nacionalista autoritário, aderindo a uma "comunidade de pessoas" etnicamente definidas, sendo por isso racista e xenófobo: "O conceito de "povo" advogado pelo NPD viola a dignidade humana. Tem como objetivo segregar e difamar grupos sociais (estrangeiros, migrantes, minorias religiosas e outras) e retirar-lhes a maioria dos direitos."
Ainda assim, o TC alemão decidiu não ilegalizar o NPD. Porque, justifica, não há indicações específicas e expressivas de que o partido tenha sucesso naquilo a que se propõe.
Destaquedestaque"A proibição de um partido político requer que o dito procure minar ou abolir a ordem liberal democrática fundamental. Não é um meio para proibir visões ou uma ideologia"
"A proibição de um partido político requer que o dito procure minar ou abolir a ordem liberal democrática fundamental. Não é um meio para proibir visões ou uma ideologia", lê-se no acórdão. "Ao contrário, o partido deve ir para além do seu compromisso com os seus objetivos anticonstitucionais, passando a fronteira para o real combate da ordem fundamental democrática. Isso sucede quando o partido ativa e sistematicamente advoga os seus objetivos e age no sentido de abolir essa ordem fundamental democrática existente."
Mas, advertem os juízes, isso ainda não chega; é preciso ainda que haja a possibilidade de sucesso nessa destruição da democracia: "Tem de haver indicações específicas e fortes que pelo menos façam parecer possível que as atividades do partido sejam bem sucedidas (potencialmente). Se, ao contrário, os atos de um partido não sugerem sequer que este possa possivelmente conseguir os seus objetivos anticonstitucionais, não é necessário proteger a Constituição preventivamente proibindo o partido."
E porque é que não há, de acordo com os juízes germânicos, essa necessidade de ação preventiva? "Parece ser inteiramente impossível que o NPD tenha sucesso em alcançar os seus objetivos por meios parlamentares ou extraparlamentares democráticos. (...) A nível supra-regional, só tem um representante no parlamento europeu. Os resultados do partido nas eleições para o parlamento europeu e alemão estão estagnadas numa baixa votação. Nos mais de 50 anos da sua existência, nunca teve sucesso em ser representado num parlamento regional de modo permanente. Não há indicações de que esta situação venha a alterar-se no futuro."
A falta de sucesso eleitoral do NPD - nunca conseguira eleger para o parlamento federal e tinha acabado de perder o seu último lugar num parlamento regional - é pois a base do argumento de proporcionalidade do TC alemão: apesar da sua ideologia repugnante, o partido não é visto como uma ameaça tão grande à ordem constitucional que justifique uma medida preventiva extrema.
O argumento surge algo paradoxal: para merecer a ilegalização, o partido teria então de ser muito mais poderoso. É preciso deixar sair a serpente do ovo, portanto - que haja danos a sério. A fazer lembrar o exemplo do Aurora Dourada, o partido neonazi grego ilegalizado em 2020 após ter chegado a ser a terceira força mais votada do país: a ilegalização surgiu por via penal, sendo declarado organização criminosa na sequência de várias condenações de dirigentes e deputados, sendo um dos seus membros incriminado pelo homicídio do rapper antirracista Pavlos Fyssas.
Também em Portugal, em que a Constituição proíbe, no seu artigo 46º, nº 4, as "associações armadas ou de tipo militar, militarizadas e paramilitares", assim como as "organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista", a única ilegalização pelo Tribunal Constitucional de um partido ocorrida até hoje - a da Força de Unidade Popular, ou FUP - ocorreu na sequência de um processo penal no qual vários dos seus dirigentes foram condenados.
Já a posição do TC português sobre a organização de extrema-direita MAN (Movimento de Ação Nacional), em 1994, evidenciou a dificuldade encontrada pelos juízes em identificar "uma organização que perfilhe a ideologia fascista", ainda que dessem como provadas uma série de características elencadas na lei 64/78, que operacionaliza a aplicação do preceito constitucional proibitivo dessas organizações - como "o culto da pureza da raça em termos indiscutivelmente suscetíveis de provocar sentimentos de xenofobia e ódio racial"; o "objetivo de instaurar um Estado nacionalista por via não eleitoral"; a exaltação de "figuras que foram expoente do nacional-socialismo alemão e do fascismo italiano, e também do corporativismo português"; e a utilização e difusão pelo movimento e seus militantes dos "símbolos da saudação de braço ao alto e da cruz céltica". O TC português acabaria por decidir não decidir, já que o MAN se tinha entretanto autodissolvido.
Já a decisão do TC alemão sobre o NPD, interpretada como uma certificação de que ilegalizar partidos preventivamente não faz sentido (as últimas ilegalizações na Alemanha ocorreram nos anos 1950, quando foram extintos o Partido Socialista do Reich, sucessor do Partido Nazi, e, no início da Guerra Fria, o Partido Comunista Alemão), foi criticada por muitos como "um sinal de legitimação da difusão do ódio" e de que a visão de extrema-direita é aceitável.
Merece no entanto o aplauso de outros. O professor catedrático de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Paulo Otero é um deles: para este jurista, conotado com a direita conservadora, a "ilegalização preventiva" de partidos é, mesmo se inscrita numa Constituição, inconstitucional.
Um paradoxo que explica no livro A Democracia Totalitária: do Estado Totalitário à Sociedade Totalitária. A Influência do Totalitarismo na Democracia do Século XXI (2001): "A opção constitucional por um modelo restritivo da intervenção no jogo democrático de apenas algumas ideologias, limitando a participação no processo político de todos aqueles que se assumem como opositores da democracia, traduz a implantação de uma "democracia militante". Trata-se de uma democracia empenhada na defesa do caráter absoluto de certos valores e na inviolabilidade de determinados princípios básicos, razões pelas quais se sente legitimada a Constituição a excluir aquelas organizações políticas que lutam para subverter e eliminar essa mesma ordem axiológica."
Destaquedestaque"A proibição de partidos políticos totalitários numa democracia derroga a liberdade de associação política" e expõe os seus "germes totalitários", ou seja, "uma contradição profunda"
Poder-se-á dizer, prossegue o texto, que "uma tal redução de liberdade política é o preço que a democracia tem de pagar para impedir a destruição ou subversão da democracia pelos seus próprios meios ou, talvez melhor, vinda de dentro da própria democracia." Mas pergunta: "Será, porém, que um tal preço não se mostra excessivo, se não mesmo incongruente com os próprios postulados da democracia?"
Para o constitucionalista, que considera que um partido como o NPD não deveria ser objeto de ilegalização preventiva pelo TC português, a resposta é positiva. "Uma tal proibição representa sempre em Constituições de Estados democráticos uma forma de discriminação ideológica, colocando em causa o princípio da igualdade e a completa democraticidade do sistema (...)." O que do seu ponto de vista comporta "uma autorrutura constitucional", já que "a proibição de partidos políticos totalitários numa democracia derroga a liberdade de associação política", e expõe os seus "germes totalitários", ou seja, "uma contradição profunda", a de procurar "garantir os seus valores através de derrogações não democráticas ao próprio princípio democrático."
Não pode pois a democracia defender-se dos que a querem usar para a derrubar?
Pode, responde o constitucionalista, mas através do direito penal. "Se por exemplo há uma organização que advoga a utilização de meios violentos para subverter a ordem constitucional estabelecida, deve ser acusada do crime de atentado ao Estado de direito. O direito penal político é a primeira defesa da democracia."
Já se o caso for de discurso de ódio, cai uma vez mais sob a alçada do Código Penal e do seu artigo 240º (Discriminação e incitamento ao ódio e à violência), opina o catedrático. "Deve haver sanções aos dirigentes que o veiculem e sanções de natureza patrimonial ao próprio partido." Só daí, crê, se pode avançar para a ilegalização no TC. "Esse é o modelo que considero correto: primeiro atuação penal, depois do TC." É, precisa, "aquilo que se passa com qualquer empresa que se dedique por exemplo ao tráfico de pessoas. Primeiro prova-se o crime, depois extingue-se a empresa."
Embora não defendendo que a via criminal deve preceder a apreciação do TC, o relatório aprovado em 2020 na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias a propósito de uma petição ao parlamento pedindo a proibição de reuniões de grupos nazis em Portugal e "pela ilegalização efetiva de grupos de cariz fascista/racista/neonazis" frisa, pela pena da constitucionalista e deputada do PS Isabel Moreira, a excecionalidade da aplicação do nº 4 do artigo 46º da Constituição.
"O artigo 46º, nº 4, proíbe as organizações referidas", lê-se no relatório, "mas não proíbe a expressão individual do pensamento racista e fascista, por mais condenável que ele possa ser. Temos de distinguir os planos do pensamento, da palavra e da ação. Por vezes, quando se explica o alcance necessariamente limitado do artigo 46º da Constituição, é-se confrontado com alguma perplexidade, como se estivéssemos a proteger os inimigos da democracia. Acontece que faz parte do Estado de direito democrático, e portanto de uma Constituição democrática, assumir o risco de acolher os intolerantes. (...) O artigo 46º da Constituição deve, evidentemente, ser levado a sério, mas não pode ser pretexto político para pretender ilegalizar a livre expressão do pensamento e mesmo da organização política dos nossos adversários políticos (...)."
Outra questão é a da operacionalização da proibição de determinado tipo de organizações inscrita no artigo 46º da Constituição portuguesa e que a lei 64/78 tenta concretizar. Essa concretização, curiosamente, faz-se sobretudo pela caracterização do que será uma organização fascista - aliás a lei tem como título "Insere disposições relativas a organizações fascistas" - e em termos muito estreitos; a especificação do que constitui uma organização racista, militar ou paramilitar não é abordada.
Assim, lê-se no diploma: "Para o efeito do disposto no presente decreto, considera-se que perfilham a ideologia fascista as organizações que, pelos seus estatutos, pelos seus manifestos e comunicados, pelas declarações dos seus dirigentes ou responsáveis ou pela sua atuação, mostrem adotar, defender, pretender difundir ou difundir efetivamente os valores, os princípios, os expoentes, as instituições e os métodos característicos dos regimes fascistas que a História regista, nomeadamente o belicismo, a violência como forma de luta política, o colonialismo, o racismo, o corporativismo ou a exaltação das personalidades mais representativas daqueles regimes."
E acrescenta-se: "Considera-se, nomeadamente, que perfilham a ideologia fascista as organizações que combatam por meios antidemocráticos, nomeadamente com recurso à violência, a ordem constitucional, as instituições democráticas e os símbolos da soberania, bem como aquelas que perfilhem ou difundam ideias ou adotem formas de luta contrária à unidade nacional."
Ora a Constituição proíbe vários esses tipos de organização e não apenas as fascistas, não fazendo depender umas das outras (ainda que o fascismo tenha historicamente implicado defesa da violência como forma de alcançar o poder e, pela exaltação do nacionalismo, xenofobia e racismo).
Não é necessário que exista acumulação, confirma Paulo Otero: bastará por exemplo o reconhecimento do racismo para a ilegalização. Mas "tem de ser intenso", adverte. "Tem de haver uma prática reiterada imputável ao partido, um conjunto de situações, por exemplo de formulações públicas por alguém que tenha funções de responsabilidade institucional no partido, que apontem nesse sentido."
O também constitucionalista Vital Moreira, que foi deputado pelo PCP e depois pelo PS, assim como juiz do TC, parece ser da mesma opinião. A propósito da participação apresentada por Ana Gomes à Procuradoria-Geral da República contra o partido Chega, pedindo a sua ilegalização, escreveu no blogue Causa Nossa: "Sendo certo que não se trata de uma "organização militar nem de tipo militar ou paramilitar" nem de uma "organização que perfilhe a ideologia fascista" (pois tal não resulta do seu programa nem das suas propostas políticas), o único fundamento constitucional que poderia ser invocado prima facie seria a de tratar-se de uma "organização racista", dadas algumas conhecidas declarações contra ciganos e comunidades de origem africana."
Mas, prossegue Vital Moreira, "é de duvidar se algumas declarações e posições avulsas de natureza racista, intoleráveis e condenáveis em si mesmas, bastam para a qualificação de "organização racista", o que exige que ela estabeleça como um dos objetivos explícitos da sua ação a discriminação, a perseguição, a exclusão ou a estigmatização de pessoas ou comunidades por motivo de raça."
E frisa: "Numa democracia liberal, a derrogação da liberdade de organização política é por definição excecional e tem de ser interpretada restritivamente. Na dúvida, prevalece a regra da liberdade de criação e de ação de partidos políticos."
Ao DN, este professor catedrático jubilado diz não querer elaborar mais sobre o assunto, remetendo para um relatório da Comissão de Veneza (Comissão Europeia para a Democracia através do Direito), que integrou entre 1999 e 2003.
Este órgão consultivo sobre questões constitucionais do Conselho da Europa publicou em 1999 o dito relatório, que versa sobre a proibição de partidos políticos em democracia, concluindo que esta deve ser "uma medida excecional numa sociedade democrática", implicando a apresentação de "provas suficientes de que há uma ameaça real à ordem constitucional ou aos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos."
Frisando que é preciso ter em consideração o princípio da proporcionalidade, a Comissão exemplifica: "Deve haver provas suficientes de que o partido político em causa advoga a violência (incluindo evidências específicas de violência como o racismo, a xenofobia e a intolerância), ou está claramente envolvido em terrorismo ou outras atividades subversivas. As autoridades estatais devem sempre também avaliar o nível de ameaça para a ordem democrática do país e se não existem outras medidas, como sanções patrimoniais, (...) ou o levar dos membros do partido envolvidos nas ditas atividades à justiça, que possam resolver a situação."