"Álvaro Cunhal deixou um lastro que impede o PCP de raciocinar"

Ao lançar em livro um "contributo modesto", o ex-PCP Domingos Lopes procura refletir sobre o ideal comunista, que considera "ser o caminho a seguir" pelo partido.
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Domingos Lopes afastou-se do Partido Comunista Português (PCP) em 2009, mas continua a ser "um comunista sem partido". Isso levou-o a escrever 100 Anos do PCP: Do Sol da Terra ao Congresso de Loures, um contributo "modestíssimo" para tentar reconfigurar o ideal comunista em que ainda acredita.

"O facto de o PCP fazer 100 anos fez-me pensar, de forma inconsciente, aquilo que o ideal comunista representa", começa por dizer. No entanto, aponta críticas ao caminho que o partido seguiu e que o trouxe até aos dias de hoje."O ideal comunista implodiu há décadas, e o PCP mantém um seguidismo cego em relação ao modelo de sociedade que implodiu", considera.

Na sua opinião, este ideal "pode contribuir não só para tornar a vida das pessoas mais digna e mais democrática". Contudo, diz, o facto de o PCP se manter "fossilizado" em relação a uma sociedade que falhou, deve merecer uma reflexão aprofundada "daqueles que se consideram comunistas".

Tendo sido secretário de Álvaro Cunhal, Domingos Lopes abandonou o partido depois de mais de 40 anos de militância. E, tal como na altura da sua saída, continua a não compreender "posições que apesar de manterem a direção à frente do PCP", acabam por levar "à deserção e, com isso, à perda de influência eleitoral e social do partido". Esta perda de influência notou-se também nas últimas autárquicas, considera, onde o PCP "conseguiu perder autênticos bastiões, que tinham sido sempre comunistas".

Na perspetiva de Domingos Lopes, o resultado das legislativas de janeiro - que é abordado no livro - não é surpresa. "Há uma incapacidade do partido em compreender que as pessoas, apesar de tudo, preferem uma solução governativa de esquerda", relembrando a criação da geringonça. "O PCP tomou uma decisão de muita responsabilidade. A partir do momento em que se sabia que o chumbo do Orçamento do Estado (OE) podia resultar no fim do governo, a posição do PCP não foi adequada, realista", considera. O que levou o PCP a posicionar-se assim em relação ao OE é, para Domingos, uma incógnita. Porém, "foi um erro grave do PCP", que não "devia sintonizar o seu azimute pelo Bloco de Esquerda, mas sim por aquilo que estava em causa: assumir a responsabilidade de derrubar um governo".

Além da perda de votos nas eleições (que acabou por reduzir o grupo parlamentar dos comunistas para metade), o passado recente do PCP tem sido tudo menos pacato. Aquando da invasão russa na Ucrânia, o PCP foi o único partido a não condenar diretamente o ataque.

Para Domingos Lopes, ao não condenar diretamente o ataque, "o PCP tomou uma posição bastante errada". Isto acontece, entende, porque "Álvaro Cunhal deixou um lastro que impede o partido de raciocinar". Ainda assim, aproveita para lançar farpas aos velhos opositores: os partidos de direita.

"Até hoje, não vi, por exemplo, pedirem uma explicação ou uma condenação a Durão Barroso sobre a invasão do Iraque", atira. "O Iraque foi completamente destruído e, até hoje, ninguém pediu uma sanção aos Estados Unidos sobre esse assunto", constata.

Ainda assim, o ex-PCP considera que o partido "nunca, em nenhuma circunstância pode aceitar que, independentemente da Ucrânia, da NATO ou dos EUA, que a guerra seja a solução. Nunca o pode ser. O ideal dos comunistas é a paz". Na sua perspetiva, "o discurso de Putin visa a descomunização da própria Rússia. Como é que o PCP pode coincidir com alguém claramente de extrema-direita e autoritário? Não pode."

Por isso, Domingos Lopes é da opinião de que é "há um vazio ideológico desde que Cunhal desapareceu", uma vez que o ex-líder comunista era, a seu ver, "um intelectual enorme. Mas era um homem e tinha defeitos". Isto fez com que Cunhal deixasse "um partido à ideia de uma União Soviética que, para si, era insuperável, algo que falhou e deixou uma orfandade que era necessário preencher do ponto de vista ideológico e de renovação do pensamento", constata. "Cunhal achava mesmo que a União Soviética era inexpugnável e que, como baluarte da revolução mundial, era preciso apoiá-la", algo que, para si, ainda afeta o PCP atual.

No livro agora publicado, além de fazer uma reflexão sobre o percurso do PCP até à atualidade, Domingos Lopes deixa também a vontade de reconfigurar e repensar os ideais comunistas adaptados à realidade dos dias de hoje.

"Não queria deixar de escrever o livro sem que houvesse um conjunto de sete, oito, nove ideias que, a meu ver, deverão ser tidas em conta", explica. Para si, este devia ser o caminho a seguir pelo PCP. "O partido perdeu os votos que perdeu entre autárquicas e legislativas, e mesmo assim não encontra nenhuma autocrítica", refere, explicando que, na ótica do PCP, "ainda há aquela ideia de que as povoações se vão arrepender, a ideia que as pessoas é que estão erradas e não o partido". Esta perspetiva, diz, acaba por "fazer muito mal aos comunistas", uma vez que "o partido sabe sempre tudo. Nunca precisa aprender nada".

Apesar de ainda se considerar comunista, Domingos não vê fácil a tarefa de reconfigurar o ideal comunista em Portugal. "Gostaria muito que fosse possível [pela mão deste PCP] reconfigurar o ideal comunista. Mas a reação que vejo não é para esse lado que aponta, infelizmente". O futuro, considera, pode não ser o mais risonho. Domingos Lopes acredita que, "se o PCP não for capaz de perceber e de se adaptar aos tempos, que já não são os do século XIX ou século XX, e se não tiver a humildade de reconhecer que precisa mudar, não terá grande futuro".

rui.godinho@dn.pt

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