"Costa tem vantagem sobre Marcelo. O aluno conhece o professor, mas o professor não conhece os alunos"

Politólogo e professor universitário, investigador e escritor analisa sete anos de António Costa e de Marcelo Rebelo de Sousa no poder. Diz que o primeiro-ministro "sabe-a toda" e que o Presidente da República pode vir a ser "condenado" a ter de dissolver a maioria absoluta.

Analista político, ora com humor ora abrasivo, o professor José Adelino Maltez examina o exercício de António Costa em São Bento e de Marcelo Rebelo de Sousa em Belém. Aos 71 anos, desafiador e polémico, mostra-se otimista quanto à diversidade e pluralidade do sistema democrático em Portugal.

Nos últimos anos tem havido uma dança permanente entre os dois palácios, Belém e São Bento?

Isso é uma categoria da análise política que é o confronto entre o fórum e o palácio - mas aqui entre dois palácios. No entanto, o grande problema é a praça e pior problema do momento é a praça passar a viver no palácio ou o palácio na praça. Claro que me estou a meter com Marcelo, é evidente, mas vivemos em democracia de opinião e vertigem. O que aconteceria aos portugueses se durante uma semana o Presidente da República não emitisse uma opinião pública? Já o primeiro-ministro admitimos que tenha uma conversa semanal, devagarinho, através de um ministro, ou que dê uma entrevista de mês a mês ou de dois em dois meses. A questão é que a praça, a opinião publicada e o jogo saltaram para dentro do Palácio de Belém e entrámos em vertigem. O problema da praça e do palácio, da vertigem e da opinião de Marcelo, é percebermos que bolhas estamos aqui a tratar. Vi os números de quem assistiu à entrevista do primeiro-ministro, cerca de 60 mil pessoas - e houve 600 mil comentários à entrevista em pedacinhos. Mas temos seis milhões que vão votar. A decisão político-eleitoral não é a vertigem, é a decisão - não digo que seja maturada ou objeto de propaganda -, marcada a tempos, de quatro em quatro anos, para este efeito, por seis milhões. Isto que estamos a fazer é uma bolha de nível um para uma de nível dois e uma de nível três.

O facto de Marcelo Rebelo de Sousa ter sido professor de António Costa e de os dois se conhecerem há mais de 40 anos influencia a relação? E neste caso, só falo entre palácios, entre as duas pessoas.

​​Também fui professor da mesma casa na altura em que António Costa era aluno e não sei se terá sido meu aluno ou não. Há uma regra nessa matéria, o aluno conhece o professor, mas o professor não conhece os alunos. Isto é, António Costa conhece perfeitamente Marcelo, como é que se comporta, qual é a psicologia, mas não sei, pelo menos eu não tenho o privilégio de fazer essa análise com os milhares de alunos que nos passam pelo auditório ao longo de um ano. Mas é verdade, Costa conhece perfeitamente Marcelo.

Então, Costa está em vantagem?
Está, porque tem suficiente opinião, sabe que não a pode emitir a título pessoal e consegue analisá-lo, até porque Marcelo é a pessoa mais exposta nas bolhas todas dos últimos 30 ou 40 anos. Portanto, há aqui um excesso de conhecimento psicológico de Marcelo e na luta política isso é costume. Quando se conhece politicamente o adversário - neste caso, o complemento - é muito difícil. Mas devo dizer, da minha experiência, que há uma grande estabilidade em Portugal, porque os portugueses gostam de períodos deste género de disputa. Do anterior, com Cavaco primeiro-ministro e Soares Presidente, temos todos saudades, no entanto havia dois países. Foi na altura da campanha de Mário Soares que António Barreto inventou uma categoria muito interessante e totalmente mentirosa, que era o povo de esquerda (de Soares) contra o povo de direita (de Freitas do Amaral) - depois o Freitas acabou ministro do povo de esquerda. Mas gostamos de não pôr os ovos todos no mesmo cesto, sabemos que isso dá equilíbrio e estabilidade e o que temos hoje é uma repetição desse processo. As pessoas escolheram inequivocamente e escolheram perfis psicológicos até diversos para termos equilíbrio, é uma sabedoria da democracia prática portuguesa. Temos a tendência para começar logo a teorizar, mas a democracia não tem nada a ver com isso, escolhemos este modelo, sentimo-nos equilibrados por termos um Marcelo, que além de politicamente diverso é psicologicamente diverso de Costa, mas isso faz-nos desinibir, sentimo-nos confortáveis sentados no sofá a ouvir as opiniões de Marcelo. Ainda esta semana Marcelo disse sobre os professores que até aqui a sua causa tem sido simpática, mas de repente a opinião pública pode virar-se contra eles. Digo o mesmo em relação a Marcelo e Costa, até aqui está tudo muito simpatizante com este dualismo, mas de um momento para o outro - e esse é o segredo da política, quem descobre esse clique - tudo pode virar-se quer contra Marcelo quer contra Costa. Neste momento, não vejo problemas maiores e cada um deles tem a bola nos pés, está no meio campo, pode fintar ou passar para trás, estamos num momento de indefinições.

"Até aqui está tudo muito simpatizante com este dualismo, mas de um momento para o outro tudo pode virar-se quer contra Marcelo quer contra Costa."

António Costa está em São Bento há sete anos e dois meses e esta semana passou um ano da maioria absoluta. Que mudanças notou entre o governo da geringonça e o de hoje?
Um ano? O problema de António Costa é que este governo tem mais sete, portanto, há aqui uma continuidade. E o que ele ofereceu foi primeiro uma geringonça, que anunciou como o fim do muro de Berlim - não nos esqueçamos disto - e que acabou numa guerra novamente, já há muro de Berlim novamente. Mas há aqui uma continuidade e há três momentos na vida política do primeiro-ministro. Primeiro, ficou em segundo lugar nas eleições e fez a manobra do acordo com o PCP e o BE; na segunda fase passou a ser o partido número um e, por fim, obteve a maioria absoluta. Há três fases de um só António Costa, ele estava condenado à continuidade, logo este governo de um ano poucas novidades trouxe face ao segundo de Costa. Há um peso histórico.

Mas estando liberto de BE e PCP não se esperaria que fosse vincadamente diferente?
Quando vi a competição no governo, verifiquei que havia continuidade em momentos fundamentais e quando muito promoviam-se secretários de Estado a ministros, era uma forma de continuidade.

A maioria absoluta não trouxe nenhuma mais-valia ao primeiro-ministro?
Trouxe a mais-valia de não ter de aturar todos os dias a mediação entre ele, PCP e BE, intermediada por Pedro Nuno Santos. Deu-lhe estabilidade, deu-lhe política europeia de continuidade, deu-lhe posição geopolítica segura - aliás, está num sítio bem demarcado desse domínio, não temos dúvidas. Assistiu ao renascer do muro e está na posição em que estão grande parte dos seus pares socialistas que estão no poder na Europa ocidental, não há nenhuma tragédia ou mudança de opinião. Além disso, tem Marcelo, que é igual a si mesmo, portanto, os portugueses estão com uma grande estabilidade.

"A fase três da luta política democrática não é eliminar divergências ou convergências. É chegar a novas divergências e convergências."

Mas a maioria absoluta tem trazido poder absoluto ou responsabilidades absolutas?

Ambas. Permite-lhe fazer reformas, permite-lhe fazer coisas notáveis como esta colocação dos professores, que já não têm de andar com a casa às costas e que, ao fim de sete anos, estão finalmente a 50 quilómetros de casa. Mas isto demorou muito, levou muitos anos a perceber que o grande problema de Portugal é haver algumas pessoas que saibam pensar fora da caixa. Aquilo era o algoritmo da Direção-Geral que não punha nas escolhas o local de residência; e como se vê, afinal é fácil, basta alterar a programação. O que falta a Portugal é alguém, uma startup, um unicórnio qualquer atrás de cada ministro. Isso é mais importante do que a política, do que o jogo do Montenegro e até do Ventura. É muito mais importante termos alguém que pense fora da caixa e consiga resolver os problemas da justiça; é preciso um grande processualista que altere a lentidão, um grande professor que mude completamente este jogo processual. É preciso uma grande reforma, por exemplo, numa coisa que é tabu: a lei eleitoral. Estou a lembrar-me que o ministro de António Guterres que deu o maior avanço à lei eleitoral, nos anos 90, foi precisamente António Costa. Estavam todos de acordo com um sistema alemão, não havia divergências fundamentais para a lei eleitoral entre PS e PSD. Vemos, por exemplo, como nos enredámos na lei da eutanásia. Vamos supor que a maioria do país representado no Parlamento quer a lei neste sentido: como é possível tanto desastre? Acho que umas startups obrigatórias em cada ministério e em cada política permitiam a simplificação. A política é uma coisa complexa, a democracia é extremamente complexa. Isso quer dizer que estamos com uma dialética Engeliana ou Marxiana na cabeça que diz que há tese, antítese e síntese. Há o fascismo, depois vem o antifascismo e depois chegámos à democracia, um, dois, três - mentira. Na política há sempre, sobretudo na democrática, o sinal da convergência, de vez em quando convergimos todos, somos todos portugueses, todos europeístas, é uma facilitação; mas há divergência, há sempre um BE ou um Ventura. E a fase três da luta política democrática não é eliminar divergências ou convergências, ninguém chega à síntese, chegamos é a novas convergências e divergências - essa é a complexidade crescente da luta política e é uma dialética clássica. É a dialética romana, é o diálogo entre adversários.

"O que falta a Portugal é uma startup, um unicórnio atrás de cada ministro."

O que está a dizer é que a seguir podemos vir a ter uma convergência à direita?

Como digo, direita e esquerda são categorias que não se enquadram naquilo que os portugueses querem, foi uma invenção do António Barreto para a luta política. Os portugueses são do extremo-centro; as divergências que temos entre PS e PSD, quer dizer, ambos são sociais-democratas, europeístas, ocidentalistas, temos uma divergência entre centro-direita e centro-esquerda. Qualquer analista vê que há aqui uma grande continuidade e só não há acordo de regime porque não lhes interessa ganhar mais uns votos para um lado e para o outro. Além disso, temos um Presidente que equilibra o combate. Aquilo que verifico de lei na democracia portuguesa é que somos muito centrais, no sentido de opções equilibradas, sem processo de rutura social. Julgo que isto vai manter-se em Portugal e nenhum político que se coloque fora deste esquema consegue comunicar.

"Os portugueses são do extremo-centro; PS e PSD são ambos sociais-democratas, ocidentalistas, europeístas. Há aqui continuidade e só não há acordo de regime porque não lhes interessa ganhar mais uns votos para um lado e o outro."

Mesmo com o crescimento do Chega acredita que se vai manter esse extremo centro?
Há racionalidade por trás do discurso, aliás ainda há pouco me provocaram com a questão Costa-Marcelo e são ambos da mesma faculdade de Direito, ambos adeptos do mesmo modelo de Estado de Direito e têm a mesma racionalidade jurídica. Antigamente, tínhamos um seminário eclesiástico, o século XX é uma coisa que está a acabar, mas ainda estamos na racionalidade da Faculdade de Direito, vamos construir o Estado de Direito; a dialética da democracia é esta, temos uma lei constitucional que ambos comungamos, fomos nós que a fizemos. Há aqui um tipo de racionalidade que comunica desta maneira. Os jornalistas também dizem todos isso, há grande consenso na sociedade portuguesa, às vezes quem está pela rutura é só pelo espetáculo.

Falou da entrevista do primeiro-ministro esta semana, mas antes do Natal e de algumas das sucessivas demissões no governo, António Costa deu uma entrevista à Visão, a célebre entrevista do "habituem-se" e dos "queques que guincham". Estava a comportar-se como Luís XIV?
Não, estava a comportar-se como António Costa. O estilo dele para conquistar o poder. Basta recordar o que fez com Seguro. De vez em quando, salta-lhe a veia jacobina ou demagógica, mas nada do outro mundo, depois equilibra.

O equilíbrio foi na entrevista desta semana, em que parece o Egas Moniz ao dizer "o governo pôs-se a jeito, cometeu erros" e vamos humildemente reconhecer?
É muito cedo... Acho que ele fez o que programou, mas ainda não teve os efeitos que precisa de ter.

Mas qual é o verdadeiro Costa?
Vamos fazer-lhe um elogio: o verdadeiro António Costa é um mestre na conversa. Alguém que está a ser entrevistado durante uma hora pelo nível um da bolha mediática é um artista e consegue espraiar-se para os 600 mil e teve êxito nos seis milhões. Só que ele ficou, no meio destes casos e casinhos todos, bloqueado naquilo que tem de melhor, que é a arte da conversa. Esta última entrevista é uma tentativa de regresso à arte da conversa, que não pode ser diária como a de Marcelo, mas pelo menos mensal. Conseguiu apagar alguns efeitos, mas em termos de comentário, não conseguiu desenvolver o discurso, porque o entrevistador não deixou.

"O verdadeiro António Costa é um mestre na conversa. Alguém que está a ser entrevistado na bolha mediática, é um artista e consegue espraiar-se para os 600 mil e teve êxito em seis milhões."

E ele tinha discurso para passar?
Tinha, era aquele que tentou três ou quatro vezes, disse sempre o mesmo, "vencemos a pandemia, conseguimos controlar a inflação, não vamos para recessão", portanto, o discurso dele era insistir nestes dois argumentos e não estava para discutir casos nem casinhos, muito menos a falar no Medina. Foi o que ele fez. Ainda não conseguiu, mas está cheio de gás. Isto significa que não se destreinou, falar para seis milhões não é falar para 60 mil, vai dar luta, sobretudo comunicativa porque os casos e casinhos são culpa dele, ponto.

Nesta altura, António Costa está cercado pela oposição à esquerda e à direita, pela promessa de oposição interna e pela saída de Pedro Nuno Santos do governo?

Está cercado pelos dois desafios que lançou: vencer a recessão e ultrapassar o sistema de guerra que está a enredar o principal dinamismo da nossa política, que é o problema europeu. São dois fatores que não consegue ultrapassar nem controlar para efeitos internos. Portanto, o que vai acontecer? Os chamados inputs da política portuguesa não são controláveis pelos portugueses e Costa tenta dizer que fez tudo bem, mas sabe que há uma impotência, por isso é que insiste nestes pontos de convergência. Se formos discutir o plano interno e se ele aguenta Marcelo? Claro que aguenta, aliás, este jogo em que entraram de piada para aqui e para acolá, o Costa sabe-a toda e consegue responder. E aguenta o PSD? Talvez aguente, no meio destes recursos que tem. Portanto, a política em Portugal não acabou com os casos e casinhos.

E aguentará os adversários internos, como Pedro Nuno Santos?
Não existem, num partido com este impulso de poder não há adversários internos possíveis, há distribuição de poder. E em julho vem o Pedro Nuno Santos e quem é que diz? Nós é que inventámos a existência desse conflito.

E o que é que ele não aguenta?
O problema é aguentar a opinião pública e o povo. Se o povo se revolta contra ele, como agora ameaçava. Esta degradação dos casos e casinhos não controláveis por ele é terrível. Repare-se que ele utilizou a técnica do "não me matem o Medina" porque ele precisa de Medina e se não houvesse casos e casinhos era um festival de Costa feliz e notável. Foi terrível este ambiente de comunicação, porque não lhe permite fazer o brilharete em termos destes números ótimos, comparativamente com o histórico do fim do ano. Acho que não é por aí que vai morrer, acho que vai morrer naquilo que não sabe que o pode matar - nem eu sei, mas é a opinião pública considerá-lo alguém que faz parte da patranha dos casos e casinhos e que tem um sistema de corrupção por trás dele. Esse é o grande desafio de Costa, porque é aqui que ele joga tudo, joga tudo na confiança e em aguentá-la quatro anos.

Vamos a Belém, o outro lado neste tango. Marcelo fala de mais?
Já não me aguentava se não ligasse o telejornal à noite e não ouvisse o que ele disse de manhã... Não se consegue controlar, Marcelo tem esse problema de ser uma criança hiperativa e quanto mais velho está, mais criança; mas tem uma coisa que vence isso, que é o amor que tem ao exercício desta função. Ele tem um prazer enorme e todos vemos que está a fazer o que gosta e isso compensa o exagero da hiperinformação e do hiperativismo. Já ninguém se importa muito que ele entre em contradição. É o Presidente que fala para os seis milhões com uma maioria crítica na primeira bolha mediática - os comentadores têm sempre uma opinião diversa dos seis milhões.

O facto de ser um analista político, um politólogo, um estratega, um enfant terrible se quisermos, é positivo para a sanidade da democracia ou pode ser um ruído no xadrez da política portuguesa?
Não sou psiquiatra da democracia, mas julgo que ele pode chegar ao fim dos mandatos e entregar um país mais plural. A existência de novas forças à direita e a consolidação de uma nova força fora de um unitarismo antifascista do PCP enriquece a democracia, a existência do Chega e da Iniciativa Liberal e a medição de forças do PCP face à história. O que me interessa são os resultados finais. Aguentamos o sistema pluralista e competitivo com o mínimo de rendimentos, com o mínimo de esperança e com os jovens a acreditar que têm futuro? Sou avô e sou sempre pela esperança coletiva e Marcelo faz parte de um longo período desta história democrática e contribuiu para isso.

"A existência de novas forças à direita e a consolidação de uma nova força fora de um unitarismo antifascista do PCP enriquece a democracia, a existência do Chega e da Iniciativa Liberal e a medição de forças do PCP face à história."

O facto de ser uma popstar pode ajudar a trazer jovens para a política, e os desacreditados, os abstencionistas, pessoas que não votavam, mas que veem em Marcelo esse tal avô e vão atrás?
Isso não sei dizer, o popstar é um bocado antiquado, é uma coisa do tempo do star system nos anos 70 ou daquilo a que chamamos de um estado de espetáculo. Marcelo não é bem uma popstar, é o tipo com quem converso todos os dias, há uma comunicação mais direta e não é em palco - agora não se pode falar em palco -, é sobretudo num sistema de comunicação cara a cara com cada um dos portugueses. Não sei o que responder a isso, porque não estou na cabeça dos portugueses, mas que tem efeitos, tem, normaliza opiniões e permite enriquecer a democracia. É para aí que caminhamos, para uma democracia bem mais pluralista.

Acredita que depois das eleições europeias, se o equilíbrio de forças se alterar, o Presidente pode ser tentado a dissolver a maioria?

Pode ser condenado, porque há uma lei que os presidentes têm de seguir: quando carregam no botão da bomba atómica têm de acertar com o eleitorado, embora normalmente tenham acertado com a maioria que vem a seguir. É um problema da intuição política, mas é inevitável se Costa não recuperar. É inevitável, ninguém suporta um governo que não esteja marcado pelo ritmo da opinião pública e Costa sabe isso perfeitamente. Não podemos prever porque ainda vamos ter 2023, 2024, há muito tempo - vamos ter guerra ou não, recessão ou não, não sei responder, portanto, como é que posso responder à questiúncula menos grave, que é saber se Costa vai ser dissolvido ou não? São questões secundárias face ao que vão ser as questões quotidianas dos portugueses, como o emprego, o rendimento minimamente justo. O fundamental é manter o equilíbrio.

"Marcelo pode ser condenado a dissolver a Assembleia (...) É inevitável se Costa não recuperar. Ninguém suporta um governo que não esteja marcado pelo ritmo da opinião pública e Costa sabe isso."

Está a falar das dúvidas todas e já sabemos que as sondagens valem o que valem, mas se as eleições fossem hoje, PS e PSD juntos teriam 55% dos votos. Isto revela desgaste dos dois maiores partidos tradicionais ou é a sociedade à procura de alternativas, ao contrário da tese do tal centro-extremo?
55% é centrão.

Mas é o menor resultado dos dois juntos desde há várias décadas.
Mas é muito pouco comparado com o que se passou em Itália ou França, que tiveram transformações políticas e eliminaram as anteriores forças dominantes. Mas contra isto depois vamos ver o que é uma democracia em Portugal: como se viu dos casos e casinhos, é a democracia nacional e depois são 300 democracias locais e duas democracias regionais. E se formos dar um salto para análise infra da política, o problema é que não têm 55% em termos de participações autárquicas, têm mais de 80%, o PS e o PSD. Ninguém faz política só em Lisboa, só em São Bento ou em Belém, vemos cada vez mais isso e, aliás, grande parte do descontrolo do Costa com os casos e casinhos foi nas democracias autárquicas e locais. O PS e o PSD continuam a ser dominantes e acho que somos muito conservadores face àquilo que se passou na Europa. Estão longe de esgotados no respetivo recurso de controlo, nomeadamente a nível das democracias locais que, a meu ver, são cada vez mais importantes. O erro de Costa foi não ter informação a nível das democracias locais e deixou agigantar casos em que se tivesse a informação, poderia ter ultrapassado. Portanto, ainda antes de me perguntar pelo Chega respondo já: mesmo numa extrema-direita portuguesa como a do Chega, Ventura também é aluno de uma faculdade de Direito, utiliza a mesma argumentação, não tem nada a ver com líderes que rebentam com o sistema. Ele está a responder parlamentarmente e em termos de argumentação racional no mesmo plano destas grandes forças. Não há aqui um apelo ao carismático ou a uma mudança radical, pelo contrário. E quanto mais cresce, mais se aproxima da argumentação do grande seminário do século XX que são as faculdades de Direito, a lei constitucional; é exatamente o mesmo discurso, não há uma quebra de discursos.

"O Chega é um dos mais moderados da extrema-direita europeia e ele próprio tem de fazer este jogo para ter os 15%, senão não cresce."

Mas temos assistido à política europeia e é muito raro haver maioria absoluta; até começa a ser raro haver governos de apenas dois partidos. Aliás, há até grandes coligações de três ou mais partidos. Isso pode vir a acontecer em Portugal nas próximas legislativas?
Sou um observador não comprometido, se fosse um cidadão comprometido acharia extremamente útil que isso acontecesse, sobretudo para que os dois partidos dominantes não pensem que numa reunião entre os dois resolvem tudo. Eles têm de ouvir e de sentir mais a sociedade civil do que aquilo que se habituaram a fazer ao longo dos tempos. Fizeram bem, o legado não é mau e até sou um bocado conservador e acho que não convinha mudar muito o que tem funcionado no último meio século. No entanto, adormeceram à sombra do controlo e isto fá-los desleixar. Não perderam a juventude, não há propriamente uma dialética jovens-velhos, atingiram o cume com Soares e Cavaco e agora com Marcelo e Costa, portanto, só se fizerem muitas asneiras, até porque têm uma base autárquica e regional sólida. Não vejo uma alteração substancial da participação política, do entusiasmo, da militância ou das ideologias que apontem para outra alternativa, até porque nacionalmente gostamos de estar onde estamos desde que não haja muita guerra, e ainda não entrámos em grandes divisões psicológicas.

Não?
Isto não é a guerra fria, quer dizer, até o PCP está incomodado em ter de fazer aquele discurso nem carne nem peixe, que acaba por ser analisado como do contra. Não há divisões fatais na sociedade portuguesa, isto não é o tempo do PREC. Dois exemplos: as forças ocidentalistas, nomeadamente os americanos, jogavam na insistência de uma extrema-esquerda para atacar o PCP e evitar que tivesse poder. Mas o PCP depois jogou com os católicos, o primeiro líder político a dizer que os católicos eram bem-vindos foi o PCP, um partido que nunca foi anticatólico, antes pelo contrário. Portanto, fizeram-se as coisas em termos desta mistura. Hoje não tenho quaisquer dúvidas que o BE não pode ser radical trotskista, que o PCP está agarrado àquela opção que teve por ser o baluarte da Constituição; ora bem, todos esses fenómenos levam a que não haja divisões a não ser em casos e casinhos. É o altar, não é o facto de o Papa cá vir; já não há jacobinos radicais anticatólicos, já não há anticomunistas primários. Tudo isto são fatores que, a meu ver, não são maus. Até digo mais, ainda há pouco disse que o Chega é um dos mais moderados da extrema-direita europeia, ele próprio tem de fazer este jogo para ter os 15%, senão não cresce. Aliás, já está a jogar argumentativamente cada vez mais naquele "não digam que vou ser moderado, isso é mentira, continuo a ser radical", mas depois fez um congresso extremamente moderado para obedecer a uma decisão do Tribunal Constitucional. Este tipo de democracia pluralista vai moendo, amarga aparentemente, mas depois habituamo-nos àquele sabor e não gostamos disso porque a democracia foi a arte da conversa. O que aprendi nos livros e observando a realidade portuguesa, muitas vezes comprometido, foi que estes grandes pais da democracia conquistavam o eleitorado num debate televisivo a quatro, tinham de ter conversa uns para os outros e ganhou o que melhor sabia conversar. Portanto, a democracia em Portugal foi a arte da conversa e continua a ser a arte da conversa. Convencer o adversário que não é inimigo, através de argumentos que são os lugares-comuns, que existem aqui, como o patriotismo, a Constituição, por exemplo. Os constituintes de 1976 ainda continuam a ter o prestígio de terem sido os arquitetos deste sistema, o que tem falhado é o PS e o PSD, que se enredaram em casos e casinhos, tipo Sócrates.

"O erro de Costa foi não ter informação a nível das democracias locais; deixou agigantar casos que podia ter ultrapassado se tivesse a informação."

A propósito dos casos e casinhos, o mecanismo para o recrutamento dos governantes, o tal questionário, é uma solução adequada?
Claro que não, até o Costa na última entrevista não deu grande importância a isso. O que ele queria era outra coisa que não foi possível, que era meter a Procuradoria-Geral da República, e julgo que outra instância desse género, numa espécie de pré-análise - talvez os serviços de informação. Ele queria que fizessem uma ficha para ele não poder errar muito. Isto foi uma saída airosa de uma desconversa com o Marcelo que, aliás, ouvi a elogiar a via do questionário, mas depois fez aquelas alterações bruscas e ficou o Costa com o questionário - e por isso é que ainda não arranjou secretário de Estado da Agricultura. Foram rasteiras que depois se propagaram, agora já vai nos diretores-gerais. Ou seja, é um erro e ele também sempre disse que aquilo era secreto e era só para ele. Mas então se é só para ele, podia tê-los sujeitado a um exame prévio naquela manhã, porque também não é assim que se descobre uma coisa que é psicológica. Nem tudo o que é lícito é honesto, não digo em latim, se não o senhor Ricardo Araújo Pereira goza comigo, mas nem tudo o que é lícito é honesto e o honesto é uma categoria que nem é jurídica nem é política e nem é da minha moral individual, é uma coisa que é da moral social que nasce por consenso. E do que Portugal precisa, outra vez, é de categorias claras em termos de moral social. Alguns chamam-lhe ética republicana - curiosamente a ética republicana foi inventada pelo Kant, um monárquico.

"É preciso recuperar os bons exemplos de ministros."

Mas a ética republicana em Portugal é uma figura retórica ou estamos a tomar a parte pelo todo?
Quando comecei nestas coisas da política era adjunto do sexto governo provisório e tinha um ministro que era o Magalhães Mota e vários ministros e havia uma ética republicana porque estávamos todos controlados. Os da direita estavam controlados pela esquerda e os da esquerda pelos da direita - mas houve um grande consenso. E esse consenso, que acho que não acabou, está a parecer ultrapassado e isso é fundamental, mas é fundamental que isso se faça pelo consenso e termos aquilo que um pai diz a um filho, que não lê o código de conduta ou estabelece um questionário ao filho. Boa pessoa é aquela que obedece a um bom exemplo e o que é preciso recuperar são os bons exemplos de ministro. Lembro-me, penso que no governo de Mário Soares, de um ministro que tinha um filho que teve um problema de banditagem e ele pediu a demissão, mesmo não tendo nada a ver com ele. Nessa altura havia categorias fortes de ética social e julgo que ainda há, mas deixem-se de discursos hipócritas nos templos da democracia sobre a matéria e pratiquem. A maioria dos portugueses quer bons exemplos e que saiamos daquele lugar terrível onde estamos há não sei quantos anos, que é sermos 33.º nos índices de perceção da concorrência por falha do Estado em avançar com legislação que podia ser facilmente aplicável. É feio já estar Cabo Verde em 35.º - e qualquer dia somos ultrapassados, por inação ou por medo do Estado quanto à introdução de mecanismos que não são questionários, mas formas mais amplas de contacto com a sociedade civil. Aliás, há entidades que já velam por isto e que dariam bom conselho ao primeiro-ministro sobre o que é preciso alterar em certos mecanismos. Até porque, neste momento, já sabemos que é teimosia das máquinas. Tal como disse, é preciso alguém que pense fora da caixa, é preciso startups e até para a corrupção devia haver umas startups que alterassem a perceção. Isto é mais um problema de perceção do que de prática, mas é terrível sermos tão atrasados em termos de perceção da concorrência. Podíamos pelo menos subir do 33.º para o 25.º, ainda que levasse uns anos, mas subíamos.

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