Chega encerra debate de urgência com apelo à renúncia de Marcelo
ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

Chega encerra debate de urgência com apelo à renúncia de Marcelo

Iniciativa do partido de André Ventura, motivada pelas declarações do Presidente da República quanto ao pagamento de reparações às ex-colónias, mereceu ataques de todos os outros partidos. Incluindo os que não concordam com Marcelo.
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O debate de urgência requerido pelo Chega devido às declarações de Marcelo Rebelo de Sousa sobre o pagamento de reparações financeiras às ex-colónias portuguesas terminou com um apelo à renúncia do Presidente da República, que o partido liderado por Andre Ventura pretende ver responder pelo crime de traição à pátria.

“Se o Presidente da República não se sentir capaz de representar os interesses nacionais é hora de considerar a sua renúncia”, disse o deputado Rui Paulo Sousa, a quem coube encerrar um debate parlamentar iniciado pelo líder do Chega, André Ventura, que minutos antes acusara os restantes deputados da Assembleia da República de não quererem debater nada do que Marcelo Rebelo de Sousa diz e de serem “verdadeiros traidores à nossa História”.

Num debate de urgência contestado por todos os outros partidos, incluindo os que demonstraram ser mais críticos das declarações de Marcelo Rebelo de Sousa, como a Iniciativa Liberal, o CDS-PP e o PCP, o Chega foi acusado de fomentar o ódio, usar argumentos jurídicos falsos, tendo o seu líder sido comparado negativamente com Miguel de Vasconcelos, que governou Portugal na fase final da união dinástica com Espanha, e foi assassinado aquando da restauração da independência nacional.

Tal aconteceu, num dos momentos mais tensos de um debate tumultuoso - com constantes trocas de reparos entre os dois extremos do hemiciclo -, durante a intervenção do coordenador do Livre, Rui Tavares, que acusou a bancada do Chega de “total desrespeito e ignorância pela História”, fazendo notar que Miguel de Vasconcelos nasceu quando a união dinástica já vigorava para recuperar o episódio em que André Ventura se reuniu em Madrid com Santiago Abascal, líder do Vox, logo após o partido espanhol divulgar um cartaz em que as fronteiras de Espanha coincidiam com a Península Ibérica. “Entre Miguel de Vasconcelos e alguém que foi a Madrid prestar vassalagem a um dirigente político que apagou o nosso país do mapa, diga qual é mais traidor à pátria”, desafiou, vaticinando que “se um dia houver um ministro do Chega” tal pessoa não se importará de entregar a uma das ex-colónias “algo que estiver no Museu de Etnografia”.

O presidente do Chega arrancara o debate, que não contou com a presença do presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco (com o vice-presidente Marcos Perestrello a assumir a condução dos trabalhos), e do secretario-geral do PS, Pedro Nuno Santos, a descrever as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa como “uma traição sem paralelo à nossa História”, tal como aos ex-combatentes e aos que “voltaram sem nada e a quem o Estado Português nunca deu nada”. Mais tarde, diria claramente que, “se houvesse alguma coisa a pagar”, teriam que ser as ex-colónias a fazer pagamentos a Portugal por tudo o que foi deixado no seu território.

Sublinhando a “irresponsabilidade criminosa do Presidente da República”, o líder do Chega também rotulou de “vergonha de declaração” a defesa de devolução de obras de arte pela nova ministra da Cultura, Dalila Rodrigues. Mas voltou a Marcelo Rebelo de Sousa, apontando-lhe uma “traição profunda da nossa História”, que teve o condão de potenciar pedidos de reparações vindos do Brasil, de Angola e de São Tomé e Príncipe. 

Acusações de insanidade e histeria

A retórica do Chega esteve longe de obter qualquer apoio dos outros partidos que discordam das reparações financeiras e da intervenção do Presidente da República em todo o processo. Para o líder parlamentar do CDS-PP, Paulo Núncio, está em causa “uma interpretação errada do passado, a partir de critérios do presente”, mas isso não o transforma num criminoso, como se pretende na iniciativa “politicamente insana e juridicamente ignorante” do partido liderado por André Ventura.

Também o presidente da Iniciativa Liberal, Rui Rocha, começou a sua intervenção por dizer que os liberais recusam “todas as visões revisionistas e de culpa coletiva”, voltando a criticar as declarações “manifestamente infelizes” de Marcelo, mas disse que o Chega teve “uma reação histérica” ao promover uma ação criminal que poderia implicar uma pena de 10 a 20 anos de prisão se o Presidente da República acabasse por ser condenado por traição à pátria, no que disse ser “um disparate que é ainda maior quando o deputado André Ventura é jurista”. E desafiou-o a revelar os quatro juristas que alega defenderem que o apelo às reparações configura esse crime. “Ou estão envergonhados ou não existem”, disse Rocha, perguntando ironicamente “se essas vozes estão aqui connosco”.

Rui Rocha também trouxe a campanha para as eleições europeias ao debate, apontando ao Chega uma “reação hipócrita” ao tema das reparações, por ser um partido “especialista em culpa coletiva” que aponta a determinadas minorias étnicas, e por ter como cabeça de lista ao Parlamento Europeu Tânger Corrêa, que o líder da IL sublinhou considerar “o criminoso de guerra Milosevic boa pessoa” e defender teorias da conspiração sobre o 11 de setembro de 2001, nomeadamente a possibilidade de os judeus que trabalhavam nas Torres Gémeas terem sido avisados da iminência do atentado.

Igualmente crítico de uma intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa que “não fez sentido”, o deputado comunista António Filipe defendeu que “a reparação histórica que se impõe é a da cooperação”. Mas não se esqueceu de condenar o que disse serem “manifestações de chauvinismo” e tentativas de “branqueamento do colonialismo, da escravatura e do fascismo” por parte do Chega. 

Mortágua com a mão no peito

Antes, coubera a Joana Mortágua intervir no debate pela bancada parlamentar do Bloco de Esquerda, defendendo que a “acusação absurda de traição à pátria faz de Portugal uma anedota” e desvalorizando a iniciativa do Chega. “Não vamos perder tempo com a falta de sentido de ridículo da extrema-direita”, disse a deputada bloquista, numa intervenção que foi logo de seguida qualificada de “uma das mais infames que já houve nesta casa” por André Ventura, levando Mortágua a bater repetidamente com a mão no peito em sinal de orgulho. No mesmo registo, a deputada única do PAN, Inês de Sousa Real, disse que a iniciativa do Chega “é uma afronta à liberdade de expressão e demonstra uma perigosa tendência autocrática que deve deixar todos os verdadeiros democratas em estado de alerta”.

Pelos dois maiores grupos parlamentares houve intervenções que coincidiram no ataque a André Ventura. Pelo PSD, a deputada Regina Bastos começou por defender que “a liberdade de expressão é o oxigénio da democracia”, pelo que os democratas “ouvem e toleram os exacerbamentos nacionalistas”, referindo que a causa do “tumulto mediático” foi o aproveitamento político das palavras de Marcelo. E,apesar de reconhecer que “é legítimo discordar-se das declarações do Presidente da República”, salientou que “a nossa História é um património de feitos brilhantes e de acontecimentos sombrios também”, pelo que “para evoluirmos como sociedade é preciso deixarmos o passado em paz”.

Pelo PS, Pedro Delgado Alves admitiu que “pelo contexto e informalidade” com que foram proferidas, as declarações presidenciais acerca de reparações às ex-colónias podem ser “merecedoras de reparo”, mas não se vislumbra o crime de traição à pátria, por si resumido a “mais uma busca desesperada de atenção” por parte do Chega. E, respondendo a críticas de Ventura a quem pretende ver a pátria de joelhos, admitiu que “se as patroas se ajoelhassem mais vezes, com humildade, haveria mais paz no mundo”, referindo-se a precedentes como o pedido de perdão do então chanceler alemão Helmut Kohl pelos campos de extermínio nazis.

O Governo esteve representado, além do ministro dos Assuntos Parlamentares, Pedro Duarte, pelo ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel. Garantindo que os governos portugueses “não cultivam ou instigam o ressentimento, venha de onde vier”, Rangel assegurou que não está em curso “nenhum processo de ação específica para reparar outros Estados, mas também disse que os gestos de reconciliação não são unilaterais. Para o demonstrar mencionou a autorização pelo Governo de Angola da reabilitação de sepultura de militares portugueses num cemitério de Luanda, bem como a construção de um memorial. E, no âmbito da cooperação, na qual Portugal emprega 1,2 mil milhões de euros, numa “relação justa e sã”, anunciou que o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Ministério da Educação estão a desenvolver ler programas de investigação e cátedras em tétum e em crioulo nas faculdades de Letras portuguesas.

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