André Freire: "Aprendemos com a maioria absoluta que a maioria absoluta é uma coisa má"
Há alguns legados muito positivos [que nascem da governação de António Costa nestes últimos oito anos]", explicou ao DN André Freire, professor catedrático em Ciência Política no ISCTE, adiantando que um deles "é o entendimento com as esquerdas, que ao contrário do que disse o doutor Francisco Assis [presidente do Conselho Económico e Social], não é uma coisa que tiraram da cartola só a seguir às eleições de 2015, porque uma coisa que disse [o primeiro-ministro] durante a campanha é que é preciso acabar com o dogma dos partidos do arco da governação".
Nada previa que no passado dia 7 de novembro o primeiro-ministro português pediria a sua demissão. Na altura, António Costa justificou a decisão, que mergulharia o país numa crise política, com o facto de o seu nome surgir num comunicado da Procuradoria-Geral da República, associando-o a uma investigação do Supremo Tribunal de Justiça por alegadas ligações a uma teia de negócios relacionados com lítio, hidrogénio e sobre o centro de dados de Sines. Três dias depois, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, anunciaria a dissolução do Parlamento para depois da votação do Orçamento do Estado de 2024. Com esta escolha, veio também a convocação de eleições legislativas antecipadas, para dia 10 de março do próximo ano.
Com a queda do Governo muito longe do horizonte, em outubro, André Freire lançou o livro que analisa os oito anos em que António Costa esteve ao leme. Da Geringonça à maioria absoluta - A situação política em Portugal e na Europa chegou aos escaparates de forma providencial. É uma compilação de textos publicados em várias plataformas, num tom que pode ir do académico ao inconformado, entre 2017 e 2023, embora o conteúdo desta prosa vá para além deste escopo temporal. É um conjunto de crónicas publicadas no Diário de Notícias, no Jornal de Letras, no Público, na revista Seara Nova e no blogue Vaca Voadora que esmiúçam os Governos do PS. É em torno deles que decorre esta conversa com o professor de Ciência Política.
António Costa chegou ao poder em 2015, com uma solução governativa inédita em Portugal: uma coligação pós-eleitoral com o Bloco de Esquerda (BE), PCP e PEV. Nessas eleições, o PSD, em coligação com o CDS, teve a maior concentração de votos, elegendo um total de 102 deputados. O PS, com 86 deputados, juntou-se aos 19 do BE e aos 17 da CDU (Coligação Democrática Unitária, entre o PCP e o PEV), o que deu origem a uma maioria parlamentar que o antigo dirigente centrista Paulo Portas classificou como uma geringonça, dando a ideia de que seria uma máquina improvável e com um desempenho questionável. O nome pegou.
"O António Barreto [governante socialista no I Governo Constitucional, liderado por Mário Soares]foi para a televisão dizer que nunca tinha havido comunistas em Governos de democracias da Europa ocidental. É mentira. É em 81. As eleições da alternância são quando Miterrand chega ao poder [em França] e o PS ganha as legislativas e há uma coligação - aquilo também não vai durar muito, porque era uma coisa em contraciclo. Era a ascensão do neoliberalismo e eles têm políticas de estímulo à procura e nacionalização de bancos. Mas entraram os comunistas - os comunistas tinham ministros -, e também havia na Finlândia e na Islândia", contextualiza André Freire.
"Antes de prosseguir, esclareça-se (à laia de declaração de interesses) que tenho sido um apoiante desta solução política, não apenas desde a primeira hora", escreve o politólogo no livro, referindo-se à geringonça.
Agora, em declarações ao DN, acrescenta: "Eu acho que as alianças à esquerda, tal como as alianças à direita, talvez tenham vindo para ficar. Aquela maioria absoluta surpreendeu-nos a todos, ninguém esperava, porque a maioria absoluta não tem boa imagem em Portugal", considera, destacando "que se há alguma coisa que nós aprendemos com a maioria absoluta [do PS, que resultou das eleições legislativas de 2022] é que a maioria absoluta é uma coisa má".
"Sou um apoiante de coligações, à esquerda e à direita", insiste André Freire. "Aliás, o Partido Socialista governou mais à esquerda naquele período [entre 2015 e 2019]. Depois, é um Governo muito ao centro. A direita também está muito recuada, agora, com esta governação, pois podia querer um bocadinho mais de descida de impostos, queria resolver a questão dos professores. Mas, no resto, não fala nas desigualdades entre capital e trabalho do ponto de vista da taxação, não refere quem é que paga a fatura das contas certas. Isso é um tema, não sei se é um tema de esquerda. Eu acho que é um tema de igualdade", destaca.
Em 2019, depois de uma governação apoiada em acordos escritos (promovidos pelo Presidente da República da altura, Aníbal Cavaco Silva, que os exigiu para que a geringonça fosse promulgada) com o BE e com a CDU, o PS é o partido mais votado nas eleições legislativas, o que lhe granjeia 108 deputados. Não chegam para uma maioria absoluta, mas permitem uma independência face à esquerda.
Citaçãocitacao"Também não faço disso uma tragédia. Se o Chega entrar na esfera do Governo, entrou. Não é uma tragédia", assume André Freire.
Em 2021, quando o Orçamento do Estado para o ano seguinte é discutido e votado, BE e PCP votam contra, o que deixa o PS sozinho e incapaz de o fazer passar no Parlamento. Marcelo Rebelo de Sousa, pela primeira vez desde que é Presidente da República, usa a dissolução da Assembleia da República e convoca eleições legislativas para 30 de janeiro de 2022, de onde o PS acabaria por sair com uma maioria absoluta.
"O ganho que nós podemos ter de uma governação mais diferenciada à esquerda e à direita é com a política de alianças. Portanto, eu acho que isso é o desejável. Agora, esta instabilidade que se criou com a crise de 2021 para o orçamento de 2022 é uma crise artificial", retoma o cientista político, tocando num ponto fundamental para explicar a desagregação da geringonça.
Depois das perdas do PCP nas autárquicas de 2017 e nas europeias de 2019, os comunistas não tinham grande interesse em voltar a fazer acordos escritos com o PS, explicou André Freire ao DN. Para além disto, os socialistas "não quiseram fazer uma aliança com o Bloco de Esquerda", relembra.
"A outra narrativa é que o caderno de encargos era muito elevado. Era as leis do trabalho - que o Partido Socialista, aliás, quando era oposição nos tempos da troika, defendia -, recuperar as indemnizações por despedimento dos tempos antes da troika, e era a questão dos contratos coletivos de trabalho. E era também a questão da presença no setor público, dos serviços públicos. Não era nada que não fosse exequível, se fosse necessário. Por que é que o Partido Socialista não quis? Porque assim ficou livre para andar a fazer alianças à esquerda e à direita, e porque sabia que só podia ser derrubado se a esquerda e a direita votassem juntas [na chamada coligação negativa]. E votaram, no Orçamento para 2022", lembra o politólogo.
Com a saída de Costa, o cargo de secretário-geral do PS é disputado entre o antigo ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, e o atual ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro. Todos os futuros estão em aberto, mas agora com novas forças políticas em cena e várias possibilidades de coligações e com potenciais novas geringonças a materializarem-se.
Se Pedro Nuno Santos representa um PS mais à esquerda e com a possibilidade de um entendimento muito semelhante ao que aconteceu em 2015, José Luís Carneiro abre as portas a um centro político dentro do PS, que não é alérgico a entendimentos com o PSD.
Questionado sobre se Marcelo Rebelo de Sousa daria o seu aval a uma nova geringonça, seja de esquerda ou de direita, André Freire não hesita na resposta. "Eu acho que ele vai viabilizar, porque quer uma solução que dê o mínimo de estabilidade. Claro que aqui há vários cenários, mas se houver uma maioria de direitas no Parlamento, preparem-se porque o Chega vai entrar. Não vejo outra alternativa", avisa o politólogo.
"Vamos supor que há maioria de direitas e o PSD ganha as eleições. Então, vamos ter o PSD a liderar um Governo que depois é suportado no Parlamento pelo PS. Isso é um Governo frágil, a prazo. E, além do mais, depois já não há alternância. É uma alternância parcial. Fica o PSD no Governo e o PS fica a ser o partido de suporte. Isso é uma coisa a prazo. Acho que o professor Marcelo não vai querer isso. Portanto, se houver uma maioria de direita com o PSD a ganhar, provavelmente, eu acho que o Chega vai... Se for aritmeticamente necessário. Eu não vejo outra solução", analisa.
E se isto acontecer, apesar de admitir que "o Chega é uma oposição desleal", por usar "todos os meios para atingir os seus fins" enquanto "quebra as regras da civilidade democrática no debate" e apresenta propostas "que roçam os limites do constitucionalismo democrático", André Freire também acredita que "integrá-lo, será uma normalização". "Mas a normalização já começou nos Açores. Não vai ser a primeira vez", lembra.
"Sinceramente não faço disso um drama. Também há um aspeto positivo na integração destes partidos na esfera. Eu acho que no Governo parece um passo demasiado grande, mas numa maioria política pode ser uma solução middle of the road. É que a integração dos partidos radicais, à esquerda e à direita, na esfera governativa tem um grande benefício: modera as suas posições, porque eles têm de fazer compromissos. Não vai um grupo que tem um terço do maior dizer o que é que vão ser as grandes linhas da governação. Por isso, eu acho que isso é um bocado incontornável. E também não faço disso uma tragédia. Se o Chega entrar na esfera do Governo, entrou. Não é uma tragédia", conclui.
André Freire
Da Geringonça à maioria absoluta
Edição Gato-Bravo
273 páginas
vitor.cordeiro@dn.pt