André Freire: "Governo não teve estado de graça e está em erosão"

O cientista político André Freire afirma que o descontentamento com a governação extravasa os sucessivos casos que têm abalado o Executivo. A má gestão da crise económica, diz, ajuda ao desgaste. E considera que Marcelo não tem sido o contrapeso necessário à maioria absoluta.

Este governo está a sofrer um desgaste fora do normal para início de mandato e ainda para mais de maioria absoluta? Os sucessivos casos causam danos?
Este governo não está em funções desde janeiro de 2022. Está em funções desde o final de 2015. É certo que a composição do governo mudou, o apoio parlamentar também mudou, mas o partido que está no governo é o mesmo. Mesmo quando esteve nas alianças com a esquerda radical, 2015/2019, com alianças escritas formais, era só um partido que estava no governo e era este. Por isso, este governo entra em funções e não tem lua de mel, porque está no seu sétimo ano. É preciso dizer isto para perceber porque não há grande indulgência com o governo. E não é para dizer que os casos não são um problema. Há também um problema muito sério do ponto de vista da gestão macroeconómica que ajuda a esse desgaste.

A gestão da crise está a correr mal também?
O governo pode vir dizer as coisas que quiser sobre a gestão da dívida e do défice, mas a verdade é que a vida das pessoas se está a deteriorar e os apoios são muito reduzidos para o nível de deterioração. A crise não é responsabilidade do governo, mas é sua responsabilidade como gere os instrumentos compensatórios da inflação. E isso está a gerar também muito descontentamento. Depois os casos, alguns deles vêm do contraste da maneira bastante austera como são combatidos os efeitos da inflação na vida das pessoas e o que se passa no governo. Há um apoizinho aqui e acolá, com penalização das classes médias e médias altas assalariadas, porque em sede de orçamento o que está proposto é a descida de IRC - ou seja, há uma situação macroeconómica muito difícil, cujas causas são externas, mas a responsabilidade de a combater é do governo. E a política tem sido apoiar os grupos socioeconómicos mais desfavorecidos e mesmo, por exemplo, a descida do IVA da luz é só a taxa de estava a 13%. São coisas avulso, miudinhas, que atingem uma fraçãozita aqui e outra acolá. Isto gera muito descontentamento entre as pessoas. As pessoas estão em regime de austeridade, a sofrer bastante com os cortes, e perante isto esperava-se alguma contenção ao nível dos gabinetes, mas num dos gabinetes contrata-se uma criança com 21 anos, que não tem experiência de nada - ninguém tem experiência de nada aos 21 anos -, com um ordenado de especialista. A que se soma o caso do Sérgio Figueiredo como especialista de comunicação, que ia ganhar um ordenado de ministro em part-time. Isto gera um grande mal estar.

O que atinge a imagem do governo é mais vastos do que o que deriva dos casos?
Há uma série de gestões problemáticas, num contexto de austeridade, com cortes que não são nominais mas reais - no tempo da troika também não cortaram o ordenado a toda a gente -, e ao se estar a fazer contratações milionárias é óbvio que gera um grande descontentamento entre as pessoas. Não há baixa de impostos em sede de IRS, mas há em IRC. Ensinava aos meus alunos que uma das ideias-chave do socialismo é a redistribuição entre capital e trabalho e, no fundo, é isso que diz o dr. António Costa quando fala em reequilibrar o peso dos salários na riqueza nacional. Mas ele quer fazer isto para o setor privado pondo os impostos dos assalariados a pagar esse aumento através de reduções do IRC. Uma coisa bizantina. O que está a haver é uma redistribuição da riqueza das classes médias, que estão cada vez mais a convergir com as classes mais baixas - veja-se o que acontece com os assistentes técnicos que qualquer dia estão colados ao salário mínimo. Somos todos pobrezinhos mas honrados, é essa a ideia. Depois há uma grande incoerência, a conversa sobre a valorização salarial é absolutamente contrária ao que está a ser feito, a não ser para os grupos mais desfavorecidos. Já escrevi um artigo sobre isso, com o título "a proletarização das classes médias". Porque é que os médicos estão a sair do SNS? Porque lhes pagam mal e no privado pagam melhor e todos fariam a mesma coisa se tivessem alternativa. Isto está a desmotivar os servidores públicos e as classes médias assalariadas. E depois vê-se estas coisas escandalosas de se viver nos gabinetes à tripa-forra. Há também uma falta de coordenação política, basta lembrar o bullying sobre o ministro da Economia. O caso Miguel Alves é outra questão - aliás, ele foi meu aluno e é uma pessoa muito inteligente - e o primeiro-ministro levou tempo demais a reagir porque era muito danoso para o governo.

"O Presidente tem estado uns furos abaixo do que deveria estar como contrapeso de uma maioria absoluta que se está a comportar com uma certa arrogância e autismo."

Este último caso das acusações do ex-governador do Banco de Portugal sobre alegadas interferências do primeiro-ministro relacionadas com o processo de Isabel dos Santos é ainda mais danoso para o governo?
Também também impacto e a oposição explora essas coisas. Agora é uma coincidência o livro [O Governador, de Luís Rosa] sair logo após uma sucessão de casos. O ex-governador Carlos Costa, que teve uma controvérsia forte com o PS e com a esquerda pela forma como geriu o dossier da falência do BES e isso é conhecido. Não sei se ele tem provas para comprovar essas conversas privadas com o primeiro-ministro. Mas é mais uma acha para a fogueira e vai fazer mossa.

O facto do PS ter uma maioria absoluta não terá criado a habitual ilusão ao governo de que é possível fazer tudo sem consequências?
Acho isso. Entraram com aquele discurso de "vamos regenerar a ideia mal afamada da maioria absoluta e vamos negociar", mas isto não é nada disso. Francisco Louçã, no seu programa O Tabu, na SIC, exemplificava isso quando a ministra da Saúde se demitiu, com Costa a dizer "não vamos mudar de políticas, se quiserem mudar deitem o governo abaixo". Ou seja, o problema era da ministra e não das políticas, o que quer dizer que não estão disponíveis para negociar nada. A não ser com o PAN e com o Livre e nem sei porque se abstiveram no Orçamento e nem percebo enquanto cientista político quais são as contrapartidas políticas que estes dois partidos, ambos com um único deputado, terão. A maioria absoluta está transformada num poder absoluto e dá uma sensação de impunidade, um "nós é que mandamos nisto tudo". E por isso contratamos meninos com 21 anos como especialistas a ganhar quatro mil euros quando um médico especialista ganha 2700. Isto não é populismo, é a realidade. E é má gestão política dos gabinetes. António Costa não está a coordenar nada e por isso é que foi chamar Miguel Alves.

"A maioria absoluta está transformada num poder absoluto e dá uma sensação de impunidade, um "nós é que mandamos nisto tudo"."

O Presidente da República lembrou no discurso do 5 de outubro que tem o poder de dissolução. É um aviso ao governo, apesar da maioria absoluta, para um agravar da situação política? Apesar de ter saído em defesa do primeiro-ministro no caso do ex-governador do BdP...
A dissolução é uma coisa que está sempre no horizonte, porque esse é o poder - tirando os últimos seis meses do seu mandato e os primeiros seis do Parlamento - em que o Presidente é livre. Ele tem de tirar o estado da opinião e o estado da opinião é que o PS está a cair nas sondagens. Agora o que tenho visto do Presidente, e até tenho ficado espantado, e com o respeito, consideração e admiração pelo professor Marcelo Rebelo de Sousa, é que se tem anulado um pouco. Ora o Presidente tem de fazer de contrapeso da maioria, ainda por cima absoluta, o que também o faz perder poder político. O Presidente tem influência e o que tenho constatado é o Presidente a fazer, como alguém já disse, de explicador do Governo. O Presidente tem estado uns furos abaixo do que deveria estar, como contrapeso de uma maioria absoluta que se está a comportar com uma certa arrogância e autismo. O Presidente tinha de se distanciar disto e ser um contrapeso. Embora formalmente não tenha grande poder perante uma maioria absoluta - o veto pode ser sempre superado através da maioria no Parlamento -, tem influência no sistema político. E, ao contrário, parece uma câmara de eco várias vezes. Agora a ideia da dissolução, a bomba atómica, será usada se o Presidente vir que há uma grande degeneração da situação política e houver no horizonte a hipótese de uma outra maioria. O maior drama seria dissolver o Parlamento e a mesma maioria repetir-se. Mas neste contexto o governo não teve estado de graça e está em erosão e é isso que dizem as sondagens.

paulasa@dn.pt

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG