Ana Miguel dos Santos: “Temos de deixar de olhar para a programação militar apenas na perspetiva da Defesa”
No pouco tempo que esteve como eurodeputada, ainda conseguiu apresentar a sua visão para a defesa europeia - Horizontes Seguros. O que deve definir a defesa europeia num cenário pós guerra?
Diria que a partir de agora temos que deixar de falar em cenários pós guerra. Vivemos no século XXI, há ameaças de origens diferentes, mais bélicas, como aquelas que estamos a viver, sobretudo na Europa, neste caso na Ucrânia, e ameaças menos bélicas. Não podemos esquecer as ameaças digitais, da inteligência artificial. Todo este novo mundo, aliás, o próprio covid, a pandemia, são novas ameaças que exigem novas respostas cada vez mais globais. Este relatório que pretendi apresentar na Europa, foi porque acho que a Europa enfrenta agora o grande desafio de investir numa ideia de defesa conjunta, a defesa da concretização de uma defesa europeia. E esse é o maior desafio. Desafio porque estamos a falar de várias sensibilidades, várias culturas, várias histórias de segurança e que se refletem na forma como se aborda o tema da segurança e até da própria guerra na Ucrânia.
Isso é a espinha dorsal do projeto europeu...
Sem dúvida.
A Europa foi feita para, sem dúvida, manter a paz…
Sem dúvida. A grande questão é que quando nós falamos em pilar Defesa, essa é a ultima ratio. Fala-se muito do Exército Europeu de Defesa. Não é o Exército comum. Eu acho que mais vale nós não falarmos disso, porque isso não vai acontecer. É muito difícil que isso aconteça.
Não acredita num exército europeu?
Não, não acredito. E julgo que os alemães também não acreditam nisso. Falam porque têm que falar, mas lá no fundo percebem que não é possível. Porquê? É a ultima ratio de soberania. E os Estados, neste momento, não estão disponíveis para abdicar dessa ultima ratio por completo. Aquilo que acho que vale a pena falarmos não é de ficção, mas de realidades, de cenários palpáveis. E o que é que podemos ter? Podemos ter uma força europeia conjunta, à semelhança um pouco daquilo que acontece na NATO. Nós, na NATO, não temos um exército da NATO. Nós temos uma força conjunta que reúne as capacidades dos vários países aliados.
Isso não é uma duplicação?
Isso vai existir. Essa questão da duplicação não é nova. Aliás, essa é a grande questão. Por isso é que se fala em autonomia estratégica. Recuemos um bocadinho só para só para perceber o cenário da pandemia. Obrigou a que percebêssemos a importância da autonomia estratégica, na medida em que os países tiveram que reagir com o bloqueio das fronteiras e responder às suas populações, tendo em conta a característica da proximidade. Naturalmente, um exército comum poderia dificultar muito mais esse tipo de resposta. Mas há aqui uma questão que ainda vai mais longe e que impossibilita, que é a questão da confiança e da relação. Temos uma indústria e umas forças armadas francesas, por exemplo, só para lembrar este eixo franco-germânico, e eu não estou a ver, e julgo que nenhum dos meus colegas no Parlamento Europeu ou alguém que acompanha estas matérias vejam, como plausível um cenário exequível nos próximos tempos de cada um abdicar da sua esfera de influência e dar esse poder à Alemanha. Portanto, isso não vai acontecer nos próximos tempos. Mas o que nós temos que ter é essa autonomia estratégica. Eu sou uma profunda defensora da NATO…
Gerardo Santos / Global Imagens
Nós Portugal ou nós União Europeia?
Nós UE e Portugal também não, naturalmente. O princípio da autonomia estratégica tem de se aplicar nas suas várias dimensões, na europeia e também ao nível dos países. Porque se não caminhamos para essa união política, se não falamos de um país, falamos de uma união de países e continuamos a falar. Temos que falar não no exército comum europeu, mas numa força europeia conjunta. E essa força europeia conjunta tem de ser capaz de responder às ameaças, que vêm de muitas fontes. E não são as fontes mais, óbvias. Lembro a pandemia, por exemplo. Eu apanhei covid, provavelmente, de algum amigo. Ou seja as ameaças não vêm sempre de fontes ditas inimigas...
Não vêm sempre de um tanque, nem de um avião, nem de um navio...
Não. Vêm também muitas delas da própria consequência da evolução humana, não é? Portanto, também quero dizer que o conceito de segurança e de defesa, ou melhor, o conceito de segurança, é um conceito multidimensional. Não podemos continuar a acantonar a defesa e a segurança, em segurança só interna ou externa. Porque a ameaça cada vez mais multi obriga a uma resposta multidisciplinar e está entrelaçada. Não conseguimos dissociar uma coisa da outra e, portanto, temos que abrir um pouco os olhos para isso.
Voltando um pouco à duplicação... Quando se fala numa força europeia conjunta face à NATO, é alguma coisa que pode ter de ser reforçada num cenário de Donald Trump voltar a ser presidente dos Estados Unidos? O que é que antevê para a NATO em relação à política comum de defesa?
A questão da duplicação só existirá quando nós tivermos efetivamente um investimento na Europa. E o que nós vemos é que houve um desinvestimento. Portanto, até chegarmos a uma questão de duplicação, ainda temos um longo caminho a percorrer, porque essa era a grande questão de que se falava quando Trump era presidente. Macron chegou a vaticinar o a morte cerebral da NATO. Isso até jogou contra ele próprio, não é? Porque se havia algum país que estava a investir verdadeiramente em defesa e que investe, são os Estados Unidos e, portanto, o que os Estados Unidos estão a dizer é façam a vossa parte. O que Trump dizia - e não sou de todo uma trumpista - era: ‘vocês proclamam, vocês prometem este investimento, mas não estão a cumprir esse investimento’. Trump apelava a um reforço de investimento na NATO. E é um problema que não se nota apenas na NATO. No próprio apoio à Ucrânia. No Parlamento Europeu, invoquei isso a (Joseph) Borrell na altura, e vários eurodeputados fizeram isso. Não se entende o tempo e a dificuldade que vai entre aquilo que é anunciado e aquilo é o momento da concretização.
E a forma como é concretizado…
A forma como é concretizado ainda pior. Portanto, e o tempo é algo que quando se fala de segurança e defesa, é essencial, é o ativo mais importante. Este é o grande o dilema do século XXI das democracias. É exatamente o uso da força e o uso da defesa. Porque, como é evidente, nós vemos isso à nossa dimensão. Temos os partidos mais à esquerda a dizer que são pela paz. Mas eu não ouvi ainda ninguém dizer que é a favor da guerra. Nem os mais extremistas, nem os mais radicais de direita. O que temos é saber como é que vamos garantir a paz. Esse é que é o desafio.
Nem que seja através da guerra?
Há tantas frases sobre isso, não é? Se queres a paz, prepara-te para a guerra. O problema é que isto tem a ver com a defesa. Isto tem a ver com a nossa legítima defesa. No Código Penal, um dos princípios que existem há tantos anos é o da legítima defesa. No fundo, legitima um acto, a utilização de meios violentos, dentro de certas regras. Só que isto é tudo muito difícil, no concreto, de pesar.
O sentido da pergunta era mais saber se pode haver aqui uma intenção de Trump de rasgar a presença dos Estados Unidos na NATO?
Não, não vai conseguir. Ele até pode tentar, mas a máquina americana já está muito oleada. É a própria indústria americana...
Há tanta coisa que não podia acontecer nos Estados Unidos e depois a realidade…
Eu acho que quando chega a questão do armamento, o lobby é fortíssimo. Vamos lá assumir isto. Os Estados Unidos são o maior exportador de armamento. Portanto, eu diria até de uma forma menos lírica que isso não vai acontecer. O que Trump faz, e isso é muito da sua personalidade, é ameaçar. Quer dizer, ele é muito impositivo na forma como o faz. Quando fazemos uma análise estratégica e política, e é isso que está a acontecer na Europa, e sendo eu uma profunda defensora da Aliança Atlântica, nós temos que ser pragmáticos e olhar para a nossa geografia. Não podemos abandonar a Europa, a Europa será o nosso principal defensor. Sendo certo que Portugal ainda beneficia de estar numa linha de proximidade com os Estados Unidos e de defesa dos Estados Unidos e, portanto, nós estamos confortavelmente aqui no nosso cantinho à beira mar plantado. Mas, sem dúvida, não tenho essa ideia ou essa perceção tão dramática relativamente à NATO. Provavelmente terei mais relativamente às Nações Unidas. Acho que ele vai recuperar um pouco desse discurso aproveitando aquilo que se está a passar em Israel e os ataques que são feitos à Agência das Nações Unidas. Tenho dito muitas vezes que tem de haver mais accountability relativamente a estas agências. Tem de haver mais accountability relativamente ao apoio de certas causas. Não se coloca em questão a própria causa, a natureza e a bondade de apoiar. Não é isso. É a forma como o dinheiro é gasto.
Gerardo Santos / Global Imagens
Deixe-me virar aqui para o outro lado do tabuleiro. Nesta altura nós não podemos falar numa união política verdadeiramente sólida, até pelo contexto político europeu, nomeadamente ao nível do Conselho Europeu. Acha que é a Rússia ou é a Ucrânia o principal problema europeu? Do lado da Europa, onde é que está o problema? Está no atacante ou na forma como apoiamos quem se defende?
Está nos dois. Sendo que são problemas com enquadramentos diferentes. Se nós olharmos para o ponto de vista da Rússia, a Rússia será sempre um problema enquanto continuar esta estratégia dita expansionista. E eu acho que até há ali algo que nem é bem expansionista, porque eu acho que ele tem noção, sinceramente, de que não vai conseguir conquistar tudo, os recursos não são infinitos e o que há é uma estratégia de desgaste, divisionista, de criar fricções, de romper para reinar. De acordo com aquela que é a personalidade de Putin, acho que ele se sente bem a sentir que é uma ameaça. Esta ideia de que ele é uma ameaça insufla o ego. A Ucrânia poderá ser um problema na seguinte questão…
Na história do alargamento?
Sim. A questão da Ucrânia é um desafio. E vamos ser honestos, não podemos continuar a infantilizar, a ter um discurso infantil para as pessoas. Stoltenberg, antes da cimeira da NATO em Washington, avisou que, não existindo aqui um parar da Rússia e um abdicar do território, tendo em conta que a grande questão é a territorial, se prevê, pelo menos, mais dez anos de guerra. Isto é um problema para a Europa e para os países. Vai implicar mais recursos, mais investimento bélico. Não é só investimento em recursos que garantam também a segurança ou duplo uso ou outro tipo. Isto vai ser um problema. E eu diria que esse é o grande desafio, porque ninguém põe em causa o apoio à Ucrânia, à causa da Ucrânia. Foi a narrativa que começou desde o início, de que Putin não pode ganhar esta guerra, porque isto é um sinal de violação do direito internacional, daquilo que está mais aceite do nosso lado ocidental, do lado dos países democráticos. Portanto, nessa medida, os dois podem constituir um problema, sendo certo que, no caso da Ucrânia, é um grande desafio.
Vamos passar aqui para a nossa realidade. Nesta cimeira da NATO, que referiu, o primeiro ministro português anunciou a intenção de antecipar um ano a meta dos 2% do PIB para as despesas com a defesa, que estava prevista para 2029. Esperava mais de um governo PSD?
Quando falo matérias de Defesa, acho sempre que isto não é um problema de um partido ou de outro. Acho que é um problema estrutural. Eu acho que ainda não houve ninguém com capacidade de explicar a importância do investimento na defesa. Mas isso tem a ver com um problema que tem tantos anos como a democracia. Não fizemos a tal revolução cultural de uma cultura de segurança que não temos. Continuamos em Portugal a ver as Forças Armadas como um satélite, algo que anda aqui à volta, e não como um agente verdadeiro do Estado, como uma ferramenta do Estado, um pilar, uma ferramenta que deve ser usada para prover segurança. Ainda não conseguimos fazer esse salto até do ponto de vista do poder político. Há um respeito muito grande pelas nossas Forças Armadas, o cidadão sabe que necessitamos de umas Forças Armadas, mas não consegue perceber verdadeiramente para quê. Porquê? Porque temos uma geografia que nos beneficia. Porque se perguntarem a um cidadão da Polónia ou da Estónia, ou a um arménio ou a um lituano, ele sabe bem para que é que precisa das suas Forças Armadas. Portanto, nós não fomos capazes ainda de explicar. Isto é uma questão transversal. Porque é que nós precisamos de umas Forças Armadas em tempo de paz.
E onde é que está o erro? Está na academia? Está nos políticos? Está nos próprios militares? Quem é que não está a conseguir explicar? São todos?
Acho que em primeiro lugar está nos políticos. Também às vezes, nos militares, por não conseguirem exigir que o poder político respondesse à tal questão que o general Ramalho Eanes colocou, num discurso quando era Chefe de Estado-Maior do Exército, naquele período de transição democrática, em que houve o grande decréscimo não só no orçamento, mas também, com o fim da guerra colonial, de efetivos, em que ele perguntava o que é que o país espera das Forças Armadas agora.
Mas esperava mais do PSD? Tinha feito essa pergunta há pouco.
Eu espero sempre muito. Agora, temos um desafio e não me interessa muito a questão da meta. A questão é olharmos para hoje. Eu prefiro mais olhar para aquilo que está a ser feito agora e percebermos se o 1,5% está a ser efetivamente gasto.
Qual é a sua opinião?
A minha opinião é que não. Neste momento, para efeitos de contabilidade, está a ser usada também a despesa com os antigos combatentes. Temos de alterar a Lei de Programação Militar (LPM), a forma como tratamos o património da defesa e, sobretudo, aquilo que é mais importante, não podemos falar de uma verdadeira indústria de defesa em Portugal quando ainda existe um complexo em relação à ligação entre o poder político e o sector privado. Por exemplo, veja este caso em Espanha: quando a Espanha anunciou, na visita oficial de Zelensky há umas semanas, 1000 milhões de euros de apoio à Ucrânia, a maior parte desse apoio, deste armamento, é da indústria espanhola. Portanto, em bom rigor, isto até podia ser considerada uma ajuda de Estado, não é? É usado armamento espanhol. Isto pressupõe uma relação que não existe ainda em Portugal. Quando falamos em negócios de Defesa, há uma nuvem que paira de corrupção, de coisas menos corretas. É preciso coragem para explicar que ela existiu ou existe em casos circunstanciados, mas não pode ser a regra. E temos de ter a coragem de não cedermos a isso, de darmos a volta, de reunirmos com a indústria de defesa e apoiarmos também a indústria. Ao apoiarmos a indústria de defesa portuguesa, também estamos a apoiar a indústria nacional.
Porque é que há uma maior perceção de risco de corrupção mais nas indústrias de defesa do que nos outros sectores?
Há, porque são negócios. Normalmente há uma característica que é essencial. Se nós olharmos, por exemplo, para a Saúde, o lobby é muito mais forte. Nós é que não falamos às vezes nele. Ou noutras áreas. O que há aqui são contratos, normalmente, que têm de ser classificados.
A falta de transparência…
O segredo da tecnologia da indústria, esta necessidade de segredo cria maiores dúvidas e, portanto, se não houver um poder político forte, um ministro forte que não ceda a essa tentativa de politizar este discurso, isso é que acaba por prejudicar. Porque é muito fácil, do ponto de vista político, atacar. Este é um negócio de Defesa. Portanto, eu se fosse do Bloco de Esquerda ou do PCP… eu já estava sempre à espera, quando estava no Parlamento, é que viessem dali logo as dúvidas. Ainda nem a coisa aconteceu, já temos a dúvida. Eu em 2012, e para terminar esta resposta, transpus para a Diretiva Comunitária um Código de Contratação Pública na área da Defesa e da Segurança, especificamente para acomodar estes casos. O Ministério da Defesa não usa. E porque é que não usa? Usa o Código dos Contratos Públicos, normal, porque tem medo. Porque depois acontece isto. “Ah, em caso de dúvida”... e é nisto que nós estamos. E é preciso dizer isto com honestidade. Estas dúvidas desencorajam os próprios dirigentes porque dizem “Ah, eu não quero ter problemas”. Até podem não querer. Portanto, o que é que fazem? Usam as regras normais da transparência. Ficam dúvidas no ar que não são dissipadas porque não se respeita a própria natureza daquela contratação. E isso gera desconfiança nesse sentido.
Nesse sentido, a nomeação do líder do CDS para a pasta da Defesa é uma mais valia ou acrescenta problemas no sentido de não ser o PSD o partido que lidera a coligação, a assumir esta pasta, que é uma pasta de soberania?
Foi uma opção política. Falava-se muito que o CDS, o líder do partido da coligação, poderia ficar com a Agricultura ou com a Defesa. Portanto, eu vi como uma escolha. É evidente que o CDS também tem aqui um histórico nestas matérias.
Não faz ainda uma avaliação, é isso?
Seria um pouco precoce. Em pouco mais de 100 dias de governo.
Na Defesa temos a promessa de valorização salarial, ao mesmo nível que foi feito para as forças de segurança...
Mas vamos precisar de mais.
Três ou quatro medidas que, no seu entender, seriam prioritárias neste momento para a defesa?
A tal revolução cultural da cultura de segurança. É preciso mudar o discurso.
E há coisas mais concretas?
É preciso mudarmos o discurso. Nós acabamos sempre por cair naquele discurso do é preciso a valorização salarial, é preciso mais meios, é preciso mais. Mas que meios? Antes disso, nós temos que dizer que missões queremos, dizermos especificamente nós queremos umas forças armadas a guardar a nossa costa, por exemplo. Depois é um problema que tem de ser resolvido no Conselho de Ministros. Tem que se chamar a Administração Interna, chamar a Justiça e perceber onde é que há duplicação de competências, onde é que há duplicação de meios. Veja-se o caso das lanchas da GNR. Tem que se pôr ordem na casa.
Acha que o almirante Gouveia e Melo tem razão quando diz que o mar é competência da Marinha, ponto final?
Não tenho a menor dúvida. Eu já fiz esse exercício quando alterámos a lei da Autoridade Marítima. Isto até seria ridículo. É caricato termos fronteiras que são só fronteiras mentais, de quintinhas, preconceitos que existem relativamente à questão da segurança interna, ou de que isto agora é das polícias!
A Constituição obriga também a que haja essa separação.
Não, não obriga. Essa é que é a questão. Essa foi a narrativa que durante muito tempo existiu. A Lei de Segurança Interna nº 53/2008 prevê a sua intervenção no artigo 35º. Digo isto muitas vezes. Prevê que as Forças Armadas possam agir em matéria de segurança interna. Portanto, isso é um fait divers que é importante afastar. De acordo com a Constituição, o Estado é que provê a segurança. Também o único artigo da Constituição que fala em Proteção Civil é o artigo das Forças Armadas, como uma missão das Forças Armadas, e nem por isso a Proteção Civil está debaixo da esfera das Forças Armadas. Mas não há nada que proíba. Aliás, a Constituição o que diz é em matéria de segurança interna. É a lei que define a segurança interna. Não há nada que diga não pode. Há é uma história, o contexto histórico em que a Constituição foi feita . Tem a ver com a própria negociação que se fez, em que se tirou as funções policiais das Forças Armadas no Conselho da Revolução. Mas quem provê a segurança é o Estado. O Estado é que diz quem são os agentes que devem existir e nós temos que ter menos polarização.
Não há só polarização na política. Há uma polarização em matérias de segurança das funções governativas e isto vai necessariamente jogar com aquilo que se passa também no modelo policial. Isto é quase esquizofrénico. Até no modelo de Proteção Civil. Esta estratificação horizontal não faz sentido nenhum. Já tivemos até cenas caricatas como aquela, na pandemia, entre polícias e militares. O mesmo se passa no mar. E tivemos isso com o ar. O policiamento aéreo tem que ser feito pela Força Aérea. Porquê? Porque o policiamento é feito com F-16, certo? E na altura, quando se aprovou a lei da Autoridade Aeronáutica Nacional, eu estive na defesa desse dossier e tentaram vir com argumentos. E eu pergunto se temos dinheiro para comprar mais F-16, para armar a GNR ou para armar a PSP? Porque o policiamento aéreo tem que ser feito pelas polícias. Mas onde é que isso está escrito? Portanto, temos que ser mais céleres na ação. Temos de pensar que todos estão aqui a trabalhar para o Estado e que a legitimidade de prover segurança, de ser um produtor de segurança, é do Estado. E as Forças Armadas são um agente do Estado. E é o Estado que tem, de acordo com os recursos que tem, de perceber onde é que eles devem ser empenhados e onde é que são mais úteis e mais eficazes.
Sendo que no mar a Polícia Marítima é uma polícia, um órgão de polícia criminal, apoiada pela Marinha...
Como é evidente. E não pode deixar de estar. Até por uma questão, lá está, de eficácia. Se nós já temos os recursos a tal ideia do duplo uso, isto tem que começar a existir cada vez mais.
Mas é uma guerra tremenda, como sabe.
Lá está. Por isso é que eu digo que o grande desafio é termos, no Conselho de Ministros, o senhor primeiro ministro pegar e dizer que a questão é uma questão ministerial, é uma questão transversal. Vamos olhar para os órgãos do Estado e perceber onde é que há duplicação de competências, assumir e ir em frente. Porque senão nós vamos continuar a ter cargos de direções e diretores. Isto é o país dos diretores.
Nesse debate sobre o que é que deve ser a defesa em Portugal e qual deve ser o papel da segurança e das forças de segurança, faz sentido incluir o serviço militar obrigatório ou não?
Acho que neste momento não faz muito sentido. Admito que noutros países isso aconteça porque estão com outro tipo de prioridades, até estratégicas de segurança e defesa, tendo em conta a sua proximidade com o território que está em guerra e até a sua capacidade de resposta. Acho que em Portugal esse é um discurso que não vai regressar tão cedo. É um grande problema das democracias hoje. Até porque a perceção de que cada vez mais há uma guerra permanente - nós vivemos na Guerra Fria 4.0 não é? Não vamos ter mais este período do pós-guerra ou pré-guerra. Vamos estar com esta guerra permanente, porque é a guerra da informação, aliás, da desinformação. E vai ser muito mais potenciada pela inteligência artificial, porque a capacidade de criar narrativas, de criar histórias, de influenciar a opinião pública cresceu exponencialmente. Portanto, temos que mudar a cultura de segurança. Temos de ter mais educação para a segurança e não olhar para isto com receio.
Gerardo Santos / Global Imagens
Sem isso não mobilizamos as pessoas para a necessidade de prestarem serviço militar, seja ele voluntário ou obrigatório?
É curioso, mas fiz alguma campanha na altura nas escolas e os mais novos, jovens dos 14/ 15 anos, são muito mais pragmáticos nesta história…
Pragmáticos e disponíveis?
E disponíveis.
Depois, quando veem o que é que se ganha e quais são as condições em que se trabalha, se calhar já desistem…
Esse é um problema. Um problema salarial que eu digo que se resolve. A questão do serviço militar obrigatório não vai resolver o problema das Forças Armadas em Portugal. O problema que nós temos na Defesa tem a ver com a atratividade, tem a ver com esta perceção, que eu acho que é a grande questão, sobre qual é a utilidade das Forças Armadas hoje para Portugal. Porque as pessoas são rápidas a concluir. As pessoas quando fazem as suas opções é porque acham que há qualquer coisa que querem fazer durante algum tempo, porque lhes apela pela questão salarial. e pela questão de carreira, que pesam imenso. Portanto, acho que mais importante é acarinhar as nossas Forças Armadas. Temos de as trazer para dentro do discurso político e não como uma coisa que tenha a ver só com a questão da guerra. Temos de olhar para as Forças Armadas de forma estrutural. A ciberdefesa, a cibersegurança, etc...
Acabou por não me dizer indicar três ou quatro medidas estruturantes que acha que deviam ser prioritárias.
Mas digo já. A questão da alteração da LPM. Temos de a tornar mais ágil e temos que deixar de olhar para a programação militar apenas na perspetiva da Defesa. Tem que ser interdisciplinar, multidisciplinar e transversal. Tem de ser no Conselho de Ministros. A questão da indústria de Defesa. Eu gostava de ter visto o ministro da Defesa, como primeira medida, a reunir com a indústria de Defesa e a não ter aqui vários agentes. Reunir com a indústria, como nós vemos noutros países europeus. E a questão da valorização também da família militar. De percebermos o que é que nós esperamos da condição militar. Explicarmos às pessoas o que é isto da condição militar. Se é para manter, se não é, porque têm muita supressão de direitos.
E é fundamental os militares serem equiparados aos salários que resultaram do acordo que foi agora alcançado com os polícias?
Acho que nós estamos num patamar em que já se exigia mais, mas já estou naquela fase em que é um bom ponto de partida. Mas eu acho que há outras formas de nós olharmos. Se formos capazes de olhar para os recursos que existem neste momento disponíveis e que estão nos armazéns e que estão nas tais reservas estratégicas dos exércitos… Por exemplo, os Pandur. O que temos são notícias de que os Pandur acabaram por nunca ficar completamente funcionais. O que é feito destes recursos? E os Kamov? Eu podia aqui continuar. E não é só em matéria Defesa. Tem que haver mais accountability e mais transparência nesse aspeto, porque isso é dinheiro. Isso podia ser material militar. O armamento pode ser vendido para onde seja necessário em vez de estar parado.
Primeiro saber qual é a missão.
Saber qual é a missão e depois, a partir daí, é que se definem os recursos. Vamos estar só na NATO, vamos estar só em missões internacionais? Temos de responder a esta questão: o que é que nós queremos para as nossas Forças Armadas?