Política
26 outubro 2021 às 21h38

Orçamento do Estado pode sobreviver sem ser votado? Sim

Há um truque mágico que, sendo acionado, permitiria, esta quarta-feira, que o OE2022 sobrevivesse sem que BE, PCP e PEV tivessem de dar o dito por não dito no voto contra. Regimentalmente é possível e já foi usado milhares de vezes - mas nunca num Orçamento.

João Pedro Henriques

Chama-se "baixa à comissão sem votação". Já aconteceu vezes sem conta no Parlamento - e, em teoria, de acordo com as normas regimentais, nada impede que aconteça com a proposta de lei do Orçamento do Estado para o próximo ano (OE2022).

Para que o procedimento funcione, é preciso que um partido apresente um requerimento fazendo esse pedido, no caso com autorização do Governo (porque é o Governo o autor da proposta de lei). E para que o requerimento seja tornado eficaz, evitando-se a votação na generalidade hoje do diploma - e portanto o seu imediato chumbo, como se antecipa por todos os sentidos de voto já anunciados - é preciso que seja aprovado. Basta maioria simples.

Embora, aparentemente, este seja um cenário descartado por socialistas - ontem, pelo menos, alguém o apresentava ao DN como "um não assunto" - a verdade é que se o PS avançasse com esta iniciativa isso tenderia a colocar BE, PCP e PEV numa situação difícil de resolver. Votando contra o requerimento, bloquistas, comunistas e ecologistas veriam reforçados sobre si, pelo PS, o ónus da culpa de uma crise política que, para já, se poderia evitar.

Citaçãocitacao"O Governo também tem o dever de interpretar qual é o seu dever perante o nosso país e os portugueses. E sobre isso não tenho a menor dúvidas: o dever do Governo, o meu dever, não é virar as costas num momento de dificuldades, é enfrentar as dificuldades e por isso eu não me demito."

O debate na generalidade do OE2022 começou ontem no Parlamento e para esta quarta-feira à tarde está marcada a tal votação na generalidade. Dirigindo-se à esquerda, ontem, o primeiro-ministro não se cansou de pedir que o OE passe para lá da fase da generalidade para que haja tempo para se concretizarem aproximações. "A condição fundamental é que o Orçamento amanhã seja viabilizado para poder passar à especialidade", disse.

Costa surpreendeu ao anunciar que, mesmo que o OE2022 seja chumbado, não se demitirá. "O Governo também tem o dever de interpretar qual é o seu dever perante o nosso país e os portugueses. E sobre isso não tenho a menor dúvidas: o dever do Governo, o meu dever, não é virar as costas num momento de dificuldades, é enfrentar as dificuldades e por isso eu não me demito."

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Esta atitude acaba por, de certa forma, tirar o tapete ao Presidente da República (PR), que já tinha dito que um eventual chumbo da proposta orçamental conduziria da sua parte ao desencadeamento "imediato" dos procedimentos visando a dissolução do Parlamento (e portanto marcação de eleições antecipadas). Mas na verdade nada na lei ou na Constituição determina que isto assim seja - será uma decisão do PR puramente política. Em caso de chumbo do OE o que a lei prevê é que o Governo apresente uma nova proposta num prazo de 90 dias.

Num movimento paralelo, o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, foi ouvindo no seu gabinete os partidos parlamentares sobre o que será a gestão dos trabalhos parlamentares depois de Marcelo decretar a dissolução e marcar eleições.

O que essas reuniões revelaram é que há uma maioria no Parlamento que não quer eleições, mesmo sendo o OE2022 chumbado. O PS - pelo que se percebeu da intervenção de Costa dizendo que não se demite - afirma-o. O Bloco de Esquerda fez o mesmo e ainda o PAN. O PCP também já tem dito isso, insistentemente.

Entretanto, emergiu ontem durante o debate um outro cenário: o Orçamento do Estado ser viabilizado pelos três deputados eleitos pelo PSD na Madeira. O líder dos sociais-democratas madeirenses, Miguel Albuquerque, deu "gás" a esse cenário. "Se for para defender os interesses da Madeira, podemos conversar, mas até agora ninguém quis conversar comigo", disse. "O que era benéfico era o Estado respeitar a Constituição, pagar o que deve, que é bastante dinheiro, e fazer aquilo que deve fazer que é ajudar a Madeira."

Isto foi à tarde. Horas antes tinha porém feito declarações em sentido oposto, desdramatizando um eventual chumbo. "Não há nenhum drama. É melhor [o Orçamento] funcionar por duodécimos do que termos uma situação estapafúrdia de entrarmos numa crise política ou numa situação de irrealismo que leve depois a uma intervenção externa." Ou, por outras palavras: "É melhor termos a crise política do que um orçamento que leve o país à ruína. E, se funcionar em duodécimos, é uma forma de evitar as loucuras desta esquerda que não tem a noção da realidade e que acha que se pode fazer tudo, pondo em causa o futuro do país."

A mudança de registo de Albuquerque pode ter estado relacionada com movimentações do PR. Na segunda-feira, Marcelo tinha dito que iria tentar "ver se é possível de alguma forma encontrar o número de deputados para viabilizar" o diploma. E ontem mesmo acrescentou: "Até ao momento do começo do debate ainda fiz diligências complementares para ver se era possível que, de facto, se chegasse a entendimento."

Um voto favorável dos três deputados do PSD/Madeira, somando-se aos votos do PS (108 deputados), do PAN (três) e das duas deputadas não inscritas, faria de facto o OE2022 ser aprovado (por 116 votos contra 114). Contudo, configuraria para Costa uma situação que o próprio viveu noutros tempos, quando o PS teve o orçamento aprovado pelo deputado "limiano" Daniel Campelo, do CDS. Depois do Orçamento limiano teríamos um Orçamento da poncha. Rui Rio reagiu furioso a este cenário: "A posição está tomada, a Madeira não está à venda."

Esta quarta-feira se verá, na Assembleia da República. Antecipa-se tensão até ao último segundo.

joao.p.henriques@dn.pt