"A direita precisava de começar tudo outra vez. Alguém se perguntou o que faria Sá Carneiro?" 

Jornalista lançou novo livro, sete olhares sobre o legado de sete grandes figuras da democracia portuguesa. Num olhar sobre a atualidade, Maria João Avillez aponta o que diz ser a complacência mediática com a esquerda e defende que a direita tem estado "desmaiada".

Chegou nesta semana às livrarias As Sete Estações da Democracia, o último livro da jornalista Maria João Avillez, que reúne sete entrevistas da autora a outras tantas figuras públicas, que servem de cicerone ao legado de sete nomes maiores da política portuguesa. Uma ideia nascida em tempos de pandemia, originalmente dada à estampa no Público, e que coloca José Miguel Júdice a analisar o costismo, Francisco Assis a falar de Pedro Passos Coelho, Sérgio Sousa Pinto a olhar para o legado de Mário Soares, Durão Barroso para Cavaco Silva, Pedro Santana Lopes a falar do "mestre" Sá Carneiro, Paulo Portas a discorrer sobre Marcelo Rebelo de Sousa, o próprio Marcelo a falar do seu amigo António Guterres. O DN conversou com a autora, a pretexto deste lançamento.

As Sete Estações da Democracia é um percurso por sete "ismos", sete grandes figuras da política portuguesa vistas por outros tantos protagonistas. Como é que fez esta escolha, que parte de lugares diferentes: uns são do mesmo lado politico, outros não, Marcelo fala do seu amigo Guterres, Portas fala de Marcelo, com quem tem um percurso nem sempre amistoso...
Sabia, à partida, que os resultados seriam consoante cada um dos guias. Foi um risco assumido. O que procurei foi a qualidade que cada um dos "cicerones" me podia trazer, como testemunhas, como protagonistas, como guias. Percebi que o resultado iria ser diverso, mas acho que resultou.

Houve algum destes testemunhos que a tenha surpreendido mais?
Gostei do contributo de cada um, embora diversos entre si. Mas houve uma coisa, talvez, que me surpreendeu: a hombridade intelectual e cívica - gosto muito desta palavra - de Francisco Assis com Passos Coelho. Ele foi capaz de dizer exatamente aquilo que pensava e, de certa forma, também dizer que o país devia tratá-lo melhor. Gostei disso, gostei desse ser capaz.

Concorda que o país devia tratar melhor Passos Coelho?
Concordo em absoluto. Desde o momento em que ele foi primeiro-ministro, assisti a tudo o que se passou em Portugal, o ataque permanente de quase 100% dos media, a rua e a esquerda muito, muito mobilizadas. Não é comparável com nada. Nem mesmo José Sócrates, que não foi bem tratado enquanto era primeiro-ministro - sobretudo no segundo mandato - foi tratado tão agressivamente. Passos Coelho foi tratado muito agressivamente e é notabilíssimo que, mesmo assim, tenha ganhado as eleições.

Diria que foi o primeiro-ministro mais maltratado da democracia?
Sim. Não posso dissociar isso da dureza do momento que os portugueses estavam a viver, com sacrifícios muito duros. Mas houve da parte de muita gente uma tentativa de culpar - ou achar que Passos Coelho era o exclusivo culpado - por aqueles sacrifícios, passando ao lado do facto de que foram causados pela condução política de José Sócrates. Não se pode ler isto de outra maneira: a troika interveio por causa de uma ameaça de bancarrota causada por José Sócrates.

Os sete "ismos" que percorre no livro atravessam todo o período da democracia portuguesa, mas não está lá o socratismo. Porquê?
Pedi a duas ou três pessoas e disseram-me que não. Não quero alongar-me sobre isto por respeito para com essas pessoas. Por mim, teria feito, mas sem interlocutores não podia, quebrava a lógica, isto era feito com cicerones.

Este conjunto de entrevistas olha sobretudo para o passado, mas tem pelo menos uma previsão para o futuro: saiu deste trabalho convencida de que Paulo Portas será candidato presidencial...
Estou convencidíssima de que ele quer ser candidato presidencial, já tinha essa ideia e a forma como ele conduziu a visita guiada a Marcelo tirou-me as dúvidas. Está lá tudo...dá a entender como agiria, e como não teria agido da mesma forma que Marcelo.

Mas candidato já em 2026?
Sim, a seguir a Marcelo.

António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa surgem aqui como dois "jogadores", não diria duas faces da mesma moeda, mas...
Mas são as duas faces da moeda que foi o primeiro mandato do Presidente, isso são. António Costa era o chefe do governo, o Presidente da República era o grande apoiante, o grande parceiro. José Miguel Júdice fala um pouco nisso, também o percebeu, provavelmente antes de mim. Aqueles anos foram uma estrada conduzida a duas mãos - pelo chefe de governo e pelo chefe de Estado.

E não devia ter sido assim?
Houve alguns momentos na governação de António Costa que, na minha perspetiva, teriam merecido da parte do Presidente outro olhar, outra resposta, outra atitude.

Antecipa que possa ser diferente, daqui para a frente?
Já está a ser diferente. Sabemos que nos segundos mandatos, como os presidentes não precisam de fazer charme a todo o espetro político para serem reeleitos, estão mais à vontade para serem eles próprios. [Marcelo] já levanta um pouco mais a voz, está a ser diferente. Aliás, acho que o Presidente da República vai ser visto pela história pela forma como está a gerir isto e pela forma como olhar o governo que sair das próximas eleições. A diferença deste segundo mandato ver-se-á aí.

E, para Marcelo, é importante a forma como a história o retratará?
É importantíssimo. Não pode deixar de ser importante para qualquer político, sobretudo no mais alto cargo da nação. E, se pensar bem, o que é que se pode dizer do primeiro mandato do Presidente? Não há nenhum grande gesto, nenhuma grande tomada de posição, nenhuma grande atitude. Houve muita simpatia, muita proximidade, muitas selfies, muitos beijinhos. Mas de consistente politicamente não se pode dizer que haja uma marca, uma impressão digital. O Presidente vai ter de a arranjar neste segundo mandato. Esta crise veio ajudá-lo nisso, a forma como a gerir vai defini-lo.

Como é que vê o futuro da direita portuguesa?
Vejo com preocupação. Não sei quem é que será de direita em Portugal, não sei o que é que se passa. Uma grande parte dos nossos empresários - que respeito imenso - vivem de mão estendida para o Estado, porque o país está cada vez mais pobre, e porque Portugal tem uma tradição de um Estado muito presente e pesado, demasiado. Em segundo lugar, todo o espaço à direita do PS instalou-se no costismo, mesmo não gostando nada do costismo. Não se deu por eles, não se sabe onde é que estavam, amorfos, desinteressados... Não se produz muita teoria política, muito pensamento político à direita, há alguns colunistas interessantes, o Observador teve um papel importante nisso. Mas é um campo que está muito desmaiado e que precisava de começar tudo outra vez desde o princípio. Com todas as distâncias, o tempo é outro, já alguém se perguntou o que faria Sá Carneiro? É uma pergunta para a direita pensar.

Faltam respostas à direita?
Não sei quem é que é de direita, não sei onde é que ela está. Parece-me... não é bem demissionária porque estaria a ser injusta com pessoas que nunca se demitiram. Mas são poucas. Por exemplo, a direita não gosta de leis que foram aprovadas nestes anos, que têm que ver com temas fraturantes. Mas ouviram-se muito poucas vozes contra isso, houve pouca manifestação, mostrou-se muito pouco trabalho público por parte de quem estava contra essas leis. Não vi metade do país mobilizado, durante estes sete anos - a metade do país que não se reviu na condução política do país, no chamado costismo. Por outro lado, os media levaram ao colo a geringonça e António Costa. No tempo da direita, Durão Barroso teve uma vida dificílima, Cavaco Silva não foi muito bem tratado, ainda hoje não é, e Passos Coelho não podia ter sido mais maltratado. Nestes 47 anos a esquerda foi sempre muito mais bem tratada pelos media do que o centro-direita ou a direita. Devíamos perguntar-nos porquê.

Como é que antevê as próximas eleições?
Das duas, uma: ou o país quer mudar, sente que é preciso acabar este ciclo e começar outro; ou não sente. Não sabemos quanto é que pesa, ou não, essa vontade de mudança. Isso é muito interessante nestas eleições: chegou o momento do fim de um ciclo, costista, socialista, ou esse ciclo vai ser prolongado de outra maneira? Porque será sempre prolongado de outra maneira, tenho quase a certeza.

De outra maneira, como?
De algum modo António Costa está a preanunciar ou, pelo menos, a mostrar uma disposição de parar de humilhar o centro-direita, como fez durante estes sete anos. Cada vez que se falava do PSD, ele dizia "se precisar do PSD prefiro demitir-me". Hoje não diz isso. Está manso e humilde de coração, como se diz nas Escrituras. Podemos ter surpresas interessantes politicamente, se António Costa ganhar as eleições. Não estou a dizer que as ganhe, não é possível um olhar definitivo nesta altura.

É um momento particularmente imprevisível?
Particularmente imprevisível e particularmente interessante.

Mas, ao apontar essa diferença de atitude de António Costa, isso significa que admite a hipótese de um bloco central?
Não é bem um bloco central: as pessoas estão agarradíssimas à expressão bloco central. Pode haver um acordo de uma maioria estável, sólida e consistente de outra forma. Pode haver apenas um acordo, sem ministros de mais do que um partido no governo, pode haver um governo minoritário com o apoio de X partidos no parlamento. Pode haver muito mais coisas do que só um bloco central.

Mas com o apoio do PSD?
Do PSD, de outros partidos que não o BE e o PCP.

Não acha que a geringonça se possa repetir na próxima legislatura?
Daqui a um mês e meio, dois meses, acho difícil. Os portugueses teriam um sentimento de estupefação, de indignação - "então fizeram-nos passar por isto e entendiam-se tão bem que agora vão para o governo, afinal isto foi uma farsa". Acho que ninguém tinha a ousadia, seria visto quase como uma afronta - "estiveram a brincar".

Esta crise surpreendeu-a?
Surpreendeu. Algumas pessoas, que considero mais bem informadas do que eu alertavam-me para o facto de António Costa não desejar senão eleições antecipadas. Eu via mais como o PCP e o BE não queriam eleições e, portanto, [via a legislatura] continuar até 2023. Para mim foi surpreendente. Não esperava que o PCP, sobretudo, não viabilizasse o Orçamento, o Orçamento mais à esquerda de que há memória - que felizmente não foi aprovado, porque iria empobrecer ainda mais o país, criar mais compromissos para os nossos netos, mais dificuldades para o país, mais empobrecimento.

susete.francisco@dn.pt

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG