25 de Abril. 48 anos depois, ainda há muito por contar
"Na investigação que fiz sobre o 25 de Abril em Setúbal foi possível ver o nosso Presidente da República atual, em junho de 75, a explicar na sede local do PPD as virtualidades da reforma agrária [risos na sala]. Isto pode ser um aspeto anedótico, mas é muito importante. É importante conhecer as ondas de choque que o 25 de Abril provocou nas diferentes cidades do país".
Palavras do historiador Albérico Afonso Costa sobre o que são ainda zonas de sombra na história do 25 de Abril. E não é só o "atraso enorme na investigação local". Na visão dos seis oradores que se juntaram ontem para debater o 25 de Abril, a história dos derrotados ainda não está contada, a dimensão internacional da revolução portuguesa ainda não foi devidamente explorada. Ainda que os contornos da revolução de Abril estejam hoje firmados sem margem para grandes disputas, há ainda muita investigação por fazer sobre um acontecimento que foi uma das "mais potentes reinvenções dos nossos nove séculos de História", nas palavras de José Adelino Maltez, catedrático de Ciência Política.
O Tempo Histórico e a História do 25 de Abril juntou ontem no Salão Nobre da Câmara de Setúbal seis personalidades, entre a história e a ciência política, para debater o olhar de hoje sobre a revolução dos Cravos. Um debate moderado pelo jornalista Pedro Tadeu, inserido na iniciativa Venham Mais Vinte e Cincos, com que a autarquia setubalense assinalará o cinquentenário da revolução ao longo dos próximos anos. Um debate que foi aberto por André Martins, presidente da autarquia.
Para Irene Flunser Pimentel, historiadora com uma vasta bibliografia sobre a revolução, o 25 de Abril é provavelmente a transição democrática com "melhores fontes" a nível europeu. Mas isso não significa um acesso fácil. Entre os vários oradores fez-se notar que os arquivos militares, da PSP e da GNR continuam a ser de difícil acesso.
"Há um mar imenso de informação" por explorar, afirmou Fernando Rosas, sublinhando que "há coisas no próprio arquivo da polícia política que não estão sequer sistematizadas quanto à sua existência". "Sabemos pouco sobre a inteligência político-militar dos derrotados. Como é que agiram? Sabemos muito pouco", referiu o historiador e antigo deputado, lembrando que arquivos essenciais para se escrever a história da revolução "demoraram mais de dez anos a serem abertos". "Falta estudar a questão internacional sobretudo sob o ponto de vista das fontes da antiga União Soviética", concordou Irene Flunser Pimentel, deixando uma lista de outras questões que estão ainda na sombra - "os retornados, a guerra colonial, o MDLP [Movimento Democrático de Libertação de Portugal], sobre o qual há muito trabalho jornalístico, mas não historiográfico, a deriva presidencial de Spínola". "Ainda há muita coisa por fazer" e, provavelmente, fontes privadas que não foram exploradas, argumentou a historiadora.
Sobre esta questão em específico Silvestre Lacerda, diretor-geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, avançou que na Torre do Tombo estão já os arquivos pessoais de Soares Carneiro, Melo Antunes, Costa Braz, e está a ser tratada com a família a doação do arquivo do antigo capitão de Abril Marques Júnior, falecido em 2012. "Não faltam fontes, o que pode faltar é investigação. Um exemplo simples: há cerca de dez quilómetros de documentos na Torre do Tombo dos organismos da administração, no fascismo", afirmou Silvestre Lacerda, mas apontando também para muita documentação dispersa relativa ao 25 de Abril, quer nas câmaras municipais (caso dos arquivos dos antigos governos civis), quer em unidades militares.
Pode o tempo - e aquilo que ainda não sabemos com precisão - alterar o olhar da história sobre o 25 de Abril? Quarenta e oito anos são suficientes para que o relato histórico não seja permeado pela confrontação política? "Há uma diferença fundamental entre o trabalho académico sobre os processos de mudança de regime, neste caso o 25 de Abril, e a memória dele. Sob o ponto de vista académico não temos problemas, mas a memória será sempre tema de debate", sublinhou o historiador e politólogo António Costa Pinto. E a "memória é feita em grande parte a partir do presente": num regime democrático há uma "imagem necessariamente diferenciada do que foi o 25 de Abril, e sobretudo do que se seguiu, da crise revolucionária de 74/75, do famoso e atualmente debatido 25 de Novembro". "Nada muda mais do que o passado", sustentou também, no mesmo sentido, Albérico Afonso Costa, mas defendendo que cabe ao rigor da investigação histórica separar os dois campos - "Já tenho lido interpretações históricas sobre a Idade Média ou sobre a Pré-História mais contaminados por um catecismo político-ideológico do que outros sobre a história contemporânea".
O que também falta? "Não está feito o inventário da direita no 25 de Abril", afirma Adelino Maltez que considera haver, na forma como se olha para a Revolução, "muito complexo de esquerda, muito fantasma de direita (...) eu sou de direita e fiquei eufórico com o 25 de Abril, que foi um tempo de libertação para todos".
Irene Pimentel, que identifica "vários 25 de Abril no 25 de Abril", partilha da ideia de que "há um défice no estudo da Direita, mas as novas gerações de historiadores", acredita, "já vão analisar as ideologias do 25 de Abril".
Fernando Rosas não hesita nem tem dúvidas sobre o que se passou e contra quem foi feita a Revolução dos Cravos: "O 25 de Abril não é de direita. O 25 de Abril é feito contra a direita. O 25 de Abril é feito contra a ditadura, contra a ditadura fascista que existia, contra o regime colonial, contra a guerra colonial, contra a PIDE, contra a repressão".
Para o historiador e fundador do BE [e também do MRPP], "o 25 de Abril não é uma coisa neutra que politicamente não tem cor. O 25 de Abril tem cor. Agrupa as várias sensibilidades do movimento antifascista português. O sentido geral, ainda que com várias sensibilidades, é a ideia de derrubar uma ditadura autoritária e colonial. Tudo isso está no programa do MFA que não é neutro. O 25 de Abril tem cor".
António Costa Pinto lembrou, a esse propósito, que, nesse período, "a consciência democrática de alguns não era grande" dando como exemplo o estratega da revolução que "não era um ativista, ele e muitos outros". E acrescentou: "Escusamos de estar a inventar a consciência democrática do Otelo Saraiva de Carvalho. Não vamos exagerar".
"Houve movimentos de extrema-direita? Não houve. Houve eleições falsificadas? Não. Onde é que houve divergências sobre as questões essenciais?", questionou Adelino Maltez.
A resposta? "0 25 de Abril é das maiores alterações da história de Portugal. A Pátria portuguesa sobrevive, está pujante porque em momentos fundamentais houve gerações que a reinventaram. A raiz do nosso regime foi criada um mês depois do 25 de Abril, de forma pluralista. O 25 de Abril, um mês depois, tem uma lei constitucional provisória. Foi uma revolução assente numa legalidade constitucional", afirmou.
Mas depois houve o 25 de novembro. E a data, polémica pela interpretação que é feita do que se passou ou do que se pensa que se passou, leva a historiadora Irene Pimentel a concluir que "a questão do 25 de novembro está completamente por estudar" - "E eu acho que tem que ser estudado. Está por fazer sobretudo a historia daqueles que foram os derrotados. Porque foram presos logo a seguir, calados de uma certa forma".
O politólogo António Costa Pinto sublinha, contrariando "os novos partidos que ensaiam recolocar a questão", que "o 25 de novembro foi efetivamente feito pela forças democráticas moderadas. O 25 de novembro não representa sequer uma vitória da direita radical nem uma restauração de memória mais positiva do salazarismo". E a ideia "passada", acentua, de que o "25 de novembro foi uma tentativa do PCP para tomar o poder não é verdade, sabemos isso hoje".
Entre o que se sabe e o muito que falta saber, António Costa Pinto manifestou curiosidade "académica" pelo tempo do gonçalvismo, as "dimensões" que precisam de ser melhor explicadas: "falo das ligações entre o PCP e aquilo a que poderíamos chamar os oficiais gonçalvistas. Eram filiados, não eram filiados?".
A dúvida ficará, ainda, por esclarecer. Mas há quem, mais novo, possa abrir novas leituras. E aqui quer António Costa Pinto quer Irene Pimentel apontam um nome: Maria Inácia Rezola e o seu "trabalho absolutamente extraordinário". Ninguém sabia que seria nomeada, ainda durante o dia de ontem, comissária das Comemorações do 25 de Abril.
Adelino Maltez que recordou os seus anos de participação - "mesmo sendo de direita" - nos primeiros governos constitucionais usou duas palavras para falar dos anos 1974, 1975 e 1976: "Anos belíssimos". Uma conclusão? "É possível discutir tudo isto sem azedumes".