Irmã de Alcindo Monteiro: "Quem esteve no sítio errado à hora errada foi o meu irmão"

A ida de Mário Machado à TVI chocou a família de Alcindo Monteiro, a vítima mortal da incursão racista perpetrada por Machado e dezenas de outros <em>skinheads</em> em 1995 no centro de Lisboa, quando decidiram celebrar o 10 de Junho insultando, perseguindo e agredindo negros.
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"Ele diz o que quiser. Nós não acreditamos numa única palavra."

Luísa Monteiro, 61 anos - mais dez do que Alcindo, o mais novo dos sete irmãos, que teria hoje 51 -, suspira. Foi, conta, uma das sobrinhas que avisaram a família de que Mário Machado tinha ido ao programa da manhã da TVI na quinta-feira 3 de janeiro. "Ela achou que ele é um mentiroso. Diz que estava no sítio errado à hora errada? Quem esteve no sítio errado à hora errada foi o meu irmão."

Alertada pela sobrinha (que declinou falar com o DN), Luísa foi ver o programa. "Puxei para trás, já que agora há essa possibilidade. O senhor Mário Machado não podia estar a dizer uma coisa daquelas. Como vai dizer que foi condenado injustamente? Ficou provado em tribunal que ele e os outros foram de propósito em grupo fazer aquilo. Eu só sei o que a justiça apurou. Mas ele pode dizer o que quer, já saiu da cadeia."

Disse. Machado, que o acórdão do Supremo que em 1997 o condenou por ofensas à integridade física de cinco cidadãos negros diz denotar "completa ausência de arrependimento", queixou-se até, no Você na TV, de ser injustamente associado à morte de Alcindo: "É um fardo que carrego, pesadíssimo para mim e a minha família."

Do outro lado do telefonema, Luísa tem a voz calibrada por mais de duas décadas de desalento. "Para falar verdade, a revolta está cá, nunca vai desaparecer. É revoltante. Cada vez que falam disso na TV é revoltante, e estamos sempre a ver o que vão dizer. Mas fazer o quê? Falar qualquer coisa que seja não interessa. Já passaram tantos anos. Queremos é sossego, não queremos ter problemas com ninguém."

"Se fosse hoje, seriam acusados de terrorismo"

Os irmãos e os sobrinhos são a família que resta de Alcindo: os pais já morreram, nunca tendo recebido um cêntimo da indemnização de 18 mil contos (90 mil euros) que o tribunal condenou os seus assassinos a pagar.

João Nabais, que representou a família de Alcindo Monteiro no julgamento que teve lugar em 1997, corrobora. "Ainda andámos atrás deles, mas aquilo era tudo malta muito nova, nunca pagaram. E na altura não havia ainda a possibilidade, para as vítimas de crimes violentos, de pedir uma indemnização ao Estado."

Nabais, que recorda como "eles [refere-se a todo o grupo que foi acusado, que incluía, além dos que viriam a ser condenados pelo homicídio, os que como Mário Machado, fazendo parte do mesmo grupo de skinheads, foram considerados culpados de várias agressões motivadas por ódio racial] se portaram como cordeirinhos em tribunal, desculpando-se, negando serem racistas", não viu as prestações televisivas de Mário Machado, mas não se surpreende quando é informado de que este descreveu os acontecimentos de 10 de junho de 1995 como "confrontos entre nacionalistas e africanos."

Isso é completamente falso, frisa o advogado. "Provou-se que eles fizeram uma varridela, foram batendo em todos os negros que lhes apareceram à frente. O Mário Machado não estava no grupo que matou o Alcindo mas espancou outros negros com gravidade e foi condenado por isso."

De facto, no acórdão de 1997 do Supremo Tribunal lê-se: "Os arguidos perfilham ideias que fazem apelo ao "nacionalismo" e "racialismo", onde a vertente racista está sempre presente, e exaltam a superioridade da raça branca, considerando a raça negra como uma raça inferior e a expulsar de Portugal. E é na prossecução de tal desígnio, a que de forma coletiva aderiram todos os arguidos intervenientes em cada uma das agressões a ofendidos acima descritas, que estes atuaram, agredindo todos os indivíduos de raça negra que se cruzavam no seu caminho. Querendo com essa atuação, integrada nos objetivos do grupo de "Skins", contribuir para a expulsão de Portugal daquele grupo racial. Todos os arguidos intervenientes em cada uma das agressões a ofendidos acima descritas atuaram em comunhão de esforços, querendo atingir a integridade física e a vida dos ofendidos, por serem indivíduos de raça negra, o que conseguiram. Bem sabiam os arguidos intervenientes em cada uma das agressões a ofendidos acima descritas que os objetos que utilizaram (soqueiras, paus, botas militares e outras com biqueiras em aço, garrafas partidas, ferros), revestem características que, quando usados da forma referida, são aptos a causar lesões suscetíveis de provocar a morte aos atingidos ou colocá-los em risco de vida ou de causar uma grave ofensa à sua integridade física. E que todos iriam fazer uso desses objetos, o que queriam, conformando-se com o resultado das agressões praticadas com os mesmos."

Hoje, considera o causídico, os intervenientes no ataque de 10 de Junho "seriam acusados de terrorismo". E, ao contrário do que Machado afirmou no Você na TV, não foi vítima de um "falhanço da nossa justiça." Pelo contrário: "Ele foi muito bem tratado pela justiça porque acabou por ter uma pena muito leve - quatro anos e três meses em primeira instância, que o Supremo diminuiu para dois anos e seis meses - tendo em conta tudo o que fez. Os juízes tiveram em conta que era muito novo [Machado nasceu em 1976] e primário, ou seja, não tinha condenações anteriores."

"Pedir desculpa, também, servia para quê?"

Quanto aos dois anos que Machado, detido logo na noite dos acontecimentos, disse no Você na TV ter passado "por engano" em prisão preventiva, Nabais também desmente. "Ele estava acusado de ofensas à integridade física que, agravadas quer pela motivação de ódio racial quer pelo facto de serem cometidas em grupo, têm uma moldura penal que permitia prisão preventiva."

O facto de Machado ter mentido sobre os seus crimes e as condenações de que foi alvo, porém, parece "normal" a Nabais. "Ele pode fazer a revisão histórica que entender. O que não aceito é que um canal de televisão respeitável lhe dê palco para essa revisão, sem sequer o confrontar com a verdade. Se o iam entrevistar tinham de conhecer a verdade, de ler o processo." Mas a ideia, crê o advogado, foi mesmo deixá-lo dizer o que quisesse: "Ele foi convidado precisamente por essas características. A ideia foi pôr um palhaço na TV a dizer coisas que criam polémica."

Foi aliás exatamente assim, como "autor de declarações polémicas", que Mário Machado foi apresentado por Manuel Luís Goucha no seu Facebook e depois no programa.

João Nabais, que considera que alguém como Mário Machado, que "expressa ideias fascistas", não deve ter tempo de antena, não tem dúvidas de que "quem o convidou para o programa fez mal; a direção da TVI fez mal. Vi que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social concluiu não ter razão para agir. Respeito, mas tenho pena".

No outro dia, um dia de muita chuva, conta Luísa Monteiro, os sobrinhos todos foram à Cova da Moura porque numa novela da SIC viram aquilo que parecia ser um mural pintado com a figura do tio. "Não encontraram", esclarece. "Eles têm um interesse especial pelo tio. Era tudo para eles, e eles para ele. Era uma pessoa exemplar, divertida, gostava de crianças, de animais."

E de dançar. Era o que ele, que morava no Barreiro, tinha ido fazer Lisboa nesse dia de santos populares: dançar. Era da dança que vinha, só, leve, provavelmente feliz, a caminho do barco no Terreiro do Paço, quando na Rua Garrett, no Chiado, se cruzou com uma parte do grupo de Mário Machado. Um dos que nessa noite foram detidos com Machado num bar em Santos tinha ainda numa bota o ADN e cabelos de Alcindo - de o pontapear na cabeça.

"Só um dos condenados, o que apanhou 18 anos de prisão, disse que estava arrependido. Disse no tribunal." Nenhum deles, garante Luísa, alguma vez se dirigiu à família para pedir desculpa. "Mas pedir desculpa, também, servia para quê?"

(Texto alterado às 12.25 de 11 de janeiro, para incluir excerto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça)

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