Das 'cruzes do amor' à acusação de escravidão. O mistério da casa de Requião
"Quer dizer, maus tratos... Uma vez ou outra podemos ter dado uma sapatadita. Agora escravatura, não sei o que é escravatura. Quer dizer, sei o que é escravatura. A escravatura é pormos uma pessoa a trabalhar de dia e de noite, não faço ideia. Aqui não, temos as nossas horas. Por exemplo da parte da manhã temos o terço, a missa, a adoração ao Santíssimo, uma faz o comer, outra faz... de tarde ou vamos para a tipografia ou trabalhamos um bocadinho no campo."
As declarações são de Maria Isabel Silva, que se identifica como "a mais velha" das responsáveis da Fraternidade Missionária Jovem Cristo, em Requião (Vila Nova de Famalicão), e que esta quarta-feira foi formalmente acusada, com mais duas mulheres e o padre octogenário Joaquim Milheiro, do crime de escravidão sobre nove pessoas.
Isabel Silva falou à TVI em novembro de 2015, quando os quatro foram constituídos arguidos na sequência de várias queixas apresentadas às autoridades por mulheres que se diziam vítimas dela e dos outros responsáveis da Fraternidade. Identificada pela peça como "irmã" - ou seja, como freira - admite tranquilamente que "podia-se às vezes ter dado um estalo, podia-se ter dado", explicando porquê: "Refilaram, ou não cumpriram a obrigação delas ou foram para aqui e deviam ter ido para ali." Em relação às autoras das queixas que levaram à investigação, comenta: "Não queriam estar aqui, que isto era duro de mais, que trabalhavam muito. Que não gostavam do que lhes era dito."
A descrição que a acusação do MP faz do que se passava na Fraternidade é um pouco mais desenvolvida. De acordo com o documento, citado pelo Público, as mulheres eram submetidas diariamente a "várias agressões físicas, injúrias, pressões psicológicas, tratamentos humilhantes [e] castigos" (incluindo ficarem nuas no jardim, serem proibidas de tomar banho e dormirem no chão com um cão doente), obrigadas a "trabalhos pesados" e a jornadas de trabalho que podiam chegar às 20 horas, sendo escassamente alimentadas, vendo-lhes negados "cuidados médicos e medicamentosos" e vivendo com liberdade restrita, com limitação dos contactos com a família, proibição de ver televisão e tendo as cartas previamente vistoriadas. Estavam "totalmente subjugadas, pelo temor, às suas vontades [dos acusados] quer pelas ofensas físicas e verbais e castigos de que eram vítimas quer pelas que presenciavam e bem assim pelo clima de terror e rigor espiritual que lhes era imposto". Uma acabaria por matar-se, outra sofreu "sequelas permanentes" - cicatrizes na face e problemas nos joelhos.
É esta a base da imputação do crime de escravidão, que se o artigo 159º do Código Penal tipifica simplesmente como "reduzir outra pessoa ao estado ou à condição de escravo", um acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2013 diz ser necessário densificar "perante as circunstâncias sociais, históricas e políticas contemporâneas, e de acordo com as conceções ético-filosóficas dominantes." Cabendo assim "na previsão legal a escravidão laboral, nos casos em que a vítima é objeto de uma completa relação de domínio por parte do agente, vivenciando um permanente "regime de medo", não tendo poder de decisão sobre o modo e tempo da prestação do trabalho e não recebendo qualquer parte da sua retribuição."
Só quando o caso foi investigado, em 2015, e instada a esclarecer o estatuto da instituição, a arquidiocese de Braga esclareceu que a Fraternidade não era um convento e aquelas mulheres que se vestiam como freiras e noviças não o eram. Que se tratava afinal de "uma associação de fiéis". E também de uma IPSS, mas registada desde 1983 na Segurança Social com outro nome: Centro Social de Apoio e Orientação da Juventude.
Porém até a rua onde a Fraternidade, uma propriedade murada de quatro hectares, tem porta no número 437 se chama do Convento. Em Requião, 3376 pessoas recenseadas em 2011, praticamente toda a gente achava que era disso, de um convento, que se tratava.
A começar por João Pereira, desde 2009 presidente da junta. "Sempre achei que era, como vi as senhoras vestidas de freiras...", diz ao DN. "A instituição a nós parecia-nos credível. Nunca ninguém se queixou. Fui lá algumas, poucas vezes, antes de se saber disto [refere-se às queixas e à investigação], por convite, e não vi nada de anormal. Vi as mulheres a trabalhar nos jardins - tem uns jardins muito bonitos -- lá curvadas, a arrancar ervas ou assim. E também na tipografia, têm uma tipografia [Edições Boa Nova] e elas estavam lá. Nunca me apercebi de muita gente - eram umas seis pessoas ao todo talvez. Mas nunca falei muito com elas, era bom dia e boa tarde."
Certifica no entanto que as mulheres - dos seus 20, 30, talvez 40 anos, não sabe precisar - estavam recenseadas em Requião e costumavam "exercer o seu direito de voto", e também eram vistas na terra para "ir às compras e à missa": "Às vezes até vinham todas numa carrinha de caixa aberta."
Faz uma pausa. "Mas aquilo foi sempre um circuito muito fechado. Abriam a propriedade quando vinham umas videntes. Uma vez fui lá, era uma vidente jugoslava ou assim, e tinham vindo milhares de pessoas, em camionetas. Até comentei: "Nós aqui vamos a Fátima e eles de Fátima - porque aquilo eram camionetas que vinham do centro do país - vêm para aqui". Também faziam uma missa aberta à população uma vez por mês, creio." Acrescenta um pormenor: "E é verdade, como já vi comentar, que não deixavam as mulheres entrar de calças nem com decotes, se tinham calças emprestavam umas saias para pôr por cima."
Sobre como se sustentava a propriedade e quem lá vivia, não tem ideia. "Com a Junta de Freguesia, comigo, nunca fizeram protocolos, nada. E nem sabia que se tratava de uma IPSS. Nunca os vi pedir dinheiro. Se as pessoas faziam donativos era por livre e espontânea vontade."
Da ligação à arquidiocese de Braga também sabe pouco. "Aquilo foi inaugurado nos anos 1980, não conheci o início. Nessa altura, apesar de ser de Requião, não vivia aqui. Contaram-me que veio cá o arcebispo, o Eurico [Dias Nogueira, que desempenhou as funções entre 1977 e 1999] inaugurar, que as mulheres se deitaram no chão ao comprido. E diz agora a arquidiocese que vinha um padre de Braga para ver o que se passava... Mas não sei de nada."
Para João Pereira, porém, a "principal questão", a dúvida que gostaria de ver esclarecida, é "em relação à forma como as moças iam para lá. Gostava de saber de que famílias vinham, como vinham aqui ter, quem as conhecia. Porque elas não eram daqui." Será, questiona, que eram as famílias que as punham ali, "de castigo por alguma coisa"? E "se lhes batiam, e eu não tenho dúvidas de que lhes batiam, porque elas se queixaram, por que é que não fugiam, por que é que estavam lá e nunca pediram socorro?" Conclui: "Gostava que a investigação se virasse para esses lados."
Também Sandra Ribeiro Gonçalves, diretora do jornal local O Povo Famalicense, que tem seguido o caso, se faz eco de idêntica estranheza. "As miúdas não são dali, nunca percebi muito bem como chegavam ali. Aquilo praticamente não tem relação nenhuma com a comunidade nem com a paróquia local. Mesmo as pessoas da própria comunidade de Requião não entram lá com facilidade." Como não é fácil, pelo contrário, obter informação básica sobre a instituição: "Nunca consegui encontrar os estatutos [aprovados em 1978 pela arquidiocese de Braga, e que o DN também procurou sem êxito]. Aquilo chegou a ter um site mas já não tem."
Outra informação à qual a jornalista não conseguiu aceder foi a das conclusões da investigação que a diocese de Braga declarou, em comunicado exarado esta quarta-feira, ter efetuado à Fraternidade, após serem conhecidas as queixas de várias mulheres, e que terá determinado, em data que o comunicado não concretiza, a exigência de afastamento de uma das responsáveis, Maria Arminda Costa, e do padre Joaquim Milheiro (que terá depois, "à revelia da diocese", ainda segundo o comunicado, e também em data não indicada, regressado à Fraternidade): "Nem nos responderam quando pedimos para conhecer o resultado."
Ao DN, o padre Tiago Freitas, do departamento de comunicação da diocese, reitera a inacessibilidade: "As conclusões são internas. E muito provavelmente nunca serão publicadas."
Este porta-voz recusa igualmente esclarecer se houve queixas diretas à diocese ou se a decisão de instaurar um inquérito surgiu após as participações apresentadas ao Ministério Público, mesmo se num comunicado de 18 de novembro de 2015 (o dia em que a PJ fez buscas na Fraternidade) se lia: "A Arquidiocese foi informada por ex-membros da Fraternidade Cristo - Jovem, em finais do ano passado [2014, portanto], de presumíveis anomalias na vida quotidiana da comunidade." Na mesma altura, noticiava o Expresso, arquidiocese assegurava: "Até hoje nada foi provado".
O que levou do "nada provado" à decisão de afastamento de que fala o comunicado Tiago Freitas também não revela: "Mandámos sair porque de um modo ou outro foi considerado que não deviam ficar." Quem tomou a decisão? O bispo? "Para tomar essa decisão pode ser constituída uma comissão num tribunal eclesiástico ou uma comissão ad hoc que faça a recomendação." O que aconteceu ao certo é mais um segredo.
Mas acede a nomear o responsável a quem o comunicado de 2015 diz ter sido entregue pela diocese o acompanhamento "semanal" da instituição: Manuel Morujão, que já exerceu as funções de porta-voz da Conferência Episcopal. A tarefa de Morujão, além de, presume-se, investigar os tais factos constantes das queixas, passava também por averiguar se a Fraternidade, que estava a tentar passar a convento, tinha condições para isso. "O processo nunca foi completado. Para obter esse reconhecimento é preciso fazer um regulamento, dizer qual a estrutura interna e depois há uma decisão."
Certificando que a Fraternidade, apesar de ter estatuto de IPSS, não celebrara acordos com a Segurança Social, Tiago Freitas garante que fazia "trabalho meritório com reclusos", mas diz não saber de que penitenciária. E sobre a forma como se sustentava, é vago: "Imagino que viveria de donativos."
O porta-voz da arquidiocese é também esquivo quando o DN o questiona sobre a pertença da propriedade, que numa reportagem do Público, em 2015, um local diz ter sido adquirida em 1982 pelo padre Milheiro, e a origem dos fundos para a compra: "O padre Milheiro não é da arquidiocese de Braga." Mas está no vosso site como pertencendo à arquidiocese, e está sob a vossa autoridade, tanto que lhe ordenaram que abandonasse a Fraternidade. "Está na nossa lista porque reside cá mas quando veio para cá não era da diocese."
A questão não é despicienda: se a Fraternidade, ou o Centro Social de Apoio e Orientação da Juventude, é, como pessoa coletiva, também alvo da acusação do MP, caso a arquidiocese tenha com ela uma relação de propriedade poderá ter de responder pelos danos sofridos.
De resto, o estatuto de IPSS, que confere, em princípio, uma série de isenções de impostos e contribuições, obriga à apresentação de contas à tutela e à publicitação destas no respetivo site na internet. Mas o Google não encontra qualquer site da instituição e o contacto efetuado pelo DN com o gabinete do ministro da Segurança Social no sentido de aceder às contas da IPSS não obteve (ainda) resposta.
Através das contas, seria possível saber quais os rendimentos da Fraternidade e de que provêm, e como sustenta a propriedade de quatro hectares, descrita como "impecável", e quem lá viveu e vive.
Quanto àquela que o presidente da junta de freguesia considera "a grande questão", ou seja, a razão pela qual as jovens mulheres de zonas mais ou menos longínquas ingressaram na Fraternidade ou souberam sequer da sua existência, o representante da diocese reverte a estranheza: "Por que é que haveria qualquer dúvida sobre a forma e os motivos? Por que haveriam aquelas pessoas de ter algum problema que as levasse a ingressar ali? Nada impede que algumas pessoas se reúnam para viver em vida cristã. Quando alguém vai procurar aquela comunidade porque é que o faz? Porque quer seguir a vida religiosa, não é?"
A acusação do MP tem uma visão menos romântica do assunto: "Convenciam jovens de raízes humildes, com poucas qualificações ou emocionalmente fragilizadas e com pretensão a integrarem uma comunidade espiritual de raiz católica, piedosas e tementes a Deus a juntarem-se à fraternidade, alegando que elas tinham sido "escolhidas por Deus" e "deviam escolher a vida religiosa, pois caso negassem as suas vocações daí advinham castigos "divinos", problemas familiares, mortes na família"".
E se Tiago Freitas reconhece que a forma de funcionamento da Fraternidade era vista com reserva por alguns - caso do anterior pároco de Requião, Manuel Soares Magalhães (já desaparecido), que em 2015, numa reportagem do Público, se referia a ela como "uma invenção" e informava que "o arcebispo está a par e não gosta" -, comenta: "Havia críticas e também pareceres favoráveis. Quando Fátima começou também não foi dada credibilidade." Não, apressa-se a dizer, "que esteja a comparar as duas coisas."
Certo é que a Fraternidade se apresentou publicamente, nos anos 1990, como afiliado do movimento Testemunhas da Cruz, nascido no início dos anos 1980 a partir das alegadas visões da francesa Madeleine Aumont. Esta alegou ter tido 49 revelações, a partir de 1972, relacionadas com a construção de uma cruz monumental, de mais de 700 metros. Como ninguém se aprestasse a construir a dita, o movimento acabou por se dedicar à distribuição de cruzes mais pequenas, que chegaram a Portugal, com a denominação "cruzes do amor", por via da nossa conhecida Fraternidade (e com o concurso por exemplo de António Sousa Lara, subsecretário de Estado da Cultura num governo de Cavaco Silva e ligado aos setores mais conservadores da Igreja Católica).
A "vidente jugoslava" (na verdade bósnia, de Medugorje) referida pelo presidente da junta na conversa com o DN pertence a esse movimento e esteve em Requião em 2011. Mas já em 1999 o Público citava uma "religiosa" da Fraternidade que indicava as cruzes como "a única tábua de salvação que nos levará de regresso a Deus" e "um elemento purificador da própria Igreja Católica" que teria deixado de ser "alternativa ou diretriz para os tristes males da sociedade contemporânea."
O jornal reproduzia também uma exortação apocalíptica, constante de um documento da Fraternidade: "A hora é grave. Serão os espíritos seduzidos por Satanás que conduzirão a humanidade a uma catástrofe como jamais houve desde o Dilúvio, e isto antes do fim do século". No mesmo texto do Público, o bispo de Beja, Manuel Falcão, falava das cruzes erguidas no seu distrito com desagrado, caracterizando-as como "uma epidemia".
No mesmo ano, em fevereiro, também no Público, uma moradora de Requião recordava ao jornal, "ainda com alguma mágoa, a forma como o padre Milheiros maltratou uma das irmãs da fraternidade, só porque ela, num momento de distração, deixou entrar um homem com o cabelo grande [tal como as mulheres de calças e decote, os homens de barba e cabelo comprido estavam impossibilitados de entrar no "convento"]. "Foi um horror", conta a senhora. "Não lhe bateu, mas esteve quase"".
No mesmo texto, afirma-se que "natural de Bragança, o padre Milheiros está há dezenas de anos na diocese de Braga, tendo chegado mesmo a ser o responsável por um movimento juvenil. Contudo, a forma como o sacerdote encarava a religião, ameaçando constantemente as pessoas de que ou cumpriam as suas ordens ou "iam para o Inferno", fez com D. Francisco Maria da Silva (antecessor de D. Eurico Dias Nogueira na diocese bracarense) lhe movesse um inquérito. Embora as investigações levadas a cabo pela diocese fossem inconclusivas, o padre optou por abandonar a vida ativa que levava e "refugiar-se" no convento que, entretanto, começou a construir num imenso terreno que comprou em Famalicão."
Cinco anos depois do artigo no Público, porém, algo muito mais gravoso que a epidemia das cruzes e profecias apocalípticas chamou a atenção para o falso convento: era ali encontrada morta, afogada num tanque, uma das supostas "noviças", Maria Amélia Serra, de 55 anos, que pertenceria à Fraternidade desde 1979.
Oriunda de uma família "bastante religiosa" da aldeia de Curvos (800 habitantes), em Esposende, Maria Amélia teve, de acordo com a diretora de O Povo Famalicense, que seguiu o caso, conhecimento da Fraternidade através da paróquia da sua terra. Arquivada como suicídio, a morte, que a acusação do MP considera "consequência do estado depressivo profundo" a que terá chegado "fruto da conduta dos arguidos", não terá desencadeado, à época, qualquer inquérito da arquidiocese.
Confrontado com o facto, Tiago Freitas considera que o DN "está a tentar ler um acontecimento à luz do que aconteceu agora. Isso foi há 15 anos. Houve uma investigação civil que considerou que se tratava de suicídio."
Mas um suicídio, e ainda mais num centro de pessoas supostamente muito religiosas para quem se trata de um grave pecado e que vivem 24 horas por dia juntas, não levanta dúvidas? Não faz soar campainhas? "Suponho que isso foi conversado", responde sucintamente o porta-voz, acrescentando: "As pessoas religiosas também são pessoas."
Em novembro de 2015, depois de ser conhecida a investigação criminal à Fraternidade e de os seus responsáveis terem sido indiciados, uma mulher, Helena Costa, veio a público apresentar a sua versão sobre o que lá se passava.
Disse ter começado a frequentar a Fraternidade quando esta estava instalada em Sameiro, também no distrito de Braga, e que em 1989, com 17 anos, quando aquela já se estabelecera em Requião foi lá passar uns dias e resolveu "entrar para a vida religiosa, mesmo contra a vontade dos pais." Na altura, contou em entrevista à SIC, "parecia-me um mar de rosas, sentia muita paz."
Viria no entanto a fugir, depois de ser alvo de agressões e de assistir a outras. Nomeadamente a Maria Amélia Serra: "Nós estávamos na missa e no final da missa ela tentou fugir. Mas a cadelita que tínhamos ladrou e o padre veio à janela e viu que ela estava a fugir e viemos atrás dela e toda a gente lhe começou a bater desalmadamente." O motivo das agressões, diz Helena, foi-lhe explicado: "Elas achavam que ela tinha o demónio no corpo e era preciso retirá-lo para ela ficar connosco. (...) Faz lembrar um bocado o jihadismo, que é levar demasiado à letra aquilo que leem."
A alegada carga de pancada coletiva em Maria Amélia descrita por Helena Costa, porém, parece quase uma brincadeira face ao que a acusação descreve como o quotidiano da mulher: seria "constantemente perseguida" pela arguida Maria Arminda, que "lhe desferia empurrões, arrancava-lhe o lenço durante as orações, dava-lhe pontapés nas pernas e bofetadas na cara": a "superiora" terá chegado mesmo, quando a vítima estava de cama com febre, a, "com o conhecimento e anuência dos demais arguidos," levar-lhe "o almoço composto de excrementos de cão, que atirou para cima da cama", tendo-lhos seguidamente esfregado na cara, mandando-a "ir lavar-se pois estava com o Diabo."
Na noite anterior à morte, Amélia teria sido mais uma vez insultada de "besta" e "infiel" por ter olhado para a TV - as mulheres estavam proibidas de ver televisão. E, de seguida, terá sido ainda obrigada a ficar de joelhos na capela e agredida.
A acusação atribui aliás a Maria Arminda, agora com 69 anos, a autoria da maioria das agressões, perpetradas com chicotes, pás, mangueiras, mas também com bíblias - é mencionado um episódio em que uma jovem de 20 anos terá perdido temporariamente a audição por ter sido agredida na cabeça com o livro.
A família de Amélia - como as das outras mulheres, eventualmente - deu-se conta daquilo que a acusação caracteriza como "restrição de contactos" e "vigilância constante". Isso mesmo foi testemunhado numa entrevista de um familiar de Amélia ao O Povo Famalicense, em 2015, na qual este falou de "práticas esquisitas" e de "uma organização onde as pressões eram notórias". Vincou que "Maria Amélia não esteve no casamento de nenhum familiar direto, e mesmo quando ia à terra, como aquando do funeral de um irmão, nunca o fazia sozinha: "Vinha sempre acompanhada de mais duas ou três."
Três ou quatro meses antes da morte de Maria Amélia terá ocorrido um episódio revelador. Acompanhado de outra familiar, o homem deslocou-se a Requião "para apelar a Maria Amélia para que regressasse à terra natal, para cuidar dos pais, que começavam a entrar num ciclo de dependência."
Narra o jornal: "Referindo-se àquela que é tida como irmã superiora do convento [Maria Arminda], descreve: "Ela apareceu do nada [julgavam estar a ter uma conversa privada], chegou lá, agarrou-a por um braço, e tirou-a da sala." Reagiu, diz, mas a freira [sic] foi levada pela superior hierárquica, com o argumento de que "não tínhamos o direito de a pressionar."" Depois disso, prossegue o relato do jornal, "só voltou a falar com Maria Amélia pelo telefone até que chegou a notícia do seu alegado suicídio."
O familiar explica que não foi feita mais pressão para saber o que tinha causado a morte porque "os pais, muito religiosos, não quiseram procurar fundamentos além dos que lhes foram apresentados", mas está convicto, diz o jornal, que "foram as pressões exercidas sobre Amélia que a provocaram."
Indicado nas notícias como o advogado dos cinco arguidos - incluindo a Fraternidade - Ernesto Salgado esclarece ao DN que neste momento representa apenas Maria Arminda --"Decidi em 2016 que não queria ser mais advogado deles" --, e que a sua constituinte, ao contrário do que diz a arquidiocese, "saiu da Fraternidade porque quis. É tudo mentira."
É o único comentário que faz ao comunicado que a instituição exarou na quarta-feira. Mas deixa uma pergunta: "Será que não voltaram algumas das que fizeram queixa? Olhe que eu acho que sim."
Também o presidente da junta de Requião tinha aventado essa hipótese ao DN; é algo que corre na região. Mas o porta-voz da arquidiocese nega: "Creio que não, que nenhuma dessas pessoas voltou para a instituição."
Nota: artigo alterado às 16.00 de 31 de maio, para incluir informação contida num artigo do Público de 1999, sobre um inquérito instaurado pela arquidiocese de Braga ao padre Joaquim Milheiro, nos anos 1970, e a narração de um episódio em que este terá sido violento com uma das "noviças".