Opinião. Empreender para integrar
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Opinião. Empreender para integrar

"Sem dúvidas, algo em nossa psique imigrante nos torna dispostos à entrega, e isso envolve dar ao país que escolhemos tudo de nós para fazermos dessa jornada um resultado positivo"
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Texto: Luísa Cunha*

Empreender para integrar. Essa frase pode parecer contraditória para muitos, pois, à primeira vista, não parece matematicamente correta uma equação em que adicionar uma jornada ainda mais desafiadora à imigração (empreendedorismo) possa resultar em um cenário positivo. Se fosse qualquer outra conta, eu concordaria. Mas, apesar de ser orgulhosamente de humanas, analisei com olhos numéricos o círculo de convivências que formei desde minha chegada ao país e notei que havia me passado despercebida a grande porcentagem de brasileiros e portugueses que conheço envolvidos no empreendedorismo e como os impactos de seus negócios geram ondas – aqui também um pouco de física – de aproximação entre as duas nacionalidades.

Colocando então a culpa no sinal percentual de exatas que me fez ignorar essa informação, permito-me, com toda a liberdade poética da minha formação sem números e Bhaskaras – perdão aos colegas de exatas, é o único nome matemático com o qual ainda sou íntima – levantar a seguinte hipótese: será que o segredo da integração não é justamente o poder de um sonho?

Sem dúvidas, algo em nossa psique imigrante nos torna dispostos à entrega, e isso envolve dar ao país que escolhemos tudo de nós para fazermos dessa jornada um resultado positivo. Descobri que há um batismo para isso: o que especialistas denominam de “empreendedorismo imigrante”, um nicho de estudos que confirma os devaneios psicológicos dessa escritora e afirma que nós somos naturalmente mais propensos a empreender, pois esse processo de mudança intensa revela nossas reais capacidades e impulsiona a realização de sonhos, deixando-nos com muito mais disposição – ou loucura – para enfrentar quaisquer desafios impostos.

Então, diagnosticamente falando, imigrantes são excelentes empreendedores e, para além das análises psiquiátricas, os números dão base ao "divã" estabelecido e demonstram um cenário português cada vez mais repleto de negócios advindos desse público no país. 

Dados divulgados pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM) afirmam que, já em 2020, 65% dos novos negócios em Portugal foram criados por cidadãos brasileiros, em diversos setores como serviços, gastronomia e moda. Já as pesquisas mais recentes divulgadas pelo Banco de Portugal e pela AICEP – Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal – revelam que os investimentos de empreendedores brasileiros no país chegaram ao montante de aproximadamente R$ 28 bilhões (€ 5,3 bilhões) de janeiro a setembro de 2023.

Temos os números e o respaldo de uma matemática na força de vontade, em fazer qualquer subtração virar algo positivo. Então, será que podemos considerar o empreendedorismo o X da questão? 

A lógica é que, estabelecendo seus negócios em Portugal, aqueles que se aventuram nessa conta incerta de empreender ao imigrar acabam por transportar de forma ainda mais acentuada uma expressão cultural e de representação fundamental da sua identidade imigrante para a cultura portuguesa. Ou seja, o empreendedorismo imigrante contribui não apenas para o desenvolvimento do setor econômico, mas também tem o poder de promover sutilmente uma maior compreensão entre as culturas por meio da linguagem universal do consumo e do estabelecimento de relações de confiança. 

Restaurantes, salões de beleza, lojas de moda e serviços especializados geridos por imigrantes trazem não apenas diversidade ao mercado, mas também a (re)apresentação da tradição e dos valores de seus países de origem. O mercado é um novo campo de diálogo e integração.

Teoria feita, equação criada, achei por bem, por minha pouca intimidade com a matemática, colocá-la à prova e conversar com alguns integrantes do meu círculo que vivem diariamente essa realidade empreendedora, de ambos os pontos de vista.

Começando pela visão portuguesa, Ana Cristina Faria, fundadora da Puranna e cofundadora da Norm, me deu um primeiro respaldo importante à minha conta. Ana afirma que, não apenas em volume, mas também no nosso “jeitinho”, temos nos tornado indispensáveis para o setor empreendedor de Portugal:

“O empreendedorismo imigrante tem um papel essencial na diversificação e inovação do mercado português. Passei cinco anos no Brasil, e os meus pais ainda têm negócios lá, o que me permitiu observar de perto como diferentes culturas empreendem e inovam. Vejo cada vez mais marcas lideradas por empreendedores estrangeiros crescendo em Portugal, principalmente nos setores de alimentação, moda e tecnologia.”

Aparentemente, uma conta fácil. Mas, tratando-se do contexto imigrante, seria irresponsável não ponderar variáveis de risco antes de tomar como certa a solução de incentivar o empreendedorismo imigrante como resposta absoluta às dificuldades de integração. Ainda na mesma conversa, Ana me alertou, sem jogar por terra as esperanças, para uma dessas variáveis:

“Para quem vem de fora, há incentivos específicos, mas o real desafio está na adaptação ao mercado português e à rede de fornecedores e parceiros locais. O setor têxtil, por exemplo, funciona muito através de relações de confiança construídas ao longo do tempo, algo que pode ser um obstáculo para quem chega sem uma rede estabelecida.”

Empreender no país de origem ou fora dele é certamente uma equação arriscada e complicada, mas não se pode ignorar o risco exponencial do imigrante que aplica seu empreendedorismo como incógnita. A tentativa de estabelecer um negócio sem um planejamento adequado e sem uma rede de suporte pode resultar em marginalização e aumento das dificuldades financeiras, deixando os aventureiros suscetíveis a situações de risco, não só profissionais, mas também pessoais, enquanto lutam por estabilidade em uma nova cultura, de vida e de mercado.

Ana chama atenção para alguns entraves que se igualam tanto na integração individual quanto no mercado e afirma:

“O desafio maior está na integração dentro da economia local e na construção de redes de apoio, especialmente em setores mais tradicionais. Mas acredito que há espaço para colaborações enriquecedoras entre negócios locais e estrangeiros, pois a troca de conhecimento e experiências pode ser extremamente benéfica para ambos.”

Um resultado empírico: ainda na linguagem mercantil, existem barreiras culturais a serem ultrapassadas e é necessário paciência para construção e adaptação. Ou seja, o imigrante empreendedor tem de vir investido de um espírito pitagórico para que dessa expressão saia inteiro. 

Naiane Ramalho, amiga brasileira que veio a Portugal não só pitagórica, mas também arquimediana, fundou a Essencial Service Clean e já faz do empreendedorismo sua única fonte de renda no país. Quando perguntei sua fórmula de sucesso, seu discurso se alinha à precaução mencionada por Ana e à variável também exclamada: não fazer da construção de um negócio uma resposta à dificuldade de estabelecimento financeiro e ao anseio de pertencimento em um novo país.

Naiane afirma:

“Fiz uma preparação cuidadosa antes mesmo de chegar a Portugal, realizei uma pesquisa de mercado detalhada, contratei um contador português bem orientado e garanti que toda a documentação estivesse correta. Esses passos foram fundamentais para que o sonho de empreender não fosse apenas uma ilusão, mas um projeto. O sonho de abrir um negócio deve ser levado já com organização e clareza na mala, e não pode ser algo improvisado que surge em meio à pressão e à incerteza de uma nova realidade.”

Uma análise inteligente, responsável e precisa da inconstante que é o encontro de duas culturas e costumes diferentes. Imigrar demanda preparar-se para uma adaptação árdua, seja ela a nível individual ou ao nível de mercado, e desconsiderar esse passo importante pode resultar na incompreensão do que significa somar-se à cultura local, confundindo obediência e ajuste à realidade do país com uma mandatária submissão à cultura portuguesa.

Como já apontado, a diversificação do mercado português pelos imigrantes é uma resposta natural e necessária à própria diversificação da população do país. Por essa essência contributiva de multiculturalidade, adequar-se às normas, características de personalidade e regras do mercado ou da sociedade portuguesa não significa submeter você ou seu negócio completamente às vontades locais, mudando sua essência ou limitando sua atuação, mas sim aceitar que a cultura local é uma conta à qual nos cabe acrescer, dentro do possível, absorvendo também sua exatidão.

Fazendo uso da única memória afetiva que tenho dos problemas matemáticos da escola – o Joãozinho e a divisão de suas laranjas –, o que quero dizer é que, ao imigrar, é preciso compreender que o “Joãozinho português” às vezes não gosta de sair dividindo suas laranjas à primeira vista. Ele é mais recatado e talvez um pouco menos sociável, mas não significa que nunca haverá uma partilha.

Uma hora, a laranja vira suco e o rateio fica mais simples. O que não simplifica, segundo os amigos empreendedores, é a “agência reguladora das laranjas.” codinome para a burocracia portuguesa, que ao menos é um divisor comum. 

Ana afirma que esse é realmente um desafio para todos os negócios iniciantes. Naiane confirma e ressalta que a burocracia – especialmente em questões como financiamentos e legalizações – foi um obstáculo maior do que a sua adaptação ao mercado e também aceitação do público português:

“Para qualquer empreendimento crescer e se desenvolver, é necessário investimento. E, para conseguirmos o nosso primeiro financiamento, foi necessário muita persistência e comprovação da nossa responsabilidade social.”

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Outro amigo empreendedor, Marcos Monteiro, fundador do Delícias de Pernambuco, reforça essa perspectiva e afirma que, mesmo tendo se planejado, ainda não encontrou instituições que abraçassem seu empreendimento com financiamento:

“No entanto, a aceitação do público tem sido positiva, com uma proporção de 80% de clientes brasileiros e 20% portugueses.”

Os sonhos seguem movendo montanhas e a soma dos quadrados da hipotenusa dos desafios da imigração resulta, para aqueles que empreendem no país, em mais uma força. Ainda que não seja um resultado exponencial imediato. Marcos, por exemplo, relata que seu negócio ainda não é sua única fonte de renda e não garante sua manutenção no país:

“Ainda temos um caminho a trilhar. Hoje, o meu negócio ainda é de pequeno volume e está crescendo para que eu consiga obter um resultado significativo. No entanto, percebo a necessidade de um plano de negócios e de um financiamento a longo prazo para que, desta forma, essa concretização seja mais viável e eu consiga, com isso, também gerar empregabilidade.”

Sorte a nossa, e do mercado português, que brasileiro = não desiste nunca, e que estamos, munidos da psique imigrante, dispostos a fazer da realização de sonhos um número incontestável. 

Empreender ao imigrar, certamente, depois dessa imersão matemática e psicológica, desenha a geometria de uma ponte entre culturas, mas que requer um cálculo cuidadoso para que o imigrante não faça desse projeto um pesadelo de desabamento de sua oportunidade de adaptação em Portugal.

A integração pode ser que realmente encontre resolução no poder de um sonho de empreendedorismo, já que este ato, quando feito responsavelmente, resulta na verdadeira aproximação, que não se dá pela assimilação absoluta, mas sim pelo encontro de histórias, valores e experiências que, somadas, geram um mercado mais vibrante e uma sociedade mais rica em identidade e oportunidades.

Enfim, um respiro e um ponto de interseção gráfico incontestável entre brasileiros e portugueses.

*Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicado à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.

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