A confiança é a pedra basilar do Serviço Nacional de Saúde (SNS), um laço implícito entre profissionais de saúde e cidadãos. Nas últimas semanas, porém, esse laço foi posto em causa por notícias de alegadas práticas inaceitáveis. A erosão da confiança é talvez a consequência mais grave destes episódios, uma vez que fragiliza toda a estrutura do SNS. Perante isso, impõe-se uma resposta firme, serena e determinada, à altura da gravidade da situação.
Assim que o primeiro caso se tornou público, a Ordem dos Médicos dirigiu um ofício urgente à ULS Santa Maria e, simultaneamente, ofereceu total colaboração técnica à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS), na sequência do anúncio de auditorias nacionais alargadas ao SIGIC (Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia). A mensagem foi clara: total disponibilidade para cooperar e apurar a verdade, sem hesitações ou contemplações.
A Ordem dos Médicos dispõe de mecanismos próprios de avaliação deontológica e disciplinar, que não hesitará em acionar sempre que se confirmem violações da ética médica. Mas é fundamental sermos claros e justos: a esmagadora maioria dos mais de 32.000 médicos, que servem o SNS diariamente, fá-lo com seriedade, competência e enorme espírito de missão. São eles que sustentam, com esforço incansável, um sistema cada vez mais vulnerável. São também eles que trabalham com os salários mais baixos da Europa, enfrentam todos os dias condições profissionais difíceis, exigentes e, por vezes, até indignas. Muitos, já sem alternativas, acabam por sair do SNS, em busca de estabilidade, reconhecimento ou simplesmente respeito, noutros setores de atividade e até na emigração.
É inaceitável que estas situações localizadas, ainda que amplamente divulgadas, possam pôr em causa o valor, o compromisso e a dignidade dos médicos que se mantêm firmes ao lado dos doentes, mesmo perante as adversidades constantes. A generalização injusta é tão perigosa quanto a complacência, e ambas devem ser rejeitadas com igual determinação.
Desde, pelo menos, 2019 que a Ordem dos Médicos tem sinalizado junto das entidades competentes (Administração Central do Sistema de Saúde, Direção Executiva do SNS e Ministério da Saúde) situações desconformes, incongruências (como cirurgias complexas e prolongadas menos valorizadas que cirurgias menores) e riscos nos modelos funcionais, infelizmente sem que esses avisos tenham recebido a necessária atenção. É evidente que, se os alertas da Ordem dos Médicos tivessem sido levados a sério, não estaríamos seguramente na situação preocupante em que hoje nos encontramos.
Restaurar a credibilidade do SNS exige uma mudança profunda na cultura organizacional e nos processos operacionais. Para isso, é fundamental implementar um plano de gestão robusto, transparente e aberto ao escrutínio público, que assegure a integridade clínica e administrativa, evitando a repetição de episódios que minam a confiança pública. Os programas de combate às listas de espera para consultas e cirurgias são essenciais para dar uma resposta eficaz às necessidades dos doentes e, por isso, devem ser mantidos. Simultaneamente, é indispensável tornar o SNS mais competitivo e atrativo para os médicos, de modo a responder eficazmente à grave escassez de recursos humanos que atualmente enfrenta. Mas, para já, é imperativo reformar profundamente o sistema de resposta às listas de espera, ancorando essa mudança em cinco medidas essenciais:
1. Validação clínica independente dos atos codificados – verificações regulares para assegurar que os atos médicos registados correspondem à realidade clínica;
2. Sistemas de alerta precoce para produção anómala – ferramentas centralizadas na Direção Executiva do SNS para detetar automaticamente padrões anómalos;
3. Controlo externo regular e independente – auditorias externas frequentes, com relatórios públicos dos resultados;
4. Avaliação rigorosa da efetividade e qualidade assistencial – indicadores que avaliem não apenas a quantidade, mas sobretudo o impacto real dos cuidados na saúde dos doentes;
5. Inclusão formal da Ordem dos Médicos em todo o processo – participação da OM desde a conceção até à avaliação dos programas, assegurando supervisão técnica e deontológica contínua.
Este é um apelo à responsabilidade partilhada. É o momento de reafirmarmos os princípios éticos e de humanismo que guiam o SNS e de implementar mudanças corajosas que coloquem a transparência e o foco em cuidados de saúde de qualidade. Só assim poderemos reconstruir a confiança abalada. Com determinação e união, será possível restaurar a integridade do sistema e assegurar que ele permanece forte, justo e humano. A Ordem dos Médicos continuará empenhada na defesa deste legado, do qual todos nos devemos orgulhar e que temos o dever de preservar.
Bastonário da Ordem dos Médicos