À beira do Mediterrâneo vive um povo abandonado
As imagens que nos chegam de Gaza são difíceis de ver e ainda mais difíceis de aceitar. A destruição de bairros inteiros, o colapso de hospitais, o bloqueio à ajuda humanitária, o número crescente de civis mortos - muitos deles crianças - compõem o retrato de uma tragédia humana de proporções devastadoras.
Importa, desde logo, fazer duas distinções fundamentais. A primeira é que o povo palestiniano não é o Hamas. Confundir uma organização armada com uma população inteira de milhões de pessoas é um erro trágico. O Hamas não representa a totalidade dos palestinianos e a sua agenda político-militar não pode servir de justificação para punir coletivamente uma população indefesa.
A segunda é o espelho da anterior. O povo de Israel não se confunde com o seu governo. Israel é uma sociedade plural, onde coabitam opiniões divergentes, valores democráticos e uma História marcada tanto por sofrimento como por resistência. Criticar a ação de um governo não significa questionar a legitimidade de um povo. Não é o povo de Israel que está a violar as leis da guerra e os direitos das pessoas em Gaza. São decisões políticas de um governo que devem ser avaliadas à luz do direito internacional.
Israel tem o direito de se defender, como qualquer Estado soberano. Mas esse direito não é absoluto. O direito internacional humanitário estabelece regras claras: a distinção entre combatentes e civis, a proteção de infraestruturas de saúde ou a proibição de castigos coletivos. Esses princípios não são sugestões morais, mas obrigações jurídicas e são especialmente vinculativas para os Estados democráticos.
É aqui que o futuro de Gaza se cruza com o futuro da ordem internacional. As democracias não podem invocar os Direitos Humanos quando lhes convém e ignorá-los quando se tornam politicamente incómodos. Têm, pelo contrário, a responsabilidade acrescida de serem o exemplo, porque são elas que garantem os princípios da Carta das Nações Unidas, que redigiram as Convenções de Genebra, que proclamaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A coerência dos seus atos é essencial para a credibilidade da ordem internacional que ajudaram a construir.
O abandono do povo palestiniano é também um erro trágico que alimenta o extremismo, fragiliza o direito internacional, desacredita os próprios princípios em que se funda o mundo democrático e mina a ideia de que há regras comuns e universais, que protegem todos os seres humanos, independentemente da sua origem, fé ou geografia.
Já é mais que tempo de agir com coragem e coerência. De exigir um cessar-fogo imediato, garantir acesso pleno à ajuda humanitária e relançar, com seriedade e vontade política, o processo político credível que assegure dignidade, segurança e reconhecimento mútuo para os povos da região. Esse processo, como proclamam resoluções sucessivas das Nações Unidas, passa por uma solução que permita a coexistência pacífica, viável e em condições de segurança do Estado de Israel e do Estado da Palestina.
Professor Convidado IEP/UCP e NSL/UNL