Xexão (1937-2021)

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A noite ainda não denunciava a chegada de primavera quando, entre o mato junto a Caxias, um punhado de próximos e amigos procurava distingui-la entre as grades do cárcere. Em 1974, a três semanas do 25 de Abril, Maria da Conceição Moita, presa política, celebrou o seu aniversário à distância e através de um sinal. De acordo com o que já se pode chamar lenda, empunhou um roupão vermelho (uns dizem cachecol, outros uma manta, todos recordam a cor), como que saudando aqueles que, lá ao fundo, escondidos nas árvores, a esperavam a ela e à liberdade.

A liberdade não tardou. E há uma célebre fotografia, ainda a preto e branco, que retrata a sua libertação, logo no dia a seguir à revolução dos cravos, levada em braços. Católica, progressista, antifascista, Maria da Conceição Moita, carinhosamente chamada entre os seus por Xexão, faleceu na madrugada desta segunda-feira, aos 83 anos, vítima de doença oncológica.

O seu percurso e a sua história enquanto portuguesa são, em tudo, excecionais e constantemente à frente do seu tempo. Da luta contra o colonialismo e contra a guerra à proteção social daquelas levadas à prostituição e aos sem-abrigo, passando, mais recentemente, pelo ativismo contra a invasão do Iraque, Xexão era uma mulher de causas. Refugiou em sua casa múltiplos oposicionistas ao Estado Novo, deu boleias a vários obrigados a passar à clandestinidade e foi presa pela polícia política, no final de 1973, e vilmente torturada.

Apesar de contemporânea e camarada de grupos defensores de ação armada contra o regime, recusou sempre qualquer lógica que não assente na paz ou próxima de violência. O seu método era outro, que perduraria: a tolerância, como princípio; a pedagogia, como meio; a justiça, como fim.

Filha de um industrial de Alcanena e de mãe profundamente católica, nasce no final da década de 1930. Vem para Lisboa dez anos depois, com um dos irmãos, e inicia uma jornada apaixonada pela educação, primeiro de crianças, depois focada na formação de professores. Escreveria mesmo um livro dedicado a um conjunto de princípios para uma ética própria da missão educadora, depois de ser diretora na Casa Pia, professora na Escola Superior de Educação de Lisboa e, incansavelmente, empenhada na animação comunitária. Fundou também grupos duradouros de debate e participação cívica como os "Cristãos em reflexão permanente" e os "Cristãos pelo socialismo", sendo peça-chave da organização das assembleias de cristãos realizadas depois do 25 de Abril.

Também a conheci, como paroquiano da Igreja de Santa Isabel, mas não sendo seu vizinho. Recordo-me, como criança, de nunca a ter cumprimentado sem receber um sorriso de volta. Como se a alegria, em Xexão, fosse parte da sua natureza, da sua vida, tão heroica e ao mesmo tempo trágica, e do seu dia-a-dia, depois, em democracia, connosco. Era como se aquela senhora, que surgia atempadamente na escadaria junto à sala da catequese, comemorasse diariamente, a cada momento, o facto de ser livre. E da liberdade, como ela dizia, exigir libertação.

Margarida Pinto Correia, sua afilhada, escrevia-me há dias que a Xexão faria anos para a semana... "livrem-se de não a celebrar". E talvez seja mesmo assim, numa distância menor do que aquela de há 47 anos, já não separados por muros mas pelo tempo, a consigamos avistar, acenando um tecido vermelho, a que ela chamou liberdade.

"Não tenho medo de morrer porque vou ver Deus", dizia ela. Eu não tenho dúvidas.

Colunista

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