Woody Allen e Diane Keaton em 'Manhattan' (1979).
Woody Allen e Diane Keaton em 'Manhattan' (1979).

Woody Allen em Moscovo

Como se relacionam “arte” e “política”? A pergunta tem tanto de primitivo como de atual e urgente.
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Há cerca de um mês, através de uma ligação pela internet, Woody Allen participou numa conversa realizada no âmbito de uma semana de encontros cinematográficos, em Moscovo (cuja designação internacional é Moscow International Film Week). O diálogo que estabeleceu com o cineasta Fyodor Bondarchuk (autor, por exemplo, de Estalinegrado, um épico de guerra lançado em 2013) suscitou uma reação oficial do ministério dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, considerando que “a participação de Woody Allen na Moscow International Film Week é uma desgraça e um insulto ao sacrifício dos atores e cineastas ucranianos que foram mortos ou feridos pelos criminosos de guerra da Rússia”, acrescentando que “a cultura nunca deve ser usada para branquear crimes ou servir de instrumento de propaganda.”

A difusão do ponto de vista de Woody Allen sobre a sua conversa com Bondarchuk encontrou um eco incomparavelmente menor na imprensa internacional. Assim, numa declaração prestada ao jornal britânico The Guardian (25 agosto) o realizador de Manhattan (1979), Zelig (1983) e Blue Jasmine (2013) disse: “Sobre o conflito na Ucrânia, acredito fortemente que Vladimir Putin está totalmente errado [totally in the wrong]. A guerra por ele causada é terrível. Mas, seja o que for que os políticos tenham feito, não sinto que pôr fim às conversas artísticas possa ser uma boa maneira de ajudar.”

Woody Allen e Diane Keaton em 'Manhattan' (1979).
Woody Allen e Diane Keaton em 'Manhattan' (1979).

A este propósito, convém lembrar que há um setor significativo (mais do que isso: maioritário) da chamada comunicação social que passou a difamar automaticamente Woody Allen depois das acusações de assédio sexual de que foi alvo - as formas de achincalhamento do cineasta e escritor omitem quase sempre o facto de ele ter sido ilibado das duas vezes que foi julgado (omissão que The Guardian não faz). Na passada segunda-feira, a propósito do evento de Moscovo, o jornal francês Libération publicava mesmo um texto, assinado por Arthur Cerf, em cujo título Woody Allen é descrito pela expressão “o avôzinho faz a sua resistência” (“papy fait de la résistance” evoca o título de uma comédia de 1983 tendo por pano de fundo a Segunda Guerra Mundial).

Contrariando a demagogia de muitos clichés televisivos (que um jornal tão importante como o Libération aceita aplicar), é preciso acrescentar que a chamada de atenção para o simplismo deste modo de entender a informação jornalística não é o mesmo que santificar Woody Allen ou quem quer que seja. Acontece que não faz sentido pedir justiça para os atos de alguém que é julgado e, depois, descartar o facto de essa mesma pessoa ter sido considerada inocente (pela justiça, precisamente). A esse nível mediático, o caso de Kevin Spacey é também sintomático: às especulações em torno das acusações de assédio de que foi objeto foi dado mil vezes mais espaço do que ao facto de os tribunais o terem ilibado de todas essas acusações - além do mais, cortando uma carreira de puro génio interpretativo, estando por provar que semelhante cancelamento profissional seja uma vitória no combate contra as formas de violência sexual.

Escusado será dizer (mas talvez não seja escusado...) que a posição do governo ucraniano tem de ser entendida, não como uma mera demarcação dos atos de Woody Allen, antes como reflexo do sofrimento atroz a que a agressão de Putin tem sujeitado todo um país. Apesar disso, ou justamente por causa disso, talvez seja útil perguntar como e porquê passámos a ser dominados (porventura tentados) por um jornalismo que, menosprezando a complexidade das artes, apenas se preocupa com os rótulos de “puro” ou “impuro” que vai colando a alguns artistas.

Em boa verdade, Woody Allen nem sequer está a “justificar” a sua arte. Limita-se a lembrar que o território artístico talvez possa ser - continuar a ser - um espaço de fronteiras mais ágeis, no interior do qual o valor primordial do diálogo persiste, mesmo contra as clivagens que as convulsões políticas, militares e económicas vão desenhando no mapa dos nossos valores e ideias. Entretanto, a ideologia dessa autoproclamada “pureza” vai marginalizando os “pecadores” deste mundo, celebrando uma cultura que já não se define pelos valores que defende mas pelos castigos que aplica.

Jornalista

Diário de Notícias
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