'White saviors' e o impossível debate sobre culturas

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Na minha última viagem ao Iraque sucedeu uma coisa interessante: num restaurante perguntei, à hora da sobremesa, “se tinham uma laranja”. Logo salta um colega alemão, intitulado como “promotor do diálogo tolerante inter-religioso”, muito ofendido. Claro que têm laranjas, o que acha que isto é? O fim do mundo? Pedi muitas desculpas ao senhor que nos servia, que nem percebeu bem onde estava o problema. E expliquei que, em Portugal, era normal e delicado falar-se assim. Não interessava, porque o colega alemão queria salvá-lo de mim, branca e ignorante, e a sua superioridade moral era o que importava demonstrar ali.

Na Índia tive outra experiência: uma amiga de lá quis oferecer-me um sari. Não quis aceitar: se usasse essa peça de roupa iriam considerar “apropriação cultural”. Ela não percebeu o conceito. Adorava ver as ocidentais com saris, sente a sua cultura a ser valorizada.

Tenho percebido que há uma tipologia de personagem que se autopromoveu a detentor paternal da defesa das outras culturas. O white savior é um ditador, e ao querer proteger tanto os oprimidos, cai em dois erros: trata-os de forma paternal, como povos dóceis que precisam que falem por eles, e vê os demais ocidentais como um conjunto de gente desprezível que não vê a luz.

A histeria com o discurso de Pedro Nuno Santos, ao falar da preservação da cultura portuguesa no âmbito da política de imigração, mereceu alguns discursos deste tipo. Onde já se viu falar de preservação de cultura portuguesa? Isso é ofensivo para quem chega. Até se nega que exista semelhante coisa, uma cultura portuguesa. Mas, paradoxalmente, defende-se o direito inalienável dos migrantes a manterem a sua própria cultura cá.

Acho mesmo possível ser-se acolhedor, combater o racismo e xenofobia, e considerar que temos um património cultural a preservar. Parte desse património permite que uma mulher portuguesa possa estar aqui a opinar, num jornal público. Isso não existe em alguns países que visitei em trabalho. A minha cultura não é menor do que aquela que visam “salvar”, e eu gostaria de a manter, por ter tido a imensa sorte de ter nascido neste país. Assim, se algum dia alguém a ameaçar, seja de onde for, devemos ser firmes na sua preservação.

Importa fazer o necessário disclaimer: não estou a dizer que os fluxos migratórios são uma terrível ameaça. Acredito mesmo que quem traz culturas diferentes pode enriquecer culturalmente o nosso país. Mas não estou disponível para transacionar o nosso modo de vida - que afinal é até bastante confortável para os próprios white saviors - em nome de filosofias decididas por ONG em competição.

Temos de aceitar abertamente que os novos fluxos migratórios são diferentes e mudam a nossa população. Sim, vêm pessoas de outras civilizações. E está tudo bem. Importa é perceber como podemos conviver e enriquecer-nos mutuamente. E nada melhor do que falar com as culturas em si. Explicar o nosso modo de vida, e sublinhar que é importante manter o que é essencial. E sim, enriquecermo-nos com o modo de vida delas, desde que não perturbe o nosso.

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Investigadora do Lisbon Public Law

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