WandaVision: qual é o som de uma mão a nunca parar de bater palmas?
Em Junho de 1942, Nabokov escreveu um poema sobre o esperma do Super-Homem. Numa carta ao editor da New Yorker, confessou recear que alguns versos fossem demasiado arriscados para as páginas da revista, mas pedia humildemente "honorários adequados" caso fosse aceite. O poema viria a ser recusado pelo editor, e permaneceu inédito até esta semana, quando o académico russo que descobriu o manuscrito num caixote em Yale o conseguiu publicar no Times Literary Supplement. "Sou jovem e transbordo de seiva prodigiosa", começa uma das estrofes. Alguns versos depois, o homem de Krypton reflecte sobre o risco elevado de estragar a noite de núpcias assassinando Lois Lane com o seu "jacto de amor".
O episódio é uma curiosidade histórica que mostra indirectamente um dos principais imperativos da história de super-heróis (obter "honorários adequados") e uma intuição razoável sobre a margem de manobra para ultrapassar os limites intrínsecos ao género: a força da ejaculação do Super-Homem consegue espremer-se, salvo seja, num poema cómico de 40 linhas, ou (como fez Mallrats algumas décadas mais tarde) num breve diálogo cómico a meio de um filme, mas provavelmente não é um tema que sustente digressões mais amplas.
WandaVision, a mais recente prestação na hipoteca infinita que é o Universo Marvel, também começa como um exercício semicómico sobre a intimidade de super-heróis. Os protagonistas são Vision, um super-robô construído a partir de materiais extremamente mágicos, e Wanda Maximoff, uma superbruxa que consegue transformar tudo em materiais extremamente mágicos. Filmes anteriores estabeleceram alguma intimidade entre os dois, e Avengers: Infinite War matou Vision, usando para o efeito uma das categorias de morte mais comuns no grande universo das franchises: a "morte-aparentemente-irreversível-ou-será-que-é-mesmo-não-esperem-desta-vez-é-mesmo-irreversível-ou-será-que-é-mesmo".
Em WandaVision, Vision está vivo outra vez (ou será que está mesmo?), e ele e Wanda são um casal feliz numa sitcom dos anos 50, com todos os apetrechos visuais e narrativos apropriados. A decisão de aplicar a lógica do sketch humorístico a um formato mais extenso é ousada, mesmo que a ousadia não venha acompanhada de qualquer outra virtude. O processo criativo, aliás, não deve ter sido muito diferente do que levou Nabokov e Kevin Smith a investigar filosoficamente a potência hidráulica do Super-Homem: não seria giro submeter criaturas cinemáticas praticamente omnipotentes aos espartilhos artificiais e quase sub-humanos das convenções televisivas de décadas anteriores? E é giro, de facto, durante aproximadamente três minutos e meio.
O primeiro episódio dura bem mais do que isso, e até as molduras do episódio duram mais do que isso. Primeiro temos um genérico falso, depois o genérico verdadeiro. Passados vinte minutos, temos os créditos finais falsos, antes dos créditos finais verdadeiros, que duram uns inacreditáveis quatro minutos e meio, e parecem incluir os nomes de metade da população do hemisfério. (No meio dos prosaicos "product placement executive" e "key second assistant accountant", alguns dos cargos técnicos parecem vilões menores no panteão da Marvel: "Painter Gangboss", "Construction Timekeeper", etc.).
Episódios posteriores vão actualizando o exercício - das sitcoms da década de 60 aos mockumentaries da viragem do milénio - sem nunca serem exactamente paródia nem pastiche. Efeitos são imaculadamente reproduzidos sem que ninguém se consiga divertir muito com eles, ou confirme uma intenção mais específica do que preparar uma referência para ser correctamente identificada. A enxurrada de precedentes tem o efeito colateral de nos recordar que todos os aparentes superavits imaginativos da série já foram gastos noutros sítios: entre o purgatório artificial de "It's a Good Life" (Twilight Zone), os anúncios falsos de Ubik (Philip K. Dick), os subúrbios enclausurados de Truman Show ou Pleasantville, e as paródicas reduções ao absurdo de sitcoms em Stay Tuned ou Assassinos Natos, não há rigorosamente nenhuma ideia inovadora em WandaVision, nem outro mérito a não ser a bagagem que transporta, e a filiação numa paisagem narrativa aparentemente infindável.
Decidir se tudo isto é "bom" ou "mau" é querer aplicar os critérios certos ao objecto errado: fará tanto sentido como perguntar se um brinquedo de infância é bom ou mau, ou se as fotos num álbum de família têm ou não qualidade artística. Como quase todos os produtos MCU, WandaVision é feito por pessoas competentes e inteligentes que aprenderam, de forma competente e inteligente, aquilo que qualquer modelo de produção cultural intensiva aprende mais tarde ou mais cedo: co-optar as estratégias e mecanismos do avant-garde para propósitos comerciais.
Não existe série televisiva tão auto-referencial e intertextual como WandaVision; o resultado final, de resto, seria uma bizarria irrelevante e indecifrável para qualquer pessoa sem um conhecimento rudimentar tanto do universo Marvel como da história das sitcoms. A sementeira de alusões, a construção gradual de ecos e simetrias, a preparação paciente de fugazes momentos de reconhecimento com horas (ou anos) de antecedência: tudo isto faz parte do modo como, por exemplo, a ficção literária funciona. O problema do Universo Marvel é a utopia de auto-suficiência: o instinto para reduzir todo o campo alusivo ao seu próprio genoma - a sua colecção de direitos de autor e propriedade intelectual - e o instinto paralelo para deixar que as memórias acumuladas por anos de saturação cultural façam o trabalho de sapa nas emoções do espectador.
A reacção crítica a WandaVision veio acompanhada das muletas e andaimes habituais: artigos didácticos online ajudando a descodificar todas as "referências escondidas", e elogios pouco cautelosos à forma "subtil" como a série "explora" temas "sérios", como "trauma", "mágoa" e "luto". Enquanto exploração destes temas, honra lhe seja feita, WandaVision não é mais nem menos banal do que muita ficção televisiva moderna, que há muito consolidou a fórmula operativa, baseada na predilecção tipicamente americana para administrar a tristeza de formas sistemáticas e elaboradas: purgatórios éticos autocontidos com curva de aprendizagem, onde a personagem principal tem de identificar o seu dano psíquico, assumir o mal que sofreu, e crescer enquanto pessoa. Esta narrativa terapêutica descreve à vontade umas vinte séries recentes, executadas com variados grau de sucesso, e nula variação de interesse: impondo limites artificiais a algo que é organicamente desprovido de contornos e vulgarizando emoções complexas num conjunto de passos predeterminados. Nesse sentido, a sua instrumentalização acaba por ser mais honesta num produto como WandaVision : algo que, como todos os seus antecessores nos universos Marvel e Disney, tem a cadência e a forma de uma história, mas funciona exacta e exclusivamente como um prospecto comercial, ou um anúncio aos próximos capítulos.
Como estrutura de marketing, a franchise torna inviável a construção criativa de contradições ou ambiguidades locais. Todo esse potencial imaginativo é necessariamente subordinado a uma exigência mais ampla, que é a mera ideia de continuidade: as histórias podem ter créditos finais, mas nunca podem chegar ao fim. O que isto cria é um estilo de observação que exalta e reduz em simultâneo: transforma tudo o que vemos em algo que merece a máxima atenção e não tem a mínima importância, e cujo único propósito é desmultiplicar-se em reacções efémeras e na promessa de regressarmos. WandaVision termina como terminaram todos os "capítulos" anteriores - figuras sobre-humanas a combater no ar, a arrasar paredes, a destruir pavimentos - com o verdadeiro significado tornado explícito nos últimos segundos: fiquem aí, isto ainda não acabou, há mais histórias a caminho, o melhor ainda está para vir.
Escreve de acordo com a antiga ortografia