Vozes das Margens

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Está a decorrer o DocLisboa, um festival que vai na 22.ª edição, este ano sob a direção da mexicana Paula Astorga Riestra, cineasta, produtora, ex-diretora da Cinemateca Nacional do seu país. Sempre entendi o documentário como um modo de intervenção, um recorte crítico da realidade que expõe pessoas, lugares, acontecimentos, desarmando a nossa indiferença ou desconhecimento.

Merece uma palavra de louvor a AporDoc pelo esforço bem-sucedido de décadas para internacionalizar o programa deste festival. Na passada sexta-feira, foi exibido o documentário Vozes das Margens, realizado pela brasileira Ana Maria Carvalho, professora de sociolinguística na Universidade do Arizona (EUA). Embora já conhecesse alguns fragmentos do filme, aqueles 72 minutos foram um murro no estômago pela forma como expõe a segregação sofrida por uma comunidade por causa da sua língua.

O documentário centra-se na fronteira do Uruguai com o Brasil, onde se utiliza um idioma entre línguas e, por isso, muitas vezes designado “portuñol” ou português uruguaio. A maioria dos seus falantes quer salvaguardar esse linguajar como herança dos ancestrais, mas expõe as humilhações sofridas na escola e outros contextos. Percebem-se as experiências dolorosas e o estigma que leva os mais novos a rejeitar e criticar os mais velhos por não adotarem o uruguaio, quer dizer, o espanhol. 

Tem havido movimentos de salvaguarda desta língua como um património que importa preservar. A resposta à pergunta se vale a pena esse esforço é-nos dada por um dos seus falantes: cada língua é uma visão do mundo que desaparece quando também ela se extingue. 

Fabián Severo, autor de Poemas em Portuñol, recebeu em 2017 o Prémio Nacional de Literatura do Uruguai pelo romance Viralata, escrito nessa língua de fronteira, importante reconhecimento do seu valor e das suas gentes, quase sempre associadas à pobreza, à ignorância e à exclusão.

Essa exclusão não acontece apenas com línguas minoritárias e em vias de desaparecimento, mas também com línguas da dimensão do português. Vozes das Margens fez-me recordar situações dos nossos emigrantes: crianças e jovens marginalizados por não dominarem (perfeitamente) a língua local, envergonhados por falarem português. Encarregados de educação divididos entre o desejo de manter a ligação às raízes e o temor de verem os filhos prejudicados. A língua portuguesa tratada como “exótica”, “minoritária”, “língua de migrantes”. 

Em Portugal, talvez pela experiência de povo viajante, tem havido esforço (que precisa de acompanhamento e formação de professores) para a integração dos migrantes. Atualmente, na maior parte das salas de aula, cruzam-se nacionalidades, línguas e culturas. Façamos um esforço para que as vozes destas margens sejam entendidas como riqueza para compreender o mundo. Afinal as fronteiras estão onde as queremos erguer.


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