Votar em Donald Trump

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“O medo da diminuição da América é uma coisa que muitos americanos sentiram depois do 11 de Setembro e continuam a sentir. Serem diminuídos é muito assustador para os americanos”
Jennifer Egan

Depois de quatro anos de presidência inaceitável, depois da invasão do Capitólio, depois do negacionismo da derrota eleitoral, é possível votar em Donald Trump e não ser contra a democracia?

O que levará tantos milhões de americanos a mostrarem-se inclinados a, de forma livre, optar pelo regresso à Casa Branca de quem atacou a democracia americana, mentiu descaradamente, insultou adversários e até aliados?

Como compreender que alguém sem qualquer sentido de moral ou tolerância democrática possa voltar a ganhar, apesar de tantas e repetidas de que é um perigo real para a democracia de referência do mundo liberal?

Donald Trump aproveitou o desatino em que tinha caído o Partido Republicano (multiplicação de candidatos nas primárias para 2016, centro moderado atirado para um nicho minoritário, perante o crescimento avassalador do Tea Party e dos candidatos da direita radical) e soube antever as dificuldades que Hillary Clinton iria sentir para segurar a “maioria Obama”, sobretudo nos estados do Midwest.

Jogando o trunfo de “não ser um político”, Trump capitalizou década e meia a aparecer na TV em reality shows com milhões de telespetadores. Sem ninguém se aperceber muito bem disso, estavam aí os seus eleitores - a já lendária “base eleitoral”.

“Os telespetadores são eleitores. Eu sei que a elite acha que Trump, quando apresentava o Apprentice, era visto por milhões de americanos como apenas um entretenimento, algo que se sabia artificial, não para levar a sério… Que uma coisa é informação, outra espetáculo. Mas não. Não é assim. Para milhões de pessoas, é tudo televisão. Se um tipo ricaço está ali com um ar presidencial, numa pose perfeita, ele parece melhor que os políticos “normais”. O que é que ele parece? Parece um Presidente!”, atira Roger Stone, conselheiro de comunicação de Trump há mais de 30 anos.

Na última década, os estudos de opinião indicam que perto de 90% dos eleitores americanos reprovam o desempenho dos “políticos de Washington”. Ora, o que Trump explorou ao limite nas três campanhas presidenciais seguidas que já leva (2016, 2020 e agora 2024) é a narrativa de que ele, que nunca havia ocupado um cargo político eleito, surgiu para “drenar o pântano” e derrotar o “establishment político”.

Parece quase uma piada, vindo de alguém que durante décadas financiou esse mesmo sistema e que usou um dos dois partidos do sistema para chegar à Casa Branca. Mas a alta política americana nunca para de nos surpreender.

Uma forma autoritária de fabricar a “verdade”

Os apoiantes de Trump sentirão uma espécie de devaneio: o seu campeão insiste tanto na narrativa mentirosa que terá uma fórmula autoritária de a tornar verdadeira.

Peggy Noonan, speechwriter de Ronald Reagan, colunista do The Wall Street Journal, explica: “Donald Trump diz coisas que ele gostava que fossem verdade, di-las como se elas fossem verdade e acredita que pode torná-las mesmo verdade”.

O comediante, apresentador e escritor Stephen Colbert lança tese idêntica à de Noonan, mas com nuances: “Donald Trump vive nesse mundo de fantasia onde só as suas emoções contam e, portanto, só a sua realidade é real. Mas também diz aos outros: ‘A vossa realidade não é real’”.

Paul Auster, escritor norte-americano, vai mais longe: “Donald Trump é uma máquina gigante de produzir nevoeiro”.

O “homem forte” que “resolve isto sozinho”

Enquanto Obama foi dizendo, durante uma década, “We are all in this together” (estamos todos juntos nisto), Trump arenga, há quase uma década: “I alone can fix it” (eu resolvo isso sozinho).

É todo um quadro referencial oposto: Barack tinha visão coletiva da resolução dos problemas comuns; Donald acena com devaneios autoritários de um “strong man” capaz de passar por cima dos processos de verificação e contrapoderes das sociedades mais avançadas.

Os anos passam e a mentira descarada parece não comprometer o apoio de Trump junto de milhões de americanos. Como é possível? Mathew D’Ancona, editor do The New European, aponta: “No Século XX o que contava era ter a propriedade dos meios de comunicação social. No Século XXI o que conta é ter o controlo da narrativa”.

Nas primeiras semanas da Presidência Trump, por fevereiro de 2017, a tese da então conselheira sénior do Presidente para a comunicação, Kellyanne Conway, de que Obama teria “usado um microondas para escutar Trump durante a campanha” terá sido a prova de que quem ocupava na altura (e pretende voltar a ocupar em breve) o poder na Casa Branca está mesmo a gozar connosco.

O que diz John Kelly, general que foi seu chefe de gabinete entre julho de 2017 e janeiro de 2019, sobre Trump? “Nunca conheci pessoa com tantas falhas de personalidade, a profundeza da sua desonestidade não cessou de me surpreender, toda a relação que cultivava tinha uma natureza transacional, embora acabasse por ser mais patético que outra coisa qualquer”.

A prova Bolton

Nestes quase nove anos - desde que Trump anunciou a primeira candidatura presidencial, no verão de 2015, a atirar contra imigrantes e a provar - tanta gente a colocar-se do lado do líder “bully” foi tentando autojustificar-se com um ‘mantra’: “O homem não é assim tão mau como dizem”.

Só que é.

Donald Trump “não tem filosofia nem estratégia”. “Falta de educação e bullying, era um dia normal no escritório para mim”, conta John Bolton, Conselheiro de Segurança Nacional de Trump entre abril de 2018 e novembro de 2019. “Visão do mundo de Trump? Nenhuma. É esse o problema. Trump não quer saber de política nem de conhecimento. Só se preocupa com o benefício pessoal. Se algo não o favorece, perde interesse. Para ele, as relações são transacionais. Não gosta de ouvir nem ler. Prefere opinar. Trump é anomalia. Trump não tem competência para desempenhar o cargo de Presidente dos EUA e isso torna-o muito mais do que um instrumento imperfeito. Trump é um perigo. É uma receita para o desastre”, insiste Bolton, que escreveu em 2020 um livro arrasador sobre o tempo em que trabalhou com Trump (The Room where it Happened).

Depois de Tillerson, depois de McMaster, depois de Mattis, depois de Kelly, depois de Scaramucci, também Bolton saiu com estrondo da proximidade de Trump. A sério que ainda há quem acredite que é Trump que está certo e todos os outros que tão perto com ele lidaram estão errados e a mentir?

Como será um Trump 2.0? Pior, bem pior

Fraco politicamente e desacreditado tecnicamente. Quatro anos de bizarria trumpiana na Casa Branca, entre 2017 e 2021, mostraram-nos evolução de degradação progressiva da qualidade política da administração americana. Se voltar, será muito pior: mais vingativo (depois da derrota nunca assumida de 2020) e muito pior acompanhado.

No início, Trump ainda conseguiu atrair para postos políticos de relevo nomes como o General Mattis (Defesa), o General Kelly (Segurança Interna e Chief of Staff), Rex Tillerson (Departamento de Estado) ou o general HR McMaster (Conselheiro de Segurança Nacional).

Mas com o passar do tempo foram todos saindo - e sempre de forma tempestuosa, em desavença com o presidente. Característica dos anos Trump: trabalhar com o presidente deixou marcas negativas. “Foi a pior fase da minha vida”, assumiu Kelly, poucos dias depois de ter saído.

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