“Vocês sem mar não seriam portugueses”
É de Mariagrazia Russo a afirmação que serve de título a este editorial e, por isso, as aspas, sendo que quem assim nos descreve, e à nossa relação umbilical com o mar, é uma académica italiana que há quase meio século estuda Portugal e é entrevistada nesta edição do DN a propósito de Vasco Gama, cujos 500 anos da morte se assinalam amanhã. E, sim, se há figura que simboliza esse pacto não-escrito entre os portugueses e o mar é, sem dúvida, o descobridor do caminho marítimo para a Índia.
Não nos faltam grandes navegadores, sublinhe-se. Um dia, numa visita a Hamburgo, grande cidade portuária alemã, visitei um museu dedicado ao mar em que à entrada surgiam “os sete grandes navegadores da Humanidade”. Havia um norueguês, um chinês, um italiano, um inglês e três portugueses. Os nossos eram Bartolomeu Dias, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães, embora este último pelo serviço prestado a Espanha. Não por acaso, alertou-me um dia um historiador, D. Manuel I foi o primeiro monarca da História a ter Exércitos nos quatro continentes e sobretudo nos três oceanos. Um império, na realidade, marítimo.
Mariagrazia Russo, reitora da Universidade de Estudos Internacionais de Roma, diretora da Cátedra Vasco da Gama, valoriza sem dúvida o feito do navegador nascido em Sines, pois a viagem que fez de Lisboa a Calecute, onde chegou em 1498, mudou o mundo, tanto como a descoberta da América por Cristóvão Colombo seis anos antes. Há quem fale de Era Gâmica, pois o planeta passou a estar interconectado, dando origem à primeira globalização. E no século XVI, cruzavam-se em Lisboa, na época mais cosmopolita das capitais, gentes do Brasil, de África, da Índia, da China e até do Japão, país que verdadeiramente descobriu o resto do mundo quando os portugueses lá chegaram em 1543. Mas a historiadora italiana sublinha que é com Os Lusíadas que Vasco da Gama se transforma de homem em mito, pois Luís de Camões faz do navegador, na epopeia, não só a figura central como também a figura simbólica do povo português. E se o mito Vasco da Gama tem dificuldade em ultrapassar fronteiras, quando as ultrapassa é graças a Camões, à medida que Os Lusíadas, primeiro publicados em 1572, vão sendo traduzidos (na língua italiana será no século XVII).
Camões ao identificar os portugueses com o navegador, identifica Portugal com o mar. E se muitos escritores vão seguir-lhe o exemplo nos séculos posteriores, na realidade essa identificação, sublinha a professora Russo, está lá desde os primórdios da nacionalidade, quando o país ainda nem chegava ao Algarve e quando faltava muito para descobrir a Madeira e os Açores: “O mar representa o olhar do português. Desde as origens, desde as Cantigas de Amigo que olhavam para o mar, para as ondas, até à literatura contemporânea. O mar é um protagonista muito forte da literatura portuguesa. E é também um elemento muito poético. Existe uma atração. Quando nós estudamos a cultura portuguesa, a primeira coisa que comunicamos aos nossos estudantes é exatamente esta vocação que os portugueses têm para o mar. Que era, assim, o famoso virar as costas a Espanha. Então tinham à frente só o mar. Mas não é só isso. É também porque o mar entra na vossa realidade, faz parte da vossa identidade. Vocês sem mar não seriam portugueses.”
Gosto da força da frase. Da sua poesia. Foi-me dita numa conversa em Lisboa, na Biblioteca Nacional. Saiu com toda a naturalidade a quem fala um português impecável e conhece a nossa História para trás e para a frente, que leu Camões, António Vieira, Fernando Pessoa, António Lobo Antunes, Mário Cláudio, José Saramago, Gonçalo M. Tavares, só para citar, já que estamos a falar dos 500 anos da morte de Vasco da Gama, aqueles que, de alguma forma, na sua obra não puderam ignorar o navegador.
A italiana deu uma conferência sobre Vasco da Gama, em Sines. Agradeço aos historiadores José António Falcão, que alertou o DN da vinda, e José Eduardo Franco, que me apresentou esta extraordinária conhecedora de Portugal. Relembro que se o navegador morreu em Cochim em 1524, nasceu naquela terra alentejana em 1469, inspirando, quem sabe, a frase: “Para nascer, Portugal, para morrer, o mundo”, de Vieira. É simbólico que quando se fala do futuro de Portugal, do reafirmar da vocação atlantista que nada tem de confrontacional com a europeísta, Sines seja tão citada. Talvez seja dali que Portugal olha com mais clareza para o mar, e tanto que o mar pode fazer pelos portugueses! Entendam os nossos governantes que não se trata de poesia.
Diretor-adjunto do Diário de Notícias