Verdade e política, ou o mundo feito ecrã
Hannah Arendt (1906-1975) publicou o seu livro sobre o julgamento do nazi Adolf Eichmann em 1963 (disponível no mercado português num volume das Edições Tenacitas, datado de 2013). Pouco tempo depois, considerando que era preciso reagir às muitas mentiras que envolveram a sua "polémica" (as aspas são da autora), Arendt escreveu um texto intitulado Verdade e política, que pode ser lido na antologia Between Past and Future (Viking Press, 1961), ou na tradução francesa, ampliada, La Crise de la Culture (Gallimard, 1972).
A edição francesa dessa antologia integra escritos produzidos entre 1954 e 1968, sendo escusado sublinhar que a sua leitura deve ter em conta as especificidades do respetivo contexto - e não apenas a dinâmica do pensamento de Arendt, mas também as convulsões da sua vida pessoal. Dois filmes estreados entre nós podem ajudar a conhecer algumas componentes desse contexto: Hannah Arendt (2012), uma realização de Margarethe Von Trotta, com Barbara Sukowa no papel central (está na plataforma Filmin) e Vida Activa: O Espírito de Hannah Arendt (2015), documentário de Ada Ushpiz (em DVD da Midas Filmes).
A atualidade de Verdade e política tem tanto de intenso, como de perturbante. Não apenas por alguns "paralelismos" que possam surgir entre o mundo há sessenta anos e o nosso presente. Sobretudo porque a discussão daquilo que Arendt refere como o "trabalho político" nos remete sempre para a questão da verdade, ou melhor, da possibilidade da sua enunciação. Como ela escreve: "Quando toda a gente mente sobre tudo o que é importante, aquele que diz a verdade, quer o saiba ou não, começou a agir; também ele está envolvido no trabalho político, uma vez que, no caso improvável da sua sobrevivência, deu um primeiro passo para a transformação do mundo."

Hannah Arendt recordada no filme Vida Activa: como pensar no meio das imagens?
Conforme as diferentes sensibilidades dos leitores, haverá frases como esta em que uns reconhecerão um cruel impulso trágico, outros uma crença quase cândida no fator humano - porventura a conjugação de uma coisa e outra, inevitavelmente enredada na memória dos factos muito próximos da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto. Em todo o caso, há qualquer coisa de fulgurante no modo como Arendt "antecipa" (estas aspas são apenas minhas, como é óbvio) a vertigem do universo de imagens em que hoje vivemos, ou somos obrigados a viver.
Refere ela o fenómeno recente (estamos em meados da década de 60 do século passado, recordo) da "manipulação coletiva" como resultante da conjugação de três fatores: "a reescrita da história, a fabricação de imagens e a política dos governos." Mais à frente, explicita o conluio destes fatores, identificando a "fabricação de todo o tipo de imagens" como mecanismo que tende a entronizar a imagem, a ponto de "qualquer facto conhecido e estabelecido poder ser negado ou negligenciado se for suscetível de pôr em causa a própria imagem."
De que imagens fala Arendt? Daquelas que, na sua "modernidade", conseguem refazer e reconfigurar a perceção do mundo à nossa volta. Porquê? "Porque uma imagem, ao contrário de um retrato à moda antiga, não serve para elogiar a realidade, antes dela oferece um substituto. E esse substituto, através das técnicas modernas e dos mass media, é, seguramente, muito mais visível do que alguma vez foi o original."
Não podemos, insisto, ler Arendt como se estivéssemos a seguir um relatório clínico sobre este século XXI e o mundo da televisão global, da ubiquidade da internet e da pueril socialização que, quase sempre, as "redes" dizem promover e consumar. Mas... e é este "mas" que nos faz regressar sempre ao génio de Arendt... podemos, isso sim, encontrar no seu pensamento uma permanente inquietação perante o facto de o mundo nos surgir como "algo" em que representação e coisa representada tendem a diluir-se uma na outra, a ponto de vivermos as imagens como a única verdade "palpável" (estranha palavra...) da nossa existência em sociedade.
Há outra maneira de dizer isto, enraizada não no tempo da escrita de Arendt, mas no nosso presente "mediático" (palavra cuja moda nos mascara a própria complexidade do que está em jogo...). Assim, o aquário de imagens que hoje habitamos define-se e, mais do que isso, impõe-se através de uma gigantesca multiplicação de ecrãs.
"Como pensar politicamente a política? Eis uma pergunta que encontramos na História europeia, de Hannah Arendt a Jean-Luc Godard."
É certo que o julgamento de Eichmann, em nome da urgência do conhecimento dos crimes dos nazis contra o povo judeu, foi transmitido em ecrãs de televisões de todo o mundo - tal é, aliás, recordado no filme de Von Trotta. Seja como for, não há qualquer equivalência, técnica ou social, entre esse contexto e o nosso. Agora, não temos apenas mais ecrãs, públicos e privados, para contemplar o mundo: somos também frequentemente conduzidos a apenas "reconhecer" os elementos do mundo se os virmos em algum ecrã.
O mundo feito ecrã impôs-se mesmo como princípio de socialização. Nessa medida, quase sempre, no campo das ideias, o modo triunfante de fazer política confunde-se com o menor denominador comum do pensamento: o trabalho político tende a definir-se como um exercício quotidiano de "ocupação" de ecrãs. Ou, recorrendo à terminologia de Arendt, de gestão de imagens.
Numa entrevista dada ao canal Arte em abril de 2019, na sua casa de Rolle, na Suíça, Jean-Luc Godard (1930-2022) falava da velha querela dos "filmes políticos", reconhecendo o infantilismo do rótulo e recordando o seu desejo de fazer filmes "politicamente". A esse propósito, lembrava uma frase do filósofo Claude Lefort (1924-2010) que sempre o acompanhou: "Transformando a política num domínio de pensamento autónomo, as democracias modernas criam condições para o totalitarismo." Essa "autonomização" da política pensada por Arendt e denunciada por Lefort parece dispensar a complexidade dos factos, fazendo crescer o espaço virtual do império de "opiniões" em que hoje vivemos. Talvez seja útil recordar que o próprio Godard citou a frase de Lefort num dos seus filmes - foi em 2014 e o seu título era Adeus à Linguagem.
Jornalista