Ver com os olhos do coração

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Antoine de Saint-Exupéry escreveu em O Principezinho que “só se vê bem com o coração, pois o essencial é invisível aos olhos”. A citação é bastante conhecida, mas outra estória de Saint-Exupéry, O Sorriso, leva esta ideia mais longe. Escrita na primeira pessoa e possivelmente autobiográfica, conta a história de um homem capturado pelos franquistas durante a Guerra Civil de Espanha. Detido numa cela enquanto esperava pela execução, tinha por única companhia o carcereiro. Este evitava estabelecer contacto visual, talvez por saber que o prisioneiro não viveria muito tempo. Até que o condenado lhe pediu lume para um cigarro que, nervosamente, segurava entre os dedos. Enfadado por ter de responder a alguém que via quase como um cadáver andante, o carcereiro acedeu ao pedido e aproximou-se. E foi aí que o milagre aconteceu: enquanto o guarda lhe acendia o cigarro com um fósforo, os olhares de ambos cruzaram-se, o prisioneiro sorriu - sem saber bem porquê - e o outro retribuiu. Foi como se ambos tivessem passado a ver-se, um ao outro, como mais do que um carcereiro e o seu prisioneiro. Pouco depois estavam a conversar sobre os filhos, com o prisioneiro a lamentar-se por já não poder ver os seus crescer. O carcereiro, que também tinha crianças pequenas, sentiu compaixão, abriu a porta da cela e, discretamente, deixou-o escapar como se nada fosse. O narrador conclui que foi salvo pelo sorriso, porque a partir desse momento ambos passaram a ver-se um ao outro como seres humanos. Já não eram apenas um guarda franquista e o seu inimigo condenado a morrer no paredón.

Serve esta introdução para nos recordar algo que deveria ser óbvio, mas que nem sempre é tido em conta nesta era de polarização generalizada, em que assistimos a episódios de violência cada vez mais frequentes. Antes de sermos de esquerda ou de direita, socialistas ou liberais, democratas ou populistas, comunistas ou fascistas, homens ou mulheres, heterossexuais ou homossexuais, cristãos ou ateus, muçulmanos ou budistas, portugueses ou estrangeiros, todos somos seres humanos. E temos de ser capazes de ver para além das nossas particularidades, crenças ou ideologias. É a única forma de conseguirmos viver em paz uns com os outros. Sem esta capacidade, não há democracia que sobreviva.

Muitos políticos, de esquerda e de direita, têm uma especial responsabilidade, porque promovem discursos que dividem, virando grupos contra grupos. Mas o caminho não pode ser esse, como se tem visto. E se realmente queremos mudar comportamentos, por exemplo no que toca a atitudes discriminatórias e à violência, comecemos por ensinar os nossos filhos a verem com os olhos do coração e a tratarem todos os seres humanos com o mesmo respeito, independentemente das diferenças. Sejam elas quais forem.

Diretor do Diário de Notícias

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