Ver a regionalização por um canudo

Descentralizar competências para os municípios, reforçar o poder das Comissões de Coordenação e, por fim, regionalizar. Este parece ser o algoritmo desenhado pelo governo de António Costa, em direção a um país mais equilibrado e, portanto, mais justo e mais próspero. A realidade, porém, tem demonstrado que são mais as curvas apertadas do que as avenidas, num processo que aparenta uma lisura concetual à prova de bala, mas cujo resultado final não me inspira confiança.

Vamos por partes. O processo de descentralização tem sido difícil, e não é só porque os autarcas querem um envelope financeiro mais robusto. Está em causa a impreparação da maioria dos municípios para assumirem competências mais complexas. Porque são muito pequenos - apenas 18% têm mais de 50 mil habitantes, enquanto 39% tem menos de 10 mil habitantes - e porque os munícipes não se sentem mais seguros - veja-se o caso dos professores, que não querem que a contratação seja local, preferindo o modelo central. O nosso mapa autárquico não foi desenhado, nem capacitado, para uma tal transferência.

Para a ideia - muito válida - de descentralizar competências fazer um caminho mais seguro, a conclusão óbvia é a de que deveríamos ter instâncias regionais de dimensão intermédia. As CIM, está provado, são uma construção disfuncional, sem legitimidade, nem meios, que apenas serve para alinhar umas candidaturas aos fundos. Na ausência de regionalização, restam, então, as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, que são um órgão descentralizado da Administração Central, sem legitimidade democrática direta.

"Está em causa a impreparação da maioria dos municípios para assumirem competências mais complexas."

O governo resolveu, no ano passado, reforçar o poder das CCDR, definindo um calendário extremamente ambicioso. Quem conhece os meandros da administração, antecipou facilmente a impossibilidade deste ritmo de mudança. Entregar às CCDR parte do poder que reside hoje nos ministérios, nas direções-gerais e regionais e noutros serviços mexe com a inércia do sistema, desafiando a cultura de centralismo e um statu quo que, com o tempo, tem inevitavelmente algo de legítimo. Por exemplo, não é do dia para a noite que se pede aos servidores públicos para mudarem de poiso. Por outro lado, as próprias CCDR não estão capacitadas para encaixarem este desafio num tempo curto, até porque, do ponto de vista dos recursos humanos, estão muito descapitalizadas.

Logo na primeira meta, que seria a da reestruturação das CCDR até ao final de janeiro de 2023, o governo não conseguiu cumprir. O caminho não é, nem será, fácil de todo. Sendo certo que a dificuldade nunca é um bom argumento para toldar a ambição e o empenho, as minhas dúvidas sobre este processo adensam-se quando visto na perspetiva da regionalização.

A ideia do governo é implementar esta reforma a ritmo mata-cavalos e, já em 2024, avaliar do seu sucesso. Em função dessa ponderação, decidirá se avança para o referendo da regionalização. E aqui é que eu perco todas as ilusões. Primeiro, porque já se viu que 2024 deslizará para 2025 e que o acumular de eleições - Europeias, autárquicas - será aproveitado para "desaconselhar" referendos.

Depois, porque, se e quando o referendo vier a acontecer, o tal reforço do poder das CCDR terá sido usado para forçar o axioma falacioso de que o desenho das regiões só pode ser o das CCDR. Uma forma inteligente de dar a volta à Constituição, no sentido em que esta prevê uma pergunta justamente sobre o mapa das regiões, o qual deveria ser debatido com outra amplitude.

Professor catedrático

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